Há milhares de anos que os habitantes do Gabão usam a planta psicoactiva iboga – para evocar antepassados e espíritos, verem-se em vidas passadas e acederem ao seu subconsciente para fins de crescimento pessoal e revelação. Fotografia de Julien Coquentin, Hans Lucas/Redux.
A maior parte da ibogaína, um fármaco que pode ajudar na cura de traumas e adicções, provém de plantas de iboga contrabandeadas do Gabão. À medida que a planta entra no mercado do comércio justo, espera-se que os regulamentos permitam alcançar equidade e sustentabilidade.
Texto: Rachel Nuwer
Aloïse Amougha recorda-se perfeitamente daquela noite, há 30 anos, em que um espírito o visitou e mudou a sua vida. “Tens de plantar iboga”, disse-lhe. “E com essa iboga, tens de curar o mundo.”
Amougha teve essa visão enquanto estava absorvido pelo espírito místico de uma cerimónia de iniciação Bwiti, um ritual tradicional praticado por muitas das cerca de 50 comunidades do Gabão. Os iniciados no Bwiti bebem ou comem Tabernanthe iboga — uma árvore de aspecto arbustivo cujas raízes contêm um poderoso composto psicoactivo chamado ibogaína. O nome deriva da palavra Tsogho “curar” e a iboga cresce em vários países da África Central. No entanto, as suas ligações culturais mais fortes são com o Gabão, onde uns estimados cinco por cento dos 2,3 milhões de cidadãos do país praticam o Bwiti e muitas mais utilizam a iboga em contextos informais.
A iboga induz um estado semelhante a um sonho no qual as pessoas podem encontrar os seus antepassados ou verem-se a si próprias em vidas passadas. Podem ser-lhes reveladas verdades essenciais sobre si ou, como no caso de Amougha, serem visitadas por espíritos. Amougha diz que o seu espírito não especificou quantas sementes de iboga deveria plantar, nem lhe explicou por que deveria fazê-lo. Amougha acreditou que a resposta acabaria por lhe ser revelada. Ele e a sua mulher, Jacqueline, começaram a plantar iboga – e nunca mais pararam. Três décadas mais tarde, uma verdadeira selva com mais de 4.000 árvores rodeia a sua modesta casa no nordeste do Gabão.
A iboga é frequentemente consumida durante cerimónias Bwiti, uma tradição praticada por muitas comunidades étnicas do Gabão. As cerimónias duram frequentemente a noite toda e envolvem rituais complexos, veste requintadas e música. Estima-se que cinco por cento dos 2,3 milhões de residentes do Gabão sejam iniciados no Bwiti. Fotografia de Jorge Fernández, Getty Images.
Em Fevereiro, Lee White, ministro do Ambiente do Gabão, assinou uma autorização para que a iboga do casal fosse a primeira a ser exportada legalmente do país, bem como o primeiro material psicoactivo a ser comercializado ao abrigo do Protocolo de Nagoya, um acordo suplementar à Convenção da Diversidade Biológica, que entrou em vigor em 2014. O protocolo pretende impedir a exploração cultural e natural, estabelecendo uma partilha de benefícios com as pessoas e os locais de origem dos recursos genéticos.
Recentemente cerca de um quilograma da iboga do casal foi enviado para a Terragnosis, uma empresa canadiana criada para fornecer e distribuir iboga comercializada de acordo com o protocolo. No Canadá, será submetida a uma análise química e processada em alcalóides puros que serão posteriormente entregues à Ambio Life Sciences, um grupo de instalações clínicas no México que funciona como piloto para o novo programa de comercialização legal. Aqui, os terapeutas utilizarão o extracto de iboga para tratar uma clientela maioritariamente americana com distúrbios de trauma e abuso de substâncias.
Se tudo correr bem, será apenas a primeira de muitas colheitas que criarão uma nova indústria de comércio justo de iboga, assente em princípios de equidade, reciprocidade e sustentabilidade. “Os toxicodependentes que estão a curar-se no Ocidente estarão, simultaneamente, a ajudar as comunidades do Gabão”, diz Yann Guignon, de ascendência francesa e gabonesa, fundador e co-director da Blessings of the Forest, uma organização sem fins lucrativos que lidera o esforço do comércio justo desta substância.
“Eu e a minha mulher, Jacqueline, esperamos que a árvore traga o melhor ao mundo”, comentou Amougha sobre o envio-piloto.
A iboga cresce naturalmente no Gabão, incluindo no nordeste, onde o rio Ivindo atravessa a Vila de Makokou. As comunidades rurais vizinhas formaram associações de aldeias que estão a criar plantações sustentáveis com a ajuda da Blessings of the Forest, uma organização gabonesa sem fins lucrativos. Fotografias de Rachel Nuwer.
A ibogaína é cada vez mais procurada fora do Gabão para o tratamento da perturbação de stress pós-traumático, sobretudo pelos veteranos de guerra. Entretanto, os cientistas continuam a tentar perceber como é que a ibogaína ajuda as pessoas com perturbações de abuso de substâncias a vencerem as suas adicções, evitando o doloroso processo da ressaca. Se a ibogaína conseguir impedir recaídas, poderá “revelar-se verdadeiramente transformadora para a medicina da adicção”, diz Deborah Mash, professora emérita da Universidade de Miami e CEO da DemeRex, uma empresa que está a desenvolver esforços para obter aprovação da Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA) para a ibogaína.
No entanto, por detrás das crescentes histórias de vidas mudadas e salvas, esconde-se uma verdade desconfortável: a maior parte da iboga e ibogaína utilizadas por médicos de todo o mundo tem origem em plantas extraídas ilegalmente das florestas do Gabão e contrabandeadas a partir dos Camarões.
“Sabemos que a iboga sai do Gabão para ser vendida na Internet”, diz Natacha Nssi Bengone, directora-adjunta do Ministério das Águas e da Floresta, do Mar e do Ambiente do Gabão. “Isto é feito sem o acordo do Gabão.”
Segundo Max Ondo, chefe do departamento social da associação sem fins lucrativos Conservation Justice, que pretende pôr fim ao comércio ilegal de vida selvagem no Gabão, os camaronenses são os principais traficantes de iboga. Compram uma árvore de iboga por “uns 16 dólares”, diz Ondo, e quando voltam aos Camarões vendem as raízes “online, por mais dinheiro, a europeus ou americanos”. Embora a ibogaína “salve mesmo vidas”, diz Kirran Ahmad, médico investigador de psicadélicos do Colégio Imperial de Londres encarregue de assegurar os benefícios mútuos entre o Gabão e o Ocidente na organização Blessings of the Forest, o que costuma faltar na experiência ocidental com a droga é “a narrativa daquilo que acontece no Gabão. Os escravos foram extraídos do Gabão e para mim isto que está a acontecer com a iboga é outro processo extractivo”.
A ibogaína é o principal componente psicoactivo da iboga. As maiores concentrações encontram-se nas raízes e variam consoante a química do solo o clima e a competição com outras plantas. O fruto da iboga, cuja cor varia desde tangerina a amarelo vivo, também pode conter ibogaína. Fotografias de Rachel Nuwer.
O novo programa de comércio justo de iboga pretende resolver este problema oferecendo uma alternativa legal e sustentável. O esforço tem os seus críticos e ainda não se sabe se médicos e clínicas no estrangeiro irão apoiar o programa escolhendo iboga de comércio justo, em vez de continuarem a comprar o produto mais barato online – que é provavelmente extraído ilegalmente.
O que está em jogo, segundo Denis Massande, presidente da Associação para o Desenvolvimento da Cultura dos Povos Pigmeus do Gabão, são os direitos das comunidades indígenas do Gabão e o futuro de uma peça fundamental do seu legado cultural e ecológico.
“Nunca recusámos partilhar a iboga com outras pessoas”, diz Massande. “Mas agora que este comércio da iboga é conhecido em todo o mundo, se não houver regulamentação a iboga irá desaparecer.”
A farmacopeia da natureza
Evidências arqueológicas descobertas em vestígios de carvão encontrados numa gruta no Gabão indicam que os povos indígenas já poderiam usar iboga há, pelo menos, 2.000 anos. Segundo as lendas, os pigmeus Babongo descobriram acidentalmente os efeitos psicoactivos da iboga depois de verem animais consumir a planta. Os pigmeus partilharam o que descobriram com o povo Bantu, que compõe a maioria da população actual do Gabão.
Na aldeia Ebyeng, junto a Makokou, Delphine Minko, Akoumanlo de solteira, uma mestre de cerimónias Bwiti, prepara a primeira colheita legal e de comércio justo de iboga para exportação. Ela e as suas colegas trabalharam durante a noite removendo a camada exterior de um quilo de raízes de iboga, secando a camada interior sobre o fogo, reduzindo-a a pó – e imbuindo o material sagrado com as suas bênçãos. Fotografias de Rachel Nuwer.
No Ocidente, farmacologistas franceses e suíços isolaram a ibogaína das raízes de iboga em 1901. Pouco depois, farmácias em França vendiam comprimidos de ibogaína para tratar uma série de maleitas e para permitir “esforços físicos ou mentais acima da média por pessoas saudáveis”. Na década de 1960, alguns psiquiatras do Chile e dos EUA. começaram a usar a ibogaína como agente terapêutico e a capacidade do fármaco para vencer a adicção revelou-se um ano mais tarde, quando Howard Lotsof, nativo da cidade de Nova Iorque, descobriu que esta aliviava o seu desejo de consumir heroína, sem quaisquer sintomas de ressaca.
Os EUA baniram todos os usos e praticamente todos os estudos sobre a ibogaína na década de 1970, no âmbito da Lei de Substâncias Controladas, e muitos outros países proibiram-na, sobretudo na Europa. Na África do Sul, na Nova Zelândia e no estado de São Paulo, no Brasil, a ibogaína é vendida com prescrição médica. Na maioria dos outros sítios, encontra-se numa numa zona legal cinzenta – não é explicitamente aprovada para uso médico, mas também não é expressamente proibida.
A manta de retalhos da legislação global conduziu a uma explosão do turismo médico relacionado com a ibogaína, com 80 a 100 fornecedores de iboga – sobretudo no México, Brasil, Costa Rica, Colômbia e África do Sul – e clientes maioritariamente norte-americanos e europeus que pagam frequentemente 5.000 a 15.000 dólares por uma única sessão terapêutica. A procura é crescente e estão “sempre a aparecer” novas clínicas, diz Juliana Mulligan, fundadora da Inner Vision Ibogaine, sediada em Nova Iorque, que presta serviços de consultoria a pessoas tratadas com ibogaína e clínicas que prescrevem ibogaína.
As estimativas do número de pessoas fora do Gabão que já experimentaram ibogaína desde a década de 1960 variam entre 10.000 e 40.000, segundo Tobias Erny, director executivo da Global Iboga Therapy Alliance, uma organização sem fins lucrativos dedicada a apoiar usos sacramentais e terapêuticos da iboga. “Em 2006, cerca de 3.000 pessoas já tinham experimentado ibogaína fora de África, mas estimamos que este número tenha subido em flecha desde então.”
É legal comprar iboga para uso pessoal no Gabão, mas o preço no país aumentou cerca de 800 por cento ao longo da última década devido à crescente procura no Ocidente. David Mbilou, da organização sem fins lucrativos gabonesa Ebando, que se dedica a preservar conhecimentos e práticas tradicionais, comprou este pequeno frasco de iboga processada num mercado em Libreville para uso cerimonial e terapêutico. Fotografias de Rachel Nuwer.
Os dados recolhidos por alguns utilizadores ocidentais apontam o potencial terapêutico da iboga. Entre 1996 e 2005, Mash geriu uma clínica de ibogaína na ilha de St. Kitts, onde supervisionou o tratamento de 277 pacientes, a maioria dos quais conseguiram desintoxicar-se com sucesso de opióides ou cocaína após a toma de uma única dose. “Vi isto transformar mesmo as pessoas, tirando-as de um ciclo intratável de dependência de drogas e libertando-as”, diz Mash.
Um estudo realizado em 2020 com 51 veteranos das Forças de Operações Especiais dos EUA. que fizeram terapia no México com ibogaína e 5-MeO-DMT, outra substância psicadélica, revelou enormes reduções nos sintomas de stress pós-traumático dos participantes, entre outras coisas. A maioria dos veteranos também descreveu a experiência como um dos acontecimentos com maior importância espiritual da sua vida. “A ibogaína faz o indivíduo mergulhar em sentimentos profundos e ajuda-o a dar-lhes sentido de uma forma que a reabilitação tradicional não consegue remotamente fazer”, diz Mulligan, que usou ibogaína para pôr fim a uma dependência de opióides de sete anos, depois de os tratamentos normalmente prescritos não a terem ajudado.
A ibogaína pode ser fabricada em laboratório, mas ainda não é possível fabricá-la em grande escala dessa forma, e pode ser derivada de outras espécies de plantas, especialmente a Voacanga africana, uma árvore tropical africana. A iboga também cresce fora do Gabão. Ralf Vogtel, um cidadão alemão iniciou uma plantação intensiva de iboga no Gana em 2016 quando soube que a procura estava a aumentar e a oferta natural a diminuir. Agora tem 40.000 árvores em 69 hectares e exporta para todo mundo. “É um bem transaccionável, tal como o cacau e as bananas”, afirma. “A procura está a crescer em todo o mundo.”
No entanto, pensa-se que a iboga do Gabão, em particular, está imbuída com a boa vontade de eternidades de uso tradicional e que contém uma complexidade química ordenada pela natureza que não pode ser replicada em nenhuma outra parte do mundo ou em laboratório.
“A minha iboga vem do Gabão”
No Gabão, é legal colher iboga fora de áreas protegidas para uso tradicional. No entanto, à excepção do carregamento-piloto que será despachado esta semana, todos os que a importaram do Gabão violaram a lei e provavelmente apoiarão a extracção ilegal da árvore, diz, Guignon. “Quando perguntamos aos médicos onde obtiveram os seus remédios, eles não respondem.”
Um homem gabonês dança numa cerimónia Bwiti em Libreville. Ao criar um programa de comércio justo de iboga, o Gabão espera preservar o seu legado natural e cultural. A procura explosiva põe as tradições em risco à medida que bandidos assaltam os parques nacionais e compram iboga aos aldeões. Grande parte da iboga é contrabandeada para os Camarões, onde é vendida online a compradores estrangeiros por milhares de dólares por quilo. Fotografia de Steeve Jordan, Afp/Getty Images.
O Gabão nunca fez um levantamento nacional da sua iboga, por isso é impossível saber se a extracção ilegal está a causar um declínio e as autoridades não registam as apreensões de contrabando. O preço local aumentou 800 por cento na última década e algumas pessoas dizem que a iboga está a tornar-se mais rara e até que desapareceu de algumas regiões.
Solange Ngouessono, vice-directora de operações na agência de parques nacionais do Gabão, tem conhecimento de 20 detenções relacionadas com a iboga entre 2011 e 2012, quando trabalhava no parque nacional de Mayumba. Ngouessono e os seus colegas apreenderam 88 sacos de raízes de iboga, com cerca de dez quilogramas, e duas grandes garrafas contendo raiz em pó. “Os traficantes tentavam vender os seus produtos em Libreville e noutros locais”, diz Ngouessono.
Em Dezembro de 2018, vigilantes do parque nacional de Mayumba apreenderam cerca de 90 sacos de iboga, com um total de cerca de 900 quilogramas. Alguns meses mais tarde, diz Nssi Bengone, fotografias de “enormes quantidades” de iboga foram descobertas no telemóvel de um cidadão camaronense detido no Gabão por tráfico de marfim. “Aquele caçador furtivo de marfim também deveria estar interessado em iboga”, diz ela.
Em Fevereiro de 2019, as autoridades do Gabão aprovaram legislação, proibindo a exportação de iboga sem uma licença do governo. “Nunca vimos tal autorização até agora”, diz Bengone. “Mas podemos ver iboga à venda na Internet publicitada como ‘esta é do Gabão’”.
Com efeito, dias depois de me juntar a um grupo de Facebook de interessados em ibogaína, um membro enviou-me uma mensagem oferecendo “produtos de iboga de alta qualidade” a 800 dólares porque cada 225 gramas. Eu poderia usar a iboga, disse-me, para tratar “todos os tipos de adicção, depressão, stress e problemas psicológicos” e como “sacramento espiritual”.
“A minha iboga vem do Gabão”, acrescentou, numa tentativa de fechar o negócio.
Como a iboga tem valor universal, a ameaça representada pela sua extracção ilegal “não é apenas um problema do Gabão”, diz Henri-Paul Moubeyi Bouale, presidente da Associação Nacional de Bwiti Missoko. “Proteger esta planta é uma questão que diz respeito ao mundo inteiro.”
“Estou a lutar contra o racismo e a biopirataria”
Yann Guignon, da Blessings of the Forest, é um antigo homem de negócios ríspido e pode parecer num primeiro contacto um líder inesperado da luta em prol do comércio justo da iboga. No entanto, sempre sentiu afinidade pelas culturas africanas e antipatia pelo racismo. Filho de um pai francês branco e de uma mãe sul-africana multirracial, cresceu num bairro diversificado em Angers, onde a maioria dos seus amigos eram negros e ele se envolvia frequentemente em lutas com miúdos brancos que faziam comentários racistas.
No início da década de 2000, Guignon arranjou trabalho como director de vendas para a África sub-saariana numa empresa de tecnologias de informação e comunicações em Paris. A cocaína e o álcool eram comuns no seu local de trabalho e ele começou a consumir ambas as substâncias, por vezes de forma excessiva.
No Gabão, as raízes da iboga (esquerda) são processadas e transformadas num pó seco (frasco à direita) para consumo. As raízes contêm pelo menos 13 alcalóides, incluindo a ibogaína, que também podem ser sintetizados em laboratório ou isolados a partir de outras plantas. A iboga do Gabão é valorizada sobretudo por estrangeiros que a usam para efeitos terapêuticos ou de crescimento pessoal. Fotografia de Nigel Dodds, Alamy.
Em 2004, um gestor de projecto gabonês de uma empresa de serviços de engenharia de TI reparou no consumo de cocaína de Guignon e ofereceu-se para lhe organizar uma sessão de tratamento com iboga. Guignon nunca ouvira falar em iboga, mas concordou. “Foi como se estivesse a ler a história da minha vida de uma forma muito diferente e aquilo explicou-me mesmo porque é que eu era como como era”, diz sobre a sua difícil, mas profunda primeira experiência.
Guignon nunca mais consumiu cocaína e, passados alguns anos, demitiu-se e mudou-se para o Gabão. Iniciou-se no Bwiti, obteve cidadania gabonesa e tornou-se aprendiz de Jean Noël Gassita, um farmacologista e reconhecido especialista em iboga que morreu em Março de 2022. Gassita explicou-lhe que o ocidente tinha extraído iboga do Gabão durante dois séculos e que agora se estava a tornar mais difícil para os gaboneses encontrarem e conseguirem comprar a planta sagrada. Guignon decidiu ajudá-lo a encontrar uma solução. “Para mim é exactamente o mesmo que eu fazia quando era adolescente – estou a lutar contra o racismo”, afirma.
Em 2011, Gassita apresentou Guignon a Sylvia Bongo Ondimba, a primeira-dama do Gabão, que sugeriu a Guignon investigar a iboga no contexto do Protocolo de Nagoya. Guignon elaborou um relatório exaustivo, apresentando toda a informação disponível sobre a iboga, incluindo as ameaças representadas pelos caçadores furtivos. Ele e os seus colegas da Blessings of the Forest passaram a década seguinte a desenvolver um enquadramento legal e social que pudesse fazer face à crescente procura por iboga no estrangeiro, beneficiando simultaneamente os gaboneses rurais e protegendo o ambiente.
Nagoya é para todos
Agora, em teoria, qualquer pessoa do Gabão pode exportar iboga ao abrigo da legislação, modelada de acordo com o Protocolo de Nagoya, desde que sejam cumpridos determinados requisitos ambientais e de partilha de benefícios.
A Blessings of the Forest está a ajudar os residentes rurais a fazê-lo, incentivando-os a formarem associações e fornecendo o apoio financeiro e técnico necessário para criar plantações de iboga. A Blessings também estabelece ligações entre associações de aldeias e compradores internacionais, ajudando a tratar dos documentos de exportação. Em troca, as comunidades comprometem-se a não cortar árvores de grande porte para criar espaço para a iboga, não explorar ilegalmente madeira ou animais selvagens e reinvestir pelo menos metade dos seus rendimentos das vendas de iboga em projectos comunitários, como escolas e infra-estruturas.
Até à data, 13 associações de aldeias, representando mil pessoas, participam nesta parceria, plantando mais de 24.000 árvores de iboga em 14 plantações. Trabalhar com a Blessings of the Forest é uma “vitória para todos”, segundo Hubert-bled Elie-Nloh, presidente da A2E, uma associação que criou duas plantações junto a Makokou. (Amougha e Jacqueline são membros.) “Representa a conservação da nossa cultura, em primeiro lugar, e também a conservação da biodiversidade”, diz Elie-Nloh. “A iboga é o cavalo de guerra que lidera o ataque do desenvolvimento comunitário.”
Guignon diz que, quando o programa de comércio justo estiver bem implementado, a prioridade seguinte da Blessing of the Forest será convencer – ou se necessário obrigar legalmente – os médicos e as empresas farmacêuticas que usam ibogaína pelo mundo fora a adoptarem algum tipo de reciprocidade para com o Gabão. Ele também planeia ajudar os líderes Bwiti a contestarem as patentes actuais e futuras do Ocidente para a ibogaína – algo a que chama “síndrome de Colombo” – com base no facto de os direitos intelectuais de propriedade já pertencerem ao Gabão. “Eles dizem que descobriram coisas que já eram feitas por pessoas cá”, diz Guignon. “É biopirataria.”
Alguns grupos internacionais apoiam fortemente estes esforços. Ricard Faura é gestor de programa no Centro Internacional de Educação, Pesquisa e Serviço Etnobotânico e assessor do Fundo para a Conservação da Medicina Tradicional Indígena, que apoia a Blessings of the Forest. Ele diz que, se nada for feito, “num futuro não muito distante, não haverá mais iboga em estado selvagem e as pessoas não terão oportunidade de praticarem a sua tradição”.
Existem, contudo, pessoas que temem que o novo enquadramento legal do Gabão seja manobrado para beneficiar alguns grupos e excluir outros. “A ideia da Blessings of the Forest é muito nobre”, diz Tobias Erny, da Global Iboga Therapy Alliance. Ele teme que as novas regras sejam usadas “para ajudar uma certa clique muito próxima da classe dirigente do Gabão a criar uma espécie de monopólio da iboga”.
“Toda a exploração de recursos no Gabão é controlada pelas famílias com poder”, acrescenta Georges Oberdeno Essongue, co-fundador da empresa gabonesa SoVaTer, que também pretende participar no comércio justo de iboga. Oberdeno Essongue teme que ele e os seus colegas não venham a pertencer às “poucas pessoas” que provavelmente receberão licença para exportar iboga.
Para o comércio de iboga ser verdadeiramente equitativo, tem de estar “ligado ao povo indígena”, diz Massande da associação dos Pigmeus. “É uma forma de obtermos algo em troca daquilo que demos ao mundo”.
Respondendo a estas preocupações, Nssi Bengone reforça: “o Protocolo Nagoya é para todos – em particular, para as comunidades locais”.
A dádiva do Gabão
Ainda não sabemos se o comércio justo da iboga vingará. Mas numa manhã nublada de Novembro, na casa de Amougha e Jacqueline, esse futuro parecia possível.
Amougha conduziu um grupo de membros da A2E e da Blessings of the Forest através do seu quintal, transformado num lamaçal depois de uma tempestade. Parou diante da primeira árvore de iboga que ali plantou no início da década de 1990 – uma beleza com 20 metros de altura e folhas de um tom brilhante de verde lima – enquanto o grupo curvava a cabeça atrás dele. “Estou a chamar o espírito de Deus”, disse Amougha, dirigindo-se à árvore com um tom reverente. “Pessoas desta Terra e pessoas a toda a nossa volta, esta madeira vai pôr-vos melhores e mais fortes. Que elas saibam que veio do Gabão.”
Amougha pediu licença à árvore para a cortar e transmitiu a sua resposta à multidão: “chegou a hora de eu partir para dar espaço para outras árvores respirarem”.
E assim, catanas agitaram-se no ar e pás mergulharam na terra rica. Uma hora mais tarde, a árvore antiga e muitas outras tinham sido reduzidas a alguns sacos de raízes cobertas de lama. Cada um dos cinco membros da A2E recebeu 16 dólares por um trabalho que normalmente lhes renderia menos de um dólar. Quanto às raízes, a associação A2E e Amougha e Jacqueline receberam pagamentos superiores a 900 dólares – cerca de quatro vezes o salário médio do Gabão. Nesta região rural empobrecida onde os elefantes comem as culturas dos agricultores, as doenças abundam e os serviços básicos como a electricidade são inexistentes, a iboga pode “curar toda a comunidade, depois torna a vida mais fácil”, diz Amougha.
As raízes daquela primeira colheita foram entregues a alguns quilómetros de distância, junto à uma estrada de terra batida, a um grupo de sacerdotisas adornadas com as insígnias Bwiti, os corpos pintados de branco-pálido e o rosto decorado com pontos vermelhos dispostos em impressionantes padrões geométricos. As mulheres passaram a noite a preparar cerimonialmente a iboga para exportação. Sentadas no chão, rasparam meticulosamente a camada exterior de cada raiz, enquanto cantavam ao som do inebriante dedilhar de uma ngombi, uma espécie de harpa que supostamente liga o mundo dos espíritos ao mundo terreno. Trabalhando com lotes, Delphine Minko, Akoumanlo de solteira, uma mestre de cerimónias Bwiti tostou as raízes limpas sobre uma fogueira ao ar livre e reduziu-as a um pó fino. “A iboga mostra-nos como viver”, disse, com a Lua a iluminar um fiapo de fumo que emoldurava o seu rosto. “É como uma grande escola de vida.”
Na manhã seguinte, Guignon e os seus colegas foram buscar a iboga abençoada e processada, pagaram 79 dólares a cada mulher e iniciaram a acidentada viagem de 14 horas de carro rumo a Libreville. Pouco depois, uma embalagem preciosa, a primeira a ser enviada com espírito de reciprocidade, atravessaria o Atlântico e chegaria a um novo continente onde a sua verdadeira viagem irá começar – nas mentes das pessoas que vão ingeri-la para se curarem.
E em todas essas viagens intensamente pessoais, talvez a bênção de Amougha — dada a uma árvore a qual ele dedicou metade da sua vida – ilumine a escuridão e facilite a sua passagem.