As novas tecnologias ajudam a esclarecer um dos maiores mistérios da biologia: como funciona efectivamente o cérebro?

 

Texto: Carl Zimmer

Fotografia: Robert Clark.

Van Wedeen aproxima-se do ecrã do computador, vasculhando ficheiros. Estamos numa biblioteca sem janelas, rodeados por caixas cheias de cartas velhas, revistas científicas e um velho projector de diapositivos que ninguém se deu ao trabalho de deitar para o lixo. “Vou demorar a localizar o seu cérebro”, afirma. Wedeen armazenou centenas de cérebros num disco externo. São imagens tridimensionais requintadamente pormenorizadas de macacos, ratos e seres humanos, onde estou incluído. Wedeen ofereceu-se para me guiar numa viagem pela minha própria cabeça. “Vamos parar em todos os pontos de interesse turístico”, promete, sorrindo.

Esta é a minha segunda visita ao Centro Martinos de Imagiologia Biomédica, em Boston. Na primeira vez, deitei-me na sala de imagiologia digital sobre uma marquesa, com a nuca assente numa caixa de plástico. Um radiologista colocou-me uma máscara de plástico. Olhei para cima, fitando-o através de dois buracos, enquanto ele a prendia, de modo a que as 96 antenas miniaturizadas ficassem próximas do meu cérebro para captar as ondas de rádio que começou a transmitir. Enquanto a marquesa deslizava para a boca cilíndrica do aparelho, imaginei “O Homem da Máscara de Ferro”.

Durante uma hora, fiquei imóvel, de olhos fechados, tentando manter a calma e reflectindo. Wedeen e os colegas conceberam o aparelho de tal maneira que mal havia espaço lá dentro para uma pessoa com a minha constituição física. Para evitar o pânico, respirei pausadamente e viajei a lugares da minha memória.

Enquanto ali permaneci deitado, reflecti sobre o facto de todos os pensamentos e emoções terem sido criados pelos 1,4 quilogramas de massa orgânica que estava a ser examinada: o meu medo, transportado por impulsos eléctricos convergentes numa área do meu cérebro chamada amígdala, e a reacção destinada a acalmá-la, mobilizada nas regiões do meu córtex frontal. A memória dos passeios a pé com a minha filha era coordenada por uma estrutura de neurónios em forma de cavalo-marinho chamada hipocampo, que reactivou uma vasta rede de ligações em todo o cérebro, activada pela primeira vez quando trepei àqueles montes de neve e formei estas memórias.

Sujeitei-me a este exame no âmbito de uma reportagem que tinha por objectivo documentar uma das mais fantásticas revoluções científicas do nosso tempo: os progressos assombrosos alcançados em matéria de conhecimento sobre a maneira como funciona o cérebro humano. Alguns neurocientistas analisam individualmente a estrutura fina das células nervosas, ou neurónios. Outros investigam a bioquímica do cérebro, tentando perceber a forma como os nossos milhares de milhões de neurónios sintetizam e utilizam diferentes tipos de proteínas. Outros ainda, entre os quais Wedeen, estão a gerar representações pormenorizadas inéditas da estrutura de funcionamento do cérebro: a rede composta por 160 mil quilómetros de fibras nervosas, a matéria branca, que liga as diversas componentes da mente, dando origem a todos os nossos pensamentos, sensações e percepções. O governo norte-americano apoia esta investigação, através da Iniciativa BRAIN. Numa declaração em 2013, Barack Obama afirmou que este projecto de grande escala se destina a acelerar a cartografia dos circuitos neuronais humanos, “dando aos cientistas as ferramentas de que precisam para obter uma visão dinâmica do cérebro em acção”. Ao observarem o cérebro em acção, os neurocientistas conseguem também ver as suas falhas. Começam agora a identificar as diferenças de estrutura entre os cérebros normais e os cérebros de pessoas com doenças como a esquizofrenia, o autismo ou Alzheimer. À medida que mapearem o cérebro de maneira mais pormenorizada, poderão aprender a diagnosticar as doenças pelo efeito que estas produzem na anatomia e talvez mesmo a compreender a forma como elas surgem.

Wedeen localiza finalmente a imagem obtida durante a minha sessão no aparelho de ressonância magnética. O meu cérebro aparece no monitor. A técnica utilizada, denominada imagiologia de difusão por ressonância magnética, transforma os sinais desencadeados pela difusão de moléculas, sobretudo de água, num atlas de alta resolucão dessa internet biológica. O seu aparelho mapeia feixes de fibras nervosas que formam centenas de milhares de vias que transportam informação de um lado para o outro, dentro do meu cérebro. Weeden usa um arco-íris de cores de forma a evidenciar as diferentes vias, de tal maneira que o meu cérebro aparece como uma explosão de pelagem colorida.

Wedeen centra-se em determinadas vias, mostrando-me alguns dos circuitos importantes para a linguagem e outras funções cerebrais. Então, apaga temporariamente do visor a maior parte das vias existentes no meu cérebro, para que eu seja capaz de ver melhor a maneira como estão organizadas. Quando ele aumenta o tamanho, há uma circunstância assombrosa que toma forma: apesar da complexidade dos circuitos, todos eles se intersectam em ângulos rectos, como as linhas de uma folha de papel milimétrico.

 “São grelhas”, afirma Wedeen.

Quando Wedeen desvendou pela primeira vez a estrutura de grelha do cérebro, em 2012, alguns cientistas mostraram-se cépticos, interrogando--se sobre se ele descobrira apenas parte de uma anatomia muitíssimo mais enredada. No entanto, Wedeen está cada vez mais convencido de que até esse padrão é significativo. Seja qual for o lugar onde procure, dos seres humanos aos macacos ou aos ratos, ele encontra a grelha. Aliás, os mais antigos sistemas nervosos dos vermes do Câmbrico eram grelhas simples — apenas um par de cordões nervosos que corriam da cabeça à cauda, com estruturas anelares a ligarem-nos.Na nossa linhagem, o número de fibras nervosas contidas na cabeca aumentou para milhares de milhões, mas mantendo ainda assim a mesma estrutura semelhante a uma grelha. É possível que os nossos pensamentos deslizem velozes como carros eléctricos sobre estas pistas de matéria branca quando os sinais viajam, deslocando-se de uma região para outra do cérebro.

“Têm de existir princípios subjacentes a tudo isto”, afirma Wedeen, olhando concentrado para a imagem do meu cérebro. “Nós é que ainda não sabemos o suficiente para entender a simplicidade.”

No passado, os médicos achavam que o cérebro era composto por muco. Aristóteles considerava-o um frigorífico, destinado a arrefecer o coração fogoso. Desde essa época e até ao Renascimento, os anatomistas declaravam com grande autoridade que as nossas percepções, emoções, raciocínios e acções resultavam de “espíritos animais” — vapores misteriosos, impossíveis de conhecer, que redemoinhavam pelas cavidades da nossa cabeça e viajavam por todo o corpo.

A revolução científica do século XVII começou a modificar esse entendimento. O médico britânico Thomas Willis reconheceu que era no tecido cerebral que o nosso mundo mental existia. Para compreender o seu modo de funcionamento, ele dissecou cérebros de ovelhas, cães e doentes falecidos, elaborando os primeiros mapas correctos do órgão.  Seria preciso mais um século para assimilar que o cérebro é um órgão eléctrico. Em vez de espíritos animais, impulsos eléctricos deslocam-se através do cérebro e saem dele pelas fibras nervosas que enervam o nosso corpo. Mesmo assim, no século XIX os cientistas ainda sabiam pouco sobre as vias percorridas por esses impulsos. 
O médico italiano Camillo Golgi defendeu que o cérebro era uma rede ininterruptamente ligada. Baseando-se na investigação de Golgi, o cientista espanhol Santiago Ramón y Cajal experimentou diversas maneiras de corar os neurónios, um por um, de forma a rastrear as suas ramificações enredadas. Cajal reconheceu que cada neurónio é uma célula distinta. Um neurónio envia sinais através de fibras chamadas axónios. Um minúsculo espaço separa as extremidades finais dos axónios das extremidades receptoras dos neurónios, denominadas dendrites. Mais tarde, os cientistas viriam a descobrir que uma estrutura na parte terminal dos astrócitos liberta várias substâncias químicas nessa fenda, de maneira a desencadear um sinal no neurónio vizinho.

O neurocientista Jeff Lichtman, da Universidade de Harvard, conduz o projecto de Cajal até ao século XXI. Ele e os colegas estão a criar imagens tridimensionais extremamente pormenorizadas dos neurónios, reveladoras de cada protuberância e ramificação deles emergente. Escavando até à estrutura fina das células nervosas individualizadas, poderão finalmente obter respostas para algumas das perguntas mais elementares acerca da natureza do cérebro. Cada neurónio possui, em média, dez mil sinapses. Existe alguma ordem nas suas ligações a outros neurónios ou essas ligações são aleatórias? Nas ligações que fazem, mostram preferência por algum tipo de neurónio em detrimento de outros?

Para produzirem as imagens, Jeff e os colegas introduzem pedaços de cérebro de ratinho conservado por fixação num fatiador neuroanatómico, que corta fatias de tecido com espessura inferior a um milésimo de um cabelo humano. Os cientistas recorrem a um microscópio electrónico para captar imagens de cada secção transversal cortada e, em seguida, servem-se do computador para empilhá-las. Pouco a pouco, toma forma uma imagem tridimensional explorada pelos cientistas.

“Tudo é revelado”, resume Jeff. O único problema é que “tudo” corresponde a uma dimensão enorme. Até agora, o maior volume de um cérebro de ratinho que Jeff e os colegas conseguiram reconstituir tinha o tamanho de um grão de sal. Os dados respectivos totalizam cem terabytes, ou seja, o volume de dados existente em cerca de 25 mil filmes de alta definição.

Depois de os cientistas reunirem esta informação, começa o trabalho verdadeiramente árduo: a identificação das regras que organizam o caos aparente do cérebro. Narayanan Kasthuri, investigador supervisionado por Jeff Lichtman, começou a analisar todos os pormenores de um cilindro de cérebro de ratinho que mede mil micrómetros cúbicos. É o volume correspondente a 1/100.000 do tamanho de um grão de sal. Ele escolheu uma região, procurando identificar todos os neurónios que passam através dela.

Aquele minúsculo retalho de cérebro revelou-se um autêntico emaranhado de cabos. Narayanan descobriu mil axónios e cerca de oitenta dendrites, cada qual fazendo cerca de 600 ligações com outros neurónios dentro do cilindro. “Trata-se de um aviso que nos desperta para o facto de os cérebros serem muitíssimo mais complexos do que a ideia que temos deles”, diz Jeff.

Complexos, mas não aleatórios. Jeff e Narayanan descobriram que cada neurónio fazia quase todas as ligações com apenas um outro neurónio, evitando escrupulosamente ligações com quase todos os restantes neurónios densamente acondicionados em seu redor. “Eles parecem ter cuidado em escolher cada ligação”, diz Jeff.

O cientista ainda não é capaz de afirmar que este padrão de ligação é uma regra geral ou uma característica apenas presente na área minúscula de cérebro de ratinho da amostra por si colhida. Ele e os colegas precisarão de mais dois anos para finalizar a digitalização da totalidade dos 70 milhões de neurónios existentes num ratinho. Pergunto-lhe quanto demorará digitalizar a totalidade de um cérebro humano, que contém mil vezes mais neurónios do que o de um ratinho. “Não penso nisso”, diz, com uma gargalhada. “É demasiado penoso.”

Quando (e se) Jeff terminar o retrato tridimensional do cérebro, este revelará muito, mas também será, apenas, uma representação requintadamente pormenorizada. Os neurónios reconstituídos são modelos ocos: os neurónios reais estão carregados de DNA, proteínas e outras moléculas. Cada tipo de neurónio utiliza um conjunto de genes diferente para construir a maquinaria molecular necessária ao cumprimento das suas tarefas. Por exemplo, os neurónios fotossensíveis nos olhos produzem proteínas especializadas em captar fotões e os neurónios numa região denominada substantia nigra produzem a dopamina. A localização geográfica das proteínas e das outras substâncias químicas é decisiva para compreendermos a maneira como o cérebro funciona e a maneira como esse funcionamento pode correr mal. Na doença de Parkinson, os neurónios da substantia nigra produzem dopamina em quantidade inferior à normal, por razões ainda não esclarecidas. A doença de Alzheimer está associada à deposição anómala de aglomerados de proteína no cérebro, embora os cientistas ainda tenham de determinar a forma como esses aglomerados dão origem à demência devastadora.

Um mapa da maquinaria molecular do cérebro denominado Atlas Allen do Cérebro foi criado no Instituto Allen para a Ciência do Cérebro, fundado há dez anos com fundos doados por Paul Allen, co-fundador da Microsoft. Utilizando cérebros de pessoas recentemente falecidas, doados pelas respectivas famílias, os investigadores utilizam imagiologia de ressonância magnética (IRM) de alta resolução para cada cérebro que funciona como um mapa de estradas tridimensional, fatiando-o seguidamente em secções de espessura microscópica que são montadas em lâminas de vidro. Depois, embebem as secções em substâncias químicas que revelam a presença dos genes activos alojados nos neurónios.

Até ao momento, os investigadores mapearam os cérebros de seis pessoas, identificando a actividade de 20 mil genes codificadores de proteínas em 700 sítios de cada cérebro. Trata-se de um volume colossal de dados e só agora se começa a tentar percebê-los. Calcula-se que 84% de todos os genes do nosso DNA se tornem activos algures no cérebro do adulto, enquanto um órgão “simples”, como o coração ou o pâncreas, requer a intervenção de um número muito inferior. Em cada um dos 700 locais estudados pelos cientistas, os neurónios activam conjuntos diferentes de genes. Num levantamento preliminar realizado em duas regiões do cérebro, os cientistas compararam um milhar de genes já anteriormente conhecidos pela sua importância para a função neuronal. As zonas do cérebro em que cada um desses genes se mostrava activo eram praticamente idênticas de pessoa para pessoa. Parece que o cérebro possui uma paisagem genética finamente definida, com combinações especiais de genes desempenhando tarefas em diversas localizações. O segredo de muitas doenças do cérebro pode estar escondido nessa paisagem, quando certos genes são desactivados ou activados de forma anómala.

Toda a informação contida no Atlas Allen do Cérebro está disponível na Internet, permitindo que outros naveguem pelos dados. E já se estão a fazer novas descobertas. Por exemplo, uma equipa de cientistas brasileiros tem-no utilizado para estudar uma doença devastadora do cérebro denominada doença de Fahr, que provoca calcificações em zonas profundas do cérebro, causando demência. 
Nalguns casos, a doença de Fahr já foi associada a uma mutação do gene SLC20A2. No atlas, os cientistas descobriram que o gene é predominantemente activo nas regiões atacadas pela doença.

De todos os métodos de visualização do cérebro, talvez o mais admirável seja o que foi inventado pelo neurocientista Karl Deisseroth e pelos seus colegas. Para observarem o cérebro, eles começam por fazê-lo desaparecer.

Durante a minha visita ao laboratório de Deisseroth, a estudante de licenciatura Jenelle Wallace conduziu-me a uma bancada onde meia dúzia de copos de precipitação repousavam. Puxou um e apontou para um cérebro de ratinho do tamanho de uma uva, jazendo no fundo. Não se pode dizer que tenha olhado para o cérebro, mas mais através dele. Era tão transparente como um berlinde.

O cérebro normal de um ser humano, ou de um ratinho, é opaco, com as suas células forradas a gordura e outros compostos que impedem a passagem da luz. A vantagem de um cérebro transparente é que ele nos permite examinar a sua estrutura interna sem dissecar o órgão. Juntamente com o investigador de pós-doutoramento Kwanghun Chung, Karl Deisseroth inventou um método que permite substituir os compostos dispersores da luz existentes no cérebro por moléculas transparentes. Depois de tornarem transparente o cérebro do ratinho, é possível impregná-lo de substâncias químicas fluorescentes que se ligam exclusivamente a certas proteínas, ou rastrear uma via específica de ligação entre neurónios em regiões distantes. Os cientistas podem então limpar substâncias químicas e acrescentar outras que revelem a localização e estrutura de um tipo diferente de neurónio — desemaranhando efectivamente os circuitos neuronais. “Não é preciso dissecar o cérebro para observar a rede neuronal”, resume Karl.

O método de Karl, baptizado com o nome de CLARITY, deixou os colegas boquiabertos. “É do outro mundo”, afirma Christof Koch, director científico executivo do Instituto Allen. Wedeen classificou a investigação como “espectacular… diferente de tudo o resto que existe neste campo”. O derradeiro objectivo de Karl Deisseroth é concretizar a mesma transformação num cérebro humano. A tarefa será muito mais difícil, até porque o cérebro humano é três mil vezes maior que o do ratinho.

Uma imagem CLARITY mostrando a localização de um único tipo de proteína num único cérebro humano geraria cerca de dois petabytes ou o equivalente a várias centenas de milhares de filmes em alta definição. Karl prevê que o CLARITY poderá um dia revelar características ocultas de patologias como o autismo e a depressão. Por agora, contudo, mantém-se realista quanto às expectativas. “Temos um caminho longo a percorrer antes de sermos capazes de influenciar os tratamentos. Por isso, digo sempre para não pensarem ainda nisso”, refere.

Por mais revelador que um cérebro transparente possa ser, ele estará no entanto morto. Os cientistas precisarão de ferramentas diferentes para explorar o terreno dos cérebros vivos. O equipamento de imagiologia utilizado por Wedeen para determinar padrões de matéria branca pode, com programação diferente, registar o cérebro em acção. A imagiologia de ressonância magnética funcional (IRMf) permite determinar as regiões do cérebro mobilizadas para o desempenho de uma tarefa cognitiva. Ao longo das últimas duas décadas, a IRMf contribuiu para revelar as redes envolvidas em muitas formas de actividade mental, desde o reconhecimento de rostos à degustação de uma chávena de café, passando pela recordação de um acontecimento traumático.

É fácil deslumbrarmo-nos com as imagens de IRMf, mas os aparelhos mais potentes só conseguem registar a actividade até à escala máxima de um milímetro cúbico: um tecido do tamanho de uma semente de sésamo. Dentro desse espaço, centenas de milhares de neurónios actuam em padrões coordenados, trocando entre si sinais. A maneira como esses sinais dão origem aos padrões de maior dimensão revelados pela IRMf permanece um mistério.

“Há perguntas ridiculamente simples acerca do córtex às quais não conseguimos dar qualquer resposta”, afirma Clay Reid, que se tornou colaborador do Instituto Allen em 2012.

Clay tem esperança de encontrar resposta para algumas dessas perguntas, realizando uma grandiosa série de experiências denominada Mind-Scope. Objectivo: compreender de que maneira um grande número de neurónios desempenha uma tarefa complexa.

Clay e os colegas decidiram decifrar a função da visão. Há várias décadas que os cientistas investigam a maneira como vemos, mas só têm conseguido estudá-la com muitas limitações.

Os cientistas mapearam as regiões do cérebro visual especializadas em tarefas diferentes, tais como detectar os contornos de um objecto ou perceber a intensidade do seu brilho. Porém, ainda não foram capazes de observar todas essas regiões ao mesmo tempo para entenderem como o milhão de neurónios nas regiões responsáveis pela visão do cérebro do ratinho reúnem instantaneamente a informação para formar a imagem de um gato.

Clay e os seus colegas decidiram abordar esse problema, desenvolvendo, através de engenharia genética, ratinhos nos quais os neurónios da visão se iluminam quando são activados. Estes sinais luminosos representam a actividade neuronal ocorrida quando um ratinho vê um determinado objecto, seja ele um gato, uma cobra ou um apetitoso bocado de queijo. Os cientistas podem então compilar os dados e criar modelos matemáticos maciços da visão. Se os modelos tiverem a precisão desejada, os investigadores serão literalmente capazes de ler a mente de um ratinho. “O nosso objectivo é reconstituir aquilo que um ratinho vê”, diz Clay. “E acho que vamos conseguir.”

A investigação sobre a visão do ratinho é outro passo na direcção daquele que é o derradeiro objectivo da neurociência: um entendimento abrangente da maneira como este órgão enormemente complexo funciona na realidade — aquilo a que os cientistas com quem falei gostam de chamar uma teoria do cérebro. Uma tal visão grandiosa encontra-se ainda muito longe de ser atingida e, na sua maior parte, a demanda dessa visão ainda não conseguiu modificar a maneira como os médicos tratam os doentes. Mas existe uma linha de investigação (a interface cérebro-máquina) na qual a cartografia da mente já começou a mudar a vida das pessoas.

Aos 43 anos, Cathy Hutchinson sofreu um acidente vascular cerebral, que a incapacitou de se mover ou falar. Jazendo no hospital, foi-se gradualmente apercebendo de que os seus médicos não sabiam se ela estava em estado de morte cerebral ou ainda consciente. A irmã perguntou-lhe se conseguia entendê-la. E ela respondeu, movendo os olhos para cima a seu pedido.

 “Senti um grande alívio porque toda a gente falava de mim como se estivesse a morrer”, conta agora Cathy Hutchinson, 17 anos depois.

Ainda completamente paralisada e incapaz de falar, comunica olhando para as letras dispostas num monitor de computador montado na sua cadeira de rodas, equipado com uma câmara que segue o movimento de um minúsculo disco metálico fixado ao centro das lentes dos seus óculos.

Perto do topo do cérebro existe uma região denominada córtex motor, na qual geramos as ordens de comando que fazem mover os músculos. Quando uma pessoa como Cathy Hutchinson fica paralisada, o córtex motor permanece frequentemente intacto, embora não conseguindo comunicar com o resto do corpo devido à destruição das suas ligações. O neurocientista John Donoghue, da Universidade de Brown, quis descobrir uma forma de ajudar as pessoas com paralisia, acedendo aos sinais emitidos pelo córtex motor e interpretando-os. Talvez elas acabassem por conseguir aprender a escrever num computador ou a fazer funcionar uma máquina apenas com os seus pensamentos. John demorou anos a desenvolver um implante e a testá-lo em macacos.

Em 2005, cirurgiões do Hospital de Rhode Island abriram um orifício do tamanho de uma ficha de póquer no seu crânio, inserindo o sensor para o dispositivo de John Donoghue. Do tamanho aproximado de uma joaninha, o sensor continha cem eléctrodos miniaturizados, os quais, exercendo pressão sobre o córtex motor de Cathy, registavam os sinais dos neurónios vizinhos. Um conjunto de fios ligados a este dispositivo passava através do buraco aberto no seu crânio e desembocava numa placa metálica fixada ao couro cabeludo.

Depois de recuperada, os investigadores da Universidade de Brown ligaram o implante de Cathy a um cabo que transmitia os padrões de sinais emitidos pelo seu cérebro a um carrinho de rodas com computadores. Numa primeira fase, os cientistas treinaram os computadores para reconhecerem sinais no seu córtex motor e utilizá-los para movimentar um cursor sobre um ecrã. Isto foi conseguido à primeira tentativa, uma vez que eles haviam aprendido a transformar padrões de actividade cerebral em movimentos. Dois anos mais tarde, acoplaram um braço robótico aos computadores e usaram um programa capaz de interpretar os sinais do cérebro de Cathy para movimentar o braço para a frente e para trás, erguendo-o e baixando-o, e para abrir os dedos robóticos e uni-los cerrando o punho.

Pouco depois, Cathy Hutchinson, o computador e o braço robótico já formavam uma equipa. “Pareceu-me natural”, contou ela. Tão natural que, um dia, estendeu o braço na direcção de um copo de café, agarrou nele e levou-o à boca.

Agora, Donoghue e outros cientistas estão a explorar este sucesso, na esperança de criarem interfaces potentes, seguras e fáceis de utilizar. Na Universidade de Duke, Miguel Nicolelis tem realizado experiências com exosqueletos que se atam ao corpo. Os sinais enviados pelo cérebro controlam cada membro. Já conseguiu que os macacos controlassem exosqueletos de corpo inteiro. “Os implantes cerebrais acabarão por tornar-se tão vulgares como os implantes cardíacos”, diz Miguel.

Quando se fala do cérebro, é perigoso prever o futuro. Os progressos do passado geraram expectativas eufóricas que não se concretizaram. “Não somos capazes de distinguir um cérebro esquizofrénico de um cérebro autista e de um cérebro normal”, diz Christof Koch. Mas a investigação moderna está a elevar a neurociência a um novo patamar. “Acho que podemos começar a encaixar as peças umas nas outras.”

Veja o vídeo com dois protagonistas desta reportagem aqui.

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