O bloco de sedimentos que continha o esqueleto do cão foi transferido em 2012 para o Museu Nacional de Arqueologia, onde a equipa da arqueóloga Mariana Diniz trabalhou.
Texto e fotografias: Alexandre Vaz
No mesolítico, operou-se uma transição determinante para o futuro da humanidade. Gradualmente, comunidades recolectoras e nómadas foram-se convertendo em sociedades agropastoris. No Próximo Oriente, no quadro da revolução neolítica, foram domesticadas ovelhas, cabras, auroques e javalis. Na Europa, esse processo de domesticação começou no fim do Paleolítico e ainda estava em curso no Mesolítico com um único protagonista – o cão.
No final do Verão de 2011, num concheiro do vale do Sado, uma descoberta ajudou a completar este quadro. Preservado pelo ambiente geoquímico do concheiro, o esqueleto de um cão de dimensão média, datado da primeira metade do 6.º milénio a.C., estava deitado sobre o flanco esquerdo, com as patas cuidadosamente recolhidas. Os resultados da datação por radiocarbono e a análise de DNA ajudaram a perceber o processo de domesticação do cão no território nacional.
“A cuidadosa deposição do cadáver na necrópole traduz o significado simbólico que lhe era atribuído por estas populações”, diz a arqueóloga Mariana Diniz, que coordenou, com Pablo Arias, a equipa da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e da Universidade da Cantábria nas escavações do concheiro das Poças de São Bento. Essa importância poderá expressar a valorização do papel do cão como auxiliar de caça, um laço afectivo que ultrapassa a simples relação simbiótica, ou o lugar deste animal na paisagem simbólica dos caçadores-recolectores.
O momento da domesticação do cão tem vindo a ser recuado pelos contributos da arqueologia e da genética. O processo de domesticação de animais selvagens teve uma natureza económica, mas esteve associado a um conjunto “de alterações sociais e mentais que, no limite, distingue as sociedades produtoras, sedentárias e armazenadoras das sociedades de caçadores-recolectores, não-sedentárias, sem acumulação de riqueza”, explica a arqueóloga. “Esse parece um fenómeno profundo de domesticação não apenas da natureza, mas da sociedade e dos seres humanos.” Curiosamente, foi preciso esperar até ao século VII nos mosteiros da Provença para assistir a outra domesticação no espaço europeu – no caso, do coelho –, como documentou a investigação genética de Nuno
Ferrand, coordenador do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos do Porto.
Os vestígios ósseos de um dos mais antigos cães que chegaram até aos nossos dias.
Os concheiros do Sado foram descobertos na década de 1930 pelo engenheiro-agrónomo Lereno Barradas. Na década de 1950, Manuel Heleno, director do Museu Nacional de Arqueologia (MNA), promoveu uma intensa campanha no Sado de que resultou um espólio de milhares de artefactos líticos, objectos de adorno e restos faunísticos, e a identificação de uma centena de enterramentos humanos. O projecto Sado-Meso encontra-se em fase de processamento, em gabinete e laboratório, dos dados recolhidos ao longo de sete anos de trabalhos de terreno.