A partir de um manto de seres coloridos que reveste o interior da gruta Catedral, perto de Sagres, um mergulhador extrai cuidadosamente um fragmento de esponja marinha que será analisado posteriormente em laboratório. 

Texto e Fotografias: João Rodrigues

De lanterna em punho, cientistas mergulham na escuridão de grutas em busca da cura para uma doença que assombra 21% da população mundial.

Foi uma longa viagem até chegarem à terra conhecida desde os Descobrimentos como “O Fim do Mundo”, mas cada quilómetro percorrido valeu a pena. O sol acaba de espreitar na ponta mais sudoeste da Europa continental e estamos no início da década de 1990. 

“Tudo OK? Vamos descer”, avisa Pedro Lima. E naquele instante, um grupo de amigos submerge numa aventura pelo fundo marinho de Sagres, longe de imaginar que iria testemunhar um evento com potencial para mudar a história da neurofisiologia.

Esculpidas nas imponentes falésias da orla costeira de Sagres, as grutas marinhas desempenham um papel importante na produção marinha, refúgio e creche para inúmeras espécies.

Após um mergulho sensacional, o clima de satisfação entre os cinco estudantes de Biologia Marinha foi bruscamente interrompido por um cenário sinistro. O rosto de Susana estava irreconhecível. A face esquerda encontrava-se inchada de tal forma que tinha, pelo menos, o dobro do volume original. De olho fechado e boca descaída, a mergulhadora não mostrava reacção ao toque na área afectada. A face estava completamente anestesiada!  

O complexo de grutas marinhas da Atalaia, esculpido nas imponentes falésias da orla costeira de Sagres ao longo dos últimos 18 mil anos, encontra-se integrado numa área marinha protegida do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. Estes habitats prioritários para fins de conservação são áreas de elevada sensibilidade ecológica. Dotados de características especiais, desempenham um papel importante na produção marinha, refúgio e creche para inúmeras espécies.  Aqui, como no mar profundo, a quantidade de luz disponível, o tipo de hidrodinamismo, a sedimentação e a disponibilidade de alimento permitem a estas salas submersas de rocha exibirem uma biodiversidade repleta de adaptações peculiares.

Vinte e cinco anos depois do incidente, encontro-me na companhia de Pedro Lima, hoje professor convidado de neurofisiologia na Nova Medical School da Universidade Nova de Lisboa e director da empresa de biotecnologia especializada em produtos de origem marinha, Sea4Us. Fui convidado a juntar-me a uma missão de amostragem de seres marinhos nas grutas Catedral e Segredo, as mais emblemáticas do complexo. Os investigadores procuram encontrar um dos tesouros mais valiosos destas águas: uma cura para a dor crónica.   

Segundo investigadores da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), a dor crónica afecta uma em cada cinco pessoas mundialmente e mais de 30% dos adultos portugueses. Esta doença significa uma dor que persiste após a sua causa ter sido tratada. Um soldado que perde um membro durante a guerra é um exemplo clássico que caracteriza esta condição. Neste caso, a parte patológica pode ser curada através de amputação, mas há possibilidade de a vítima continuar com dor num pé que já não possui para o resto da sua vida. 

Esta “dor má” acaba por danificar mecanismos neurofisiológicos de feedback que existem para compensar a dor. Uma vez ultrapassado o período de validade, o nosso organismo deixa de conseguir compensar permanentemente este sofrimento. Desde dor moderada a severa, a origem desta doença pode ser variada: fibromialgia, trauma de membros, neuropatia diabética, dores lombares, cancro, entre outras. O distúrbio chega a ser incapacitante, obrigando os pacientes à reclusão. A falta de concentração e as noites sem dormir roubam a qualidade de vida.

“Sonho um dia contribuir para o alívio deste sofrimento e tenho a certeza de que a resposta reside no interior daquelas cavernas”, revela o meu interlocutor. A alimentar a sua crença estava ainda o antigo episódio de Susana. Veio a descobrir-se mais tarde que a mergulhadora ficara naquele estado por ter coçado a cara após tocar numa rocha coberta de animais coloridos. Naquele momento, Pedro Lima intuiu que o ecossistema estava repleto de substâncias neuroactivas de extremo valor.

Assim que entramos na escuridão destas cavernas, a explosão de cores de seres marinhos iluminados pelas nossas lanternas subaquáticas proporciona-nos um espectáculo de outro mundo. Enquanto pairamos na coluna de água, a sensação de ausência de gravidade transporta-nos para um ambiente quase lunar. O tecto, o chão e as paredes desta catedral submersa cobrem-se com um manto composto por centenas ou milhares de animais de todas as formas e feitios. Entre a multidão, os corais são os residentes que mais dão nas vistas, mas a “caça” deste dia destina-se exclusivamente a estranhos pedaços de borracha colados à parede. Quanto mais bizarros, melhor para os cientistas. Após incontáveis horas passadas abaixo da superfície, observando o quotidiano de espécies cavernícolas e realizando vários testes laboratoriais, a Sea4US constatou que, no interior desta sopa bioquímica e microbiológica que é o mar, as esponjas marinhas ricas em venenos e toxinas, são animais promissores para o combate à dor crónica.

Habitantes do nosso planeta desde o Pré-Câmbrico, as esponjas marinhas são seres primitivos. Conhecem-se actualmente mais de quinze mil espécies amplamente distribuídas por todos os oceanos, desde a superfície até ao limiar dos oito mil metros de profundidade. Com tecidos diferenciados, mas sem músculos, sistema nervoso ou órgãos internos, estas criaturas alimentam-se por filtração de nutrientes através dos poros. São pré-históricos generosos que, ao filtrarem a água, reciclam o lixo e produzem nutrientes para outros organismos marinhos.

No entanto, o que torna estes seres mais fascinantes é a sua estratégia de sobrevivência e luta por espaço. Na arena de combate que é o fundo marinho, estes guerreiros incapazes de se moverem entram na batalha com o auxílio de armas químicas. Através da produção de toxinas, as esponjas impedem o avanço de inúmeras ameaças.
À excepção de tartarugas e nudibrânquios, poucas são as espécies com paladar refinado para tal sabor. 

 

Entre túneis estreitos em que apenas passa um mergulhador de cada vez, galerias imensas capazes de alojar uma frota de autocarros e câmaras secas em que estalactites longas e afiadas pendem do tecto, o trabalho termina após quase duas horas passadas no interior deste queijo suíço. No momento em que os mergulhadores exibem os seus sacos com pedaços de esponjas, a atmosfera de satisfação e dever cumprido desfaz-se instantaneamente, quando uma violenta massa de água invade o local, obrigando-nos a evacuar por razões de segurança. Máxima prudência é o ingrediente essencial para o sucesso das visitas a territórios hostis como estas cavidades.

Ricas em toxinas, as esponjas são animais promissores no combate a inúmeras doenças neurológicas. 

Algumas semanas depois da recolha, Joana Xavier, investigadora e especialista em taxonomia de esponjas marinhas da Universidade de Bergen, recebe as amostras no seu gabinete. É na Noruega que se procede à tarefa de revelar a identidade destes estranhos indivíduos. Longos foram os serões e horas sem dormir para que, após múltiplas extracções de espículas e DNA, todas as espécies se encontrem catalogadas e a bordo do avião que as transporta de regresso à capital portuguesa.

Após uma longa travessia pelos céus europeus, é com enorme entusiasmo que os investigadores recebem a preciosa encomenda, pronta a ser processada no laboratório das instalações que respiram ciência desde o século XIX. Pedro Lima sempre foi cauteloso para não hiperbolizar o trabalho da sua equipa, evitando desconsiderar os possíveis obstáculos. No entanto, com o suporte de fundos europeus e a generosidade de privados, vive nesta ocasião emoções fortes, dada a esperança de substanciar finalmente a convicção que adquirira no dia do fatídico mergulho algarvio. 

No combate à dor crónica, sobretudo no que diz respeito à dor moderada a severa, a morfina tem sido a solução mais aclamada. Embora seja um medicamento momentaneamente reconfortante, os seus efeitos colaterais são preocupantes. Além de problemas respiratórios, habituação e dependência química, este opióide desliga nervos indesejáveis, deixando os pacientes entorpecidos. Actualmente, a dependência é um problema social generalizado. 

O analgésico em desenvolvimento pela Sea4us pretende desligar de forma selectiva apenas os nervos da dor “afectados” (ou doentes), através da modulação de canais iónicos presentes nos nossos neurónios, por onde passa a informação da dor. O processo é complexo, mas as suas vantagens saltam à vista. 

Imaginemos os neurónios do nosso sistema nervoso como estradas que atravessam a fronteira entre dois países. Os iões são automóveis e, através do seu fluxo, geram sinais eléctricos, transformando as estradas em informações de estímulos sensoriais. Algumas estradas são frequentadas por automóveis com mercadorias essenciais, tornando-se mensagens de estímulos importantes; outras são cruzadas por veículos que transportam terroristas prontos a atacar o mesmo, transformando-as em vias de dor crónica.

Em cada uma destas estradas existe um guarda de fronteira – os canais iónicos. Através de um detector eficaz, os oficiais dos postos fronteiriços são informados sobre a origem do perigo e bloqueiam o seu caminho, enquanto as outras vias funcionam normalmente. Esta estratégia melhora sistemas antigos que cortavam o mal pela raiz, bloqueando todos os acessos sem excepção e prejudicando severamente o “país de destino”, da mesma forma que a morfina afecta o nosso organismo. Os detectores de perigo são moléculas produzidas por esponjas marinhas e a responsável pelo bloqueio da dor crónica em específico é o santo graal, tão procurado pela Sea4Us. 

Como se de ginseng se tratasse, criaram-se estratos de esponjas marinhas e, após terem sido partidos em constituintes menores pela equipa da investigadora Ana Lourenço, especialista em química de produtos naturais do Departamento de Química da Universidade Nova de Lisboa, ali estavam eles, os finalistas candidatos ao tão procurado remédio. O ambiente era de alvoroço.

Rodeados por um agregado de máquinas com ar espacial, investigadores da Sea4Us trabalham incessantemente para encontrar uma fórmula química revolucionária.

Entre um amontoado de dados que um agregado de máquinas com ar espacial debitava, o chefe de equipa encontrava-se perplexo e de olhos emocionados. “Não posso acreditar!”, exclamou Pedro Lima com alguma dificuldade, devido à rouquidão repentina que se apoderara da sua voz. Segundos depois, os aplausos que ecoavam na sala e os abraços apertados sinalizavam a descoberta da tão procurada poção mágica. “Conseguimos! Finalmente conseguimos!” E naquele instante triunfal, mais uma página foi escrita no livro de história da neurofisiologia. Um método audaz que conseguiu lançar um ser, à primeira vista tão insignificante, para as luzes da ribalta, mostrando uma vez mais a tremenda importância dos oceanos e de todos os seus residentes sem exceção.

Mergulhado agora em processos burocráticos, o nome da espécie protagonista deste projecto pioneiro será revelado ao mundo em breve. Doravante, a sua fórmula milagrosa será sintetizada artificialmente, de forma a poder conceber generosas quantidades sem prejudicar o ecossistema delicado a que a mesma pertence. Será uma longa caminhada de centenas de testes clínicos até que um dia um medicamento esteja ao nosso alcance.

Segundo o grupo de investigação Coastal Fisheries Research Group do CCMAR, as grutas marinhas são ecossistemas sensíveis a actividades humanas. A protecção destes baús transbordantes de relíquias marinhas tornou-se uma missão decisiva. Hoje, a cura para a dor crónica está mais próxima. Amanhã, talvez outras doenças possam vir a ser tratadas pelos inquilinos misteriosos dos salões subaquáticos do litoral. Quantos mais segredos estarão por descobrir no interior deste reino maravilhoso?

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