São 6h15 da manhã. Abrem-se as portas do 747 e somos mergulhados numa cortina de um ar espesso e quente. “Ponham o repelente, rapazes... Chegámos!”, grita alguém. Uma nuvem de mosquitos atraídos pelas luzes cerca-nos em poucos minutos enquanto aguardamos as formalidades alfandegárias. Três investigadores portugueses e outros tantos americanos procuram insistentemente os colegas angolanos que os receberão à porta do Aeroporto 4 de Fevereiro. É do lado de lá que o geólogo angolano André Buta Neto, da Universidade Agostinho Neto, grita: “Bem-vindos a Angola.”

Texto de Octávio Mateus e Rui Castanhinha Publicado em outubro de 2008

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De Luanda, voamos para sul, para a cidade do Namibe. O final do voo percorre a costa e, do ar, vêem-se belas baías talhadas pelas ondas e vastas planícies onde a vegetação escasseia. A costa dos Esqueletos estende-se da África do Sul até aqui, a este limite setentrional. O aeroporto doméstico Yuri Gagarine recebe-nos e, enquanto aguardamos pelas bagagens, os nossos colegas saúdam-nos do outro lado dos vidros. Entre eles, está o norte-americano Michael Polcyn que, com o holandês Anne Schulp, forma a dupla de especialistas em mosassauros desta expedição.

Somos conduzidos através do extremo setentrional do deserto da Namíbia e sentimos a grandiosidade de África, enquanto o sol austral se põe e as paisagens mudam de cor e de formas. Este deserto existe porque a leste se estende uma grande massa continental donde sopram ventos secos de sudeste. As células atmosféricas de Hadley, que elevam toda a humidade evaporada no equador, descarregam-na nos trópicos, crivando as latitudes de 15º a 25º com ventos secos e de direcção contrária. Oriundos do interior do continente, são estes ventos que se dirigem para o mar, afastando a humidade da costa e possibilitando a formação do deserto da Namíbia.

“Lembrem-se que foi precisamente isso que aconteceu aqui no Cretácico, na costa ocidental do continente africano quando o Atlântico se estava a formar. Este deserto tem 100 milhões de anos, rapazes”, diz o paleontólogo norte-americano Louis Jacobs, que tem dedicado a vida ao estudo de África. Ele é o coordenador da expedição da National Geographic a Angola e é empolgante ouvi-lo explicar os mais curiosos processos que levaram à formação das paisagens que observamos.

Ao mesmo tempo que a guerra civil angolana impossibilitava o desenvolvimento da paleontologia de vertebrados, a geologia sofria enormes revoluções teóricas e mudanças de paradigma. À data do último trabalho de campo na região, há cerca de quatro décadas, a noção de deriva continental não tinha ainda sido aceite, e a utilização de novos isótopos para datação das rochas dava então os primeiros passos, pelo que nunca fora utilizada na região para estudos de vertebrados fósseis. A extinção ocorrida no final do Cretácico era então mal compreendida e não existiam provas empíricas do impacte de um enorme meteorito na Terra. A paleontologia de vertebrados deu um salto em 40 anos e Angola é hoje o laboratório perfeito para essa demonstração.

Os primeiros passos da paleontologia de vertebrados em Angola foram dados no século XIX, mas os primeiros trabalhos sistemáticos sobre os répteis e peixes cretácicos foram da autoria do paleontólogo Miguel Telles Antunes, que desenvolveu a sua dissertação de doutoramento na década de 1960 naquele país e, desde então, tem vindo a publicar assiduamente sobre a paleontologia local. Foi com os trabalhos deste pioneiro em mente que a equipa revisitou as localidades já assinaladas e encontrou locais como Bentiaba e Iembe (mapa). Aliás, foi quase em sentido literal que seguimos as pegadas deste paleontólogo.

“Cuidado para não pisarem os fósseis, já cá estamos”, gritou entretanto Jacobs. As escavações concentraram-se numa área bastante pequena, mas extremamente rica em fósseis. Era impossível não caminhar sobre dentes e ossos com mais de 65 milhões de anos. Bentiaba é o paraíso para quem estuda estes estranhos animais. O terreno é seco e arenoso com pequenos vales que escorrem de um planalto em direcção ao oceano. Muitas dessas encostas expõem ossos fossilizados e foi nessa condição que se encontrou o único osso de dinossauro do Sul de Angola. Este osso longo, possivelmente do pé ou mão de um saurópode, encontrava-se a espetado a sair da encosta e é extremamente raro em ambientes marinhos. O facto de um osso de um animal terrestre ser encontrado num terreno que se formou em ambiente marinho não é inédito. O osso pode ter sido arrastado pela corrente oceânica, mas não até muito longe – um indício de que aqueles sedimentos se formaram em águas costeiras.

Numa pequena área de alguns metros quadrados, encontrámos crânios de vários animais. Entre eles, estava a jóia da coroa, o Globidens, um mosassauro com dentes fortes e arredondados, adaptados a esmagar conchas e carapaças. Mais à frente, outro mosassauro Prognathodon foi descobertojunto a duas colunas vertebrais de plesiossauros. “São animais a mais a para um espaço tão pequeno”, brincou o holandês Anne Schulp, do Museu de História Natural de Maastrich. Quanto mais tempo ficávamos no campo, mais havia para descobrir e rapidamente demos conta de que não se podia trazer tudo.

Nunca tinham sido descobertos vestígios de dinossauros em Angola. Esse cenário mudou quando um dos paleontólogos, o português Octávio Mateus, explorou a região de Iembe no último dia da expedição de 2005. Foram ali descobertos os ossos do membro anterior de um dinossauro saurópode, um quadrúpede gigante de pescoço comprido. Tal como o osso descoberto em Bentiaba, foi encontrado em sedimentos marinhos, apesar de a terra mais próxima ser desértica, tal como é hoje a costa dos Esqueletos. Tratava-se, possivelmente, de um dinossauro adaptado à vida em ambientes muito áridos, como os elefantes contemporâneos nas áreas desérticas da Namíbia.

Ao longo dos três anos de escavação, de 2005 a 2007, descobrimos diversos mosassauros. Aparentados com os actuais lagartos monitores, estes eram os grandes predadores dos mares de então, tendo evoluído para uma vida exclusivamente marinha. Nadavam através da impulsão lateral do seu longo corpo que terminava numa cauda vertical. Prosperaram durante o Cretácico, mas extinguiram-se no final dessa era.

A lista de tesouros parecia infinita. Ninguém estava à espera de encontrar répteis voadores como os pterossauros, mas eles foram descobertos na segunda campanha. Em 2007, recolheram-se vários ossos completos deste estranhos animais alados. Do solo, emergiram também fósseis de plesiossauros, essencialmente piscívoros, que terão desenvolvido uma estratégia diferente da dos mosassauros, pois nadavam com auxílio de poderosas barbatanas enquanto exploravam o mar com os seus longos pescoços. Pelo menos dois grupos de plesiossauros elasmossaurídeos foram ainda encontrados e recolhidos, aguardand o agora pelos trabalhos de laboratório no Museu da Lourinhã.

Além do primeiro dinossauro de Angola, Octávio Mateus descobriu um rara tartaruga fóssil, que se revelaria uma nova espécie, entretanto baptizada como Angolachelis. Foram também recolhidos inúmeros dentes e ossos de tubarão e de raia, cuja descrição está agora a cargo de Telles Antunes e Ausenda Balbino.

Bentiaba reservava ainda mais descobertas admiráveis. A oeste, estende-se um Atlântico gélido devido à corrente fria de Benguela, oriunda do círculo polar antárctico; a este, só existe calor e deserto durante muitos quilómetros. Há muito que se sabia que Angola era rica em répteis marinhos do Cretácico, incluindo, pelo menos, sete espécies de mosassauros, duas de plessiossauros e algumas tartarugas marinhas, mas, depois de três campanhas imersos na versão cretácica da costa dos Esqueletos, a contagem de espécimes parece não terminar. Até à próxima campanha.

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