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O neurocientista Vitaly Napadow, da Faculdade de Medicina de Harvard e do Hospital Geral de Massachusetts, estuda a forma como o cérebro concretiza a percepção da dor. Para tal, recorre à electroencefalografia para monitorizar os padrões das ondas cerebrais dos pacientes com dor crónica na região lombar. Fotografia: Robert Clark

Texto: Yudhijit Bhattacharjee

Fotografias: David Guttenfelder, Robert Clark, Robin Hammond, Craig Cutler e Mark Thiessen

"A dor era um problema menosprezado pela profissão médica, pois não existiam intervenções seguras e eficazes." - Neurobiologista Clifford Woolf, Hospital Infantil de Boston

Há três décadas, enquanto lutava contra o cancro, Tom Norris fez radioterapia na virilha e perna esquerdas. O seu cancro desapareceu e não voltou. Contudo, ficou com uma dor penetrante, que lhe subia, ao longo da coluna, desde a anca até ao pescoço.

Desde então, Tom, agora com 70 anos, nunca viveu um dia sem dores. Isso encurtou a sua carreira como funcionário de manutenção de aeronaves na Força Aérea.
A dor tem sido uma companheira constante, bem como a bengala que usa para andar. Nos dias maus, a dor é tão insuportável que ele permanece na cama. Mesmo nos dias melhores, a dor limita seriamente a sua capacidade de locomoção, impedindo-o de desempenhar tarefas simples como levar o lixo à rua. Por vezes, a dor é tão avassaladora que ele sente dificuldade em respirar. “É como se estivesse a afogar-me”, conta.

Morador num subúrbio de Los Angeles, Tom Norris conversa comigo sentado num banco comprido e almofadado que lhe permite trocar de posição. Homem alto e cordial, tornou-se especialista em usar uma máscara de serenidade para ocultar a dor. Nunca o vi retrair-se. Quando o sofrimento é mais intenso, Marianne, a mulher com quem está casado há 31 anos, diz que se apercebe de uma certa imobilidade no seu olhar.

Durante uma cirurgia, Brent Bauer vê aliviada a sua dor jogando um jogo de realidade virtual (RV) chamado SnowWorld. O cirurgião Reza Firoozabadi, do Centro Médico UW Medicine’s Harborview, especializado em ortopedia e traumatologia, testou a eficácia do jogo, desenvolvido por Hunter Hoffman, um pioneiro em realidade virtual no alívio da dor. Brent caiu de uma altura de três andares e partiu vários ossos, incluindo a pélvis. Foi submetido à remoção de um pino de fixação da bacia sem RV. “Foi intenso”, descreveu. O outro foi removido com RV. “Foi uma distracção muito agradável e tive muito menos dores”, disse. Brent participou num estudo que sugere que a RV poderá diminuir a necessidade de anestesia geral, reduzindo riscos e custos. Fotografia: Craig Cutler

Quando a dor começou a apoderar-se da sua vida, Tom procurou consolo. Tornou-se defensor das pessoas com dor crónica e fundou um grupo de apoio. E há 30 anos que procura algum alívio. Durante muitos desses anos, tomou fentanil, um poderoso opióide que envolveu a sua dor “como um cobertor grosso”, mas que o manteve “na horizontal e desligado, no essencial”. Experimentou a acupunctura, que foi útil em certa medida, assim como picadas de abelha, terapia magnética e cura pela fé, que não o foram. Agora, gere a dor com fisioterapia, que lhe melhora a mobilidade, e injecções de esteróides na coluna, que acalmam os seus nervos inflamados.

 

À semelhança de Tom Norris, muitos milhões de pessoas em todo o mundo vivem com dor crónica, provocada por causas múltiplas – do cancro à diabetes, passando por patologias neurológicas, entre outras. Partilham uma fonte idêntica de sofrimento: a agonia física que lhes perturba a vida, de forma intermitente ou constante. Não é invulgar os doentes com cancro, que padecem de dores graves e implacáveis após quimioterapia, decidirem abandonar os tratamentos para se entregarem ao derradeiro alívio da morte.

No fim da década de 1990, quando os médicos começaram a prescrever opióides como a oxicodona para alívio da dor crónica, centenas de milhares de americanos ficaram viciados nestes fármacos, que por vezes provocam sensações de prazer e mitigam a dor. Mesmo depois de os riscos se tornarem evidentes, a dependência de opióides persistiu, em parte por existirem poucas alternativas. Nenhum analgésico novo foi desenvolvido nas duas últimas décadas.

Ao mesmo tempo, o consumo indevido de analgésicos (idealmente concebidos para gerir a dor aguda a curto prazo) aumentou desenfreadamente nos EUA. Em 2017, cerca de 1,7 milhões de norte-americanos abusavam do consumo de substâncias como resultado de lhes terem sido prescritos opióides, segundo o Censo Nacional de Saúde e Uso de Fármacos. Nos EUA, todos os dias morrem cerca de 130 pessoas por sobredosagem de opióides, uma estatística sombria na qual se incluem as mortes tanto por analgésicos de prescrição médica como por narcóticos, incluindo a heroína.

Tornou-se urgente compreender a biologia da dor e descobrir formas mais eficazes de gerir a dor crónica. Os investigadores estão a conseguir progressos significativos, descrevendo pormenorizadamente a maneira como os sinais da dor são comunicados ao cérebro pelos nervos sensoriais e como o cérebro interpreta a sensação de dor. Os cientistas também estão a descobrir os papéis representados por genes específicos na regulação da dor, o que ajuda a explicar por que razão a percepção e a tolerância à dor são tão variáveis.

Estes progressos estão a mudar, radicalmente, a forma como médicos e cientistas encaram a dor e, mais especificamente, a dor crónica, definida como dor que dura mais de três meses. Tradicionalmente, a ciência médica considerava a dor como a consequência de uma lesão ou doença. Em muitos doentes, porém, a dor gerada pela lesão ou maleita persiste muito depois da resolução da causa subjacente. Nestes casos, a dor torna-se a doença.

Há esperança de que este conhecimento, associado à crescente compreensão da dor, conduza a novas terapias para a dor crónica, incluindo alternativas aos opióides que não sejam viciantes. Tom Norris e outros pacientes ficam entusiasmados com estes avanços. Os investigadores, por outro lado, estão a testar estratégias alternativas, como a estimulação do cérebro com impulsos eléctricos de baixa intensidade para alterar a percepção da dor e utilizar a capacidade intrínseca do organismo para aliviar a sua própria dor.

O neurobiólogo Clifford Woolf, do Hospital Infantil de Boston, um especialista da dor, sublinha o lado trágico de ter sido necessária uma “catástrofe social” para a dor receber a atenção que merece por parte de cientistas e médicos, mas o ímpeto que isso conferiu à investigação é positivo. “Acho que podemos ter um impacte enorme no nosso conhecimento da dor ao longo dos próximos anos e isso contribuirá, definitivamente, para novas opções de tratamento”, diz.

A capacidade de sentir a dor é uma das dádivas da natureza à humanidade e ao resto do reino animal. Sem ela, não retrairíamos reflexamente a mão quando tocamos num fogão quente, nem saberíamos que devemos evitar caminhar descalços sobre vidro partido: estes gestos, motivados por uma experiência imediata ou recordada da dor, ajudam-nos a minimizar os riscos de lesões físicas. Evoluímos de modo a sentir dor porque os nervos sensoriais funcionam como um sistema de alarme essencial à autopreservação.

As sentinelas deste sistema são um grupo especial de neurónios sensoriais conhecidos por nociceptores, localizados junto da coluna vertebral, com fibras sensitivas que se estendem pela pele, pulmões, intestinos e outras partes do corpo. Estão equipados para sentir diferentes tipos de estímulos nocivos como o corte de uma faca ou a queimadura do ácido. Quando detectam uma destas ameaças, os nociceptores transmitem sinais eléctricos para a medula espinal, que os retransmite ao cérebro através de outros neurónios. Neurónios de nível superior no córtex (o destino final desta via ascendente da dor) traduzem estes dados, transformando-os em percepção da dor.

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No Parque Nacional de Chu Yang Sin, no Vietname, Zoltan Takacs, explorador da National Geographic, encontra um escorpião venenoso, que fica azul quando exposto a luz ultravioleta. Recolhendo veneno em todo o mundo, Zoltan espera identificar novos fármacos para a dor porque actualmente existem poucas alternativas eficazes aos opióides. O veneno já produziu um sucesso notável. Cientistas criaram um fármaco para dor crónica derivado de um dos animais mais mortíferos do mundo: o caracol marinho da espécie Conus magus. Fotografia: David Guttenfelder

Ao reconhecer a dor, o cérebro tenta contrariá-la. As redes neuronais do cérebro enviam sinais eléctricos pela medula espinal abaixo, naquela que é conhecida como a via descendente da dor, desencadeando a libertação de endorfinas e outros opióides naturais. Estas substâncias inibem os sinais ascendentes da dor, reduzindo efectivamente a quantidade de dor sentida.

Os cientistas já tinham reconstituído o perfil de base das vias ascendentes e descendentes da dor quando Clifford Woolf iniciou o seu trabalho na área, na década de 1980. Homem de voz suave com olhos que parecem transbordar bondade, o especialista ficou impressionado pelas dificuldades sofridas pelos doentes observados no bloco operatório enquanto estudava medicina. “Era evidente que todos tinham dores graves”, diz. 

Clifford lembra que o utente sénior parecia quase ofendido quando se queixavam. “Eu disse ao cirurgião: ‘Por que não faz nada?’”, recorda.
“E ele disse: ‘Estava à espera de quê? Acabam de fazer uma operação. Hão-de ficar melhores.”

“A dor era um problema subestimado pela profissão médica e de forma substancial, pois não existiam intervenções seguras e eficazes”, diz. Esta tomada de consciência deu origem ao desejo de compreender a natureza da dor.

Utilizando ratos como cobaias, Clifford Woolf tentou aprender mais sobre a transmissão da dor. Nas suas experiências, registou a actividade dos neurónios da medula espinal dos animais, após uma breve aplicação de calor sobre a sua pele. Como esperava, via aqueles neurónios dispararem rapidamente quando os sinais lhes eram transmitidos pelos neurónios nociceptivos. No entanto, chegou a uma conclusão inesperada. Quando um pedaço de pele submetido várias vezes a calor ficou inflamado, os neurónios na medula espinal alcançaram um elevado estado de sensibilidade. Bastava tocar na área em redor do pedaço de pele previamente ferido para fazer os neurónios disparar.

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Isto demonstrava que a lesão da pele sensibilizara o sistema nervoso central, levando a que os neurónios da medula espinal transmitissem sinais de dor ao cérebro mesmo quando a informação vinda dos nervos periféricos era inócua. Desde então, outros investigadores demonstraram este fenómeno nos seres humanos, provando que desencadeia vários tipos de dor, como quando a área em redor de um corte ou de uma queimadura arde ao mais ligeiro toque.

Uma conclusão notável do trabalho de Clifford Woolf e da investigação subsequente foi a descoberta de que pode existir dor sem uma lesão que a origine. Isto desafiou o ponto de vista de alguns médicos, segundo os quais os doentes com queixas de uma dor sem explicação óbvia, relacionada com alguma patologia, estariam provavelmente a mentir por alguma razão – talvez para obterem analgésicos de que não teriam necessidade ou para conquistarem solidariedade. Os sistemas de transmissão da dor podem tornar-se hipersensíveis após uma lesão (como aconteceu aos ratos), mas também podem ficar descontrolados isoladamente, permanecendo num estado sensibilizado depois de uma lesão estar curada. É isto que se observa em doentes com dor neuropática, fibromialgia, síndrome do intestino irritável e outras patologias. A dor não é um sintoma: é uma doença, causada por um sistema nervoso em mau funcionamento.

Graças aos avanços da cultura de células estaminais humanas em laboratório, Clifford Woolf e os colegas estão a criar diferentes tipos de neurónios humanos, incluindo nociceptores. Esta inovação permite estudar os neurónios com maior pormenor, de modo a determinar em que circunstâncias eles se tornam “patologicamente excitáveis” e disparam de forma espontânea, diz Clifford Woolf.

Este médico e os seus colegas utilizaram nociceptores cultivados em laboratório para investigarem o modo como os fármacos da quimioterapia causam dor neuropática. Quando os nociceptores são expostos aos fármacos, tornam-se mais facilmente excitáveis e começam a degenerar. Isto contribui provavelmente para as neuropatias sofridas por 40% dos pacientes de quimioterapia.

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Quando Jo Cameron foi operada à artrite da mão, o seu anestesista descobriu que ela não sentia dor e recomendou-lhe que consultasse um geneticista. Este descobriu que a escocesa tinha duas mutações raras. Os investigadores estão a procurar mutações que adormeçam ou ampliem a sensação de dor para descobrirem como é transmitida. Fotografia: Robin Hammond

Enquanto se progride no conhecimento da forma como a dor é transmitida, outros investigadores descobriram que estes sinais são apenas um factor da forma de percepção da dor pelo cérebro. Na verdade, a dor é um fenómeno complexo e subjectivo, moldada pelo cérebro que a sente. O modo como os sinais de dor são traduzidos em sensações dolorosas pode ser influenciado pelo estado emocional do indivíduo. O contexto em que ocorre a percepção da dor também pode alterar a forma como o organismo a sente, como se demonstra pela natureza agradável das dores que se sentem após um treino físico exigente ou o desejo de uma segunda dose de um prato picante, apesar do ardor gerado na língua. “Temos uma capacidade incrível de alterar a forma como esses sinais são processados quando os recebemos”, diz Irene Tracey, neurocientista da Universidade de Oxford.

Comunicadora hábil, esta investigadora tem passado grande parte da carreira a tentar descobrir a misteriosa ligação entre as lesões e a dor.
“É uma relação não-linear e há imensos estímulos que podem piorá-la, melhorá-la ou torná-la muito diferente”, comenta.

Em experiências já realizadas, Irene Tracey e os seus colegas recolheram imagens do cérebro em voluntários humanos, enquanto submetiam a sua pele a picadas de agulhas, estímulos de calor ou aplicações de cremes contendo capsaicina, o composto químico que torna as malaguetas picantes. As conclusões dos investigadores levaram-nos a compor um quadro da percepção da dor mais complexo. Não existe um centro de dor exclusivo no cérebro. Em vez disso, várias regiões são activadas em reacção aos estímulos dolorosos, incluindo redes neuronais que são usadas nas emoções, cognição, memória e tomada de decisões.

Também aprenderam que os mesmos estímulos nem sempre geram o mesmo padrão de activação, o que indica que a dor sentida por um indivíduo pode variar, mesmo em lesões semelhantes. 

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A relação entre o doente e o médico pode afectar a quantidade de dor sentida pelo paciente, “mas não sabemos porquê”, diz Vitaly Napadow. Para explorar o fenómeno, o investigador regista simultaneamente a actividade cerebral de um acupunctor e de um paciente em dois equipamentos individuais de ressonância magnética. A comunicação entre os dois é feita através de um vídeo (monitor esquerdo) enquanto o doente recebe um tratamento contra a dor induzida experimentalmente. Para aliviar a dor, o médico activa um dispositivo de electro-acupunctura ligado à perna do paciente. O monitor da direita mostra uma imagem por ressonância magnética funcional (fMRI) que cartografa a actividade no cérebro do paciente. Fotografia: Robert Clark

Irene e os colegas demonstraram que o medo, a ansiedade e a tristeza podem agravar a dor. Numa das suas experiências, alunos saudáveis voluntariaram-se para ouvir a composição melancólica “A Rússia sob o Jugo Mongol”, de Prokofiev, a metade da velocidade, e ler frases negativas como “a minha vida é um fracasso”. Em simultâneo, era-lhes aplicado um estímulo de calor numa secção do antebraço esquerdo, previamente esfregada com capsaicina. Mais tarde, foi administrado aos alunos o mesmo estímulo, enquanto escutavam música mais alegre e liam declarações neutras como “as cerejas são frutos”. Na condição triste, disseram que a dor pareceu “mais desagradável”.

Comparando os exames feitos aos cérebros dos alunos nos dois estados de espírito, os investigadores concluíram que a influência da tristeza ultrapassava os circuitos da regulação de emoções: provocava maior activação de outras regiões do cérebro, indicando que a tristeza estava a aumentar, fisiologicamente, a dor. “Levámos as pessoas a sentirem-se ansiosas, ameaçadas e temerosas”, diz a investigadora. “E demonstrámos que isso amplifica o processamento desses sinais.”

Seria necessária medicação forte para atenuar a dor após uma cirurgia à mão para tratar a artrite, disse o anestesista a Jo Cameron. No entanto, esta escocesa de 66 anos tinha dúvidas. 

O anestesista olhou para ela como se ela não estivesse bem da cabeça. Ele sabia, por experiência, que a dor do pós-operatório era insuportável. Quando foi visitá-la após a cirurgia, ficou admirado por saber que Jo nem sequer pedira o analgésico fraco que ele prescrevera. “Nem sequer tomou paracetamol, pois não?”, perguntou-lhe.

“Não”, respondeu a doente jovialmente. “Eu disse-lhe que não ia tomar.”

Durante o seu crescimento, Jo sentia-se frequentemente surpreendida por descobrir nódoas negras de origem misteriosa. Quando tinha 9 anos, partiu o braço num acidente e passaram-se três dias até reparar que estava inchado e descolorado. Anos mais tarde, teve os seus dois filhos sem sentir quaisquer dores durante os partos.

“Eu não sei o que é dor”, diz. “Vejo pessoas com dores, vejo os seus esgares, a tensão nos seus rostos e o stress e eu não sei o que é isso.”

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Hanna LeBuhn, que sofre de dores nas articulações do maxilar, observa os hipnotizantes movimentos das alforrecas através de óculos de realidade virtual no laboratório de Luana Colloca. A cena, integrada numa série de imagens marinhas relaxantes, é projectada na parede. Luana estuda neurobiologia da dor na Universidade de Maryland. Já demonstrou que a RV distrai os pacientes e alivia-lhes a dor. “A RV tem a capacidade singular de regular as reacções do corpo 
à dor, melhorando a disposição e diminuindo a ansiedade”, diz. Fotografia: Mark Thiessen

A incapacidade de Jo Cameron para experimentar a dor física pode não ser extraordinária para ela, mas insere-a num grupo raro de indivíduos que estão a ajudar os cientistas a desvendarem a genética subjacente à capacidade para sentir dor. O seu anestesista espantado pô-la em contacto com James Cox, um especialista do University College de Londres. James e os colegas estudaram o DNA de Jo Cameron e descobriram que ela tinha duas mutações em dois genes vizinhos, denominados FAAH e FAAH-OUT, determinando que essas mutações reduziam a decomposição de um neurotransmissor chamado anandamida, que ajuda a aliviar a dor. Jo possui este bioquímico em excesso, o que a inibe de ter dor. 

James Cox estuda pessoas como Jo Cameron desde que foi aluno de pós-doutoramento em Cambridge, em meados da década de 2000. O seu supervisor, Geoffrey Woods, tomou então conhecimento de um artista de rua paquistanês com 10 anos capaz de andar descalço sobre carvão em brasa e de espetar punhais nos braços sem chorar. O rapaz ganhava dinheiro com estas peripécias e depois ia ao hospital tratar dos ferimentos. Nunca foi submetido a um estudo, pois morreu depois de cair de um telhado enquanto brincava com amigos. Mesmo assim, James Cox e os colegas conseguiram analisar o DNA de seis crianças do mesmo clã, que demonstraram uma insensibilidade semelhante à dor. As crianças tinham uma mutação num gene denominado SCN9A, que se sabe estar envolvido na sinalização da dor.

O gene produz uma proteína essencial à transmissão das mensagens de dor entre neurónios nociceptivos e a medula espinal. A proteína, baptizada Nav1.7, encontra-se na superfície dos neurónios e serve de canal de passagem dos iões de sódio para o interior da célula, permitindo que os impulsos eléctricos que constituem o sinal da dor se propaguem ao longo do axónio, que o conduz a outro neurónio da medula espinal. 

As mutações descobertas pelos investigadores no gene SCN9A geram versões malformadas da proteína Nav1.7 que não permitem aos iões de sódio a passagem para os neurónios nociceptivos. Com os nociceptores incapazes de conduzirem sinais de dor, as crianças não se apercebiam de quando mordiam a língua, nem de quando se queimavam. “O aspecto maravilhoso de trabalhar com estas famílias extremamente raras é que podemos identificar genes simples com a mutação, que são, essencialmente, alvos de analgésicos validados por humanos”, diz James Cox.

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Pesach Feldman, de 76 anos, interrompe a natação em Telavive  (Israel). Um bypass e 15 stents não aliviaram a dor que o antigo pára-quedista sente no peito devido a uma angina refractária, causada por má circulação no coração. Submeteu-se a uma cirurgia simples, aperfeiçoada pelo cardiologista Shmuel Banai, na qual lhe foi inserido um cateter com um balão insuflável e um reducer de malha de aço inoxidável através da veia jugular. O balão foi posteriormente insuflado na veia principal do coração, chamada seio coronário. O reducer restringe o fluxo sanguíneo que sai do coração, obrigando-o a deslocar-se para zonas do músculo cardíaco que não estão suficientemente irrigadas. “Recuperei a minha vida”, disse. Fotografia: David Guttenfelder

As mutações no gene SCN9A estão também associadas a uma doença rara chamada eritromelalgia hereditária, conhecida em inglês como síndrome do homem em chamas. Os doentes que padecem desta condição enfrentam o oposto da insensibilidade à dor: uma sensação de ardor nas mãos, pés e rosto. Em ambientes quentes ou após esforços ligeiros, a sensação torna-se insuportavelmente intensa, como se a pessoa tivesse a mão sobre uma chama.

A psicóloga clínica Pamela Costa, de 53 anos, natural de Tacoma (EUA), que padece desta síndrome, descreve a dor como “inevitável”. Para lidar com a situação, Pamela tem de baixar a temperatura do escritório para 16ºC. Só consegue dormir com quatro ventoinhas em volta da cama e o ar condicionado no máximo. Numa semelhança irónica com os indivíduos insensíveis à dor, a sensação de queimadura constante leva a que Pamela tenha, por vezes, dificuldade em distinguir superfícies quentes, razão pela qual queimou o braço há um ano, enquanto passava roupa a ferro.

“Só me apercebi quando ouvi o ruído da pele a tostar”, diz. “A sensação era igual à que eu já tinha.”

O neurologista Stephen Waxman, da Faculdade de Medicina da Universidade de Yale, estudou Pamela Costa e outras pessoas como ela no seu laboratório no Centro Médico de Assistência a Veteranos de New Haven. Stephen e os colegas descobriram, tal como outro grupo de estudo, que os pacientes com eritromelalgia tinham mutações no gene SCN9A. Essas mutações têm um efeito oposto ao daquelas crianças imunes à dor no Paquistão, levando a que os canais da Nav1.7 se abram com demasiada facilidade, permitindo o afluxo de iões de sódio quando tal
não deveria acontecer.

Através de experiências laboratoriais realizadas em placas de Petri, Stephen Waxman e os colegas provaram que este era o mecanismo através do qual as mutações no SCN9A causavam a síndrome em pacientes como Pamela Costa. “Conseguimos introduzir o canal em neurónios de sinalização da dor e eles ficaram “bzzz!” quando deveriam estar “bip-bip”, resume Stephen Waxman, referindo-se à hiperactividade resultante do influxo incessante de iões de sódio. Em pacientes com esta síndrome, o defeito leva a que os nociceptores bombardeiem constantemente o cérebro com mensagens de dor.

A descoberta de que a Nav1.7 pode abrir ou fechar os portões dos sinais nociceptivos de dor transformou o canal num alvo atraente para os investigadores que tentam desenvolver novos fármacos para a dor, não indutores do risco de adicção dos opióides. Os opióides ligam-se a uma proteína presente na superfície das células nervosas chamada receptor opióide µ, levando o receptor a comunicar com proteínas no interior da célula. Embora a acção de algumas destas proteínas alivie a dor, a comunicação do receptor com outras proteínas gera sensações de prazer. O organismo desenvolve tolerância a estes fármacos, o que significa que são necessárias doses cada vez maiores para desencadear a sensação de euforia, capaz de provocar dependência.

Uma vez que a Nav1.7 só está presente em neurónios que sentem lesões, um fármaco que desligue selectivamente o canal promete ser um analgésico eficaz. O único efeito secundário conhecido é a perda do sentido do olfacto. Curiosamente, os indivíduos com a mutação também não conseguem cheirar. Os anestésicos locais existentes, como a lidocaína, bloqueiam indiscriminadamente nove canais de sódio no organismo, incluindo os que são essenciais para uma variedade de funções cerebrais, razão pela qual os médicos devem limitar o seu uso a um entorpecimento temporário dos pacientes. As empresas farmacêuticas procuram compostos capazes de bloquear a Nav1.7, sem desactivarem os outros canais de sódio, mas ainda não foram bem-sucedidas. 

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Linda Grubb, que padece de dor crónica desde que sofreu um AVC, comemora a conclusão de uma corrida denominada Zero K, com cerca de 15 metros, no pátio da Buckeye Lake Brewery, no Ohio. Linda foi tratada com estimulação cerebral profunda na Clínica Cleveland pelo neurocirurgião André Machado e diz que o tratamento não lhe curou a dor, mas ajudou-a a levantar-se do sofá e a retomar muitas actividades. “Não recomecei a saltar à corda, mas vou a muito mais sítios”, diz. André Machado explica que outros pacientes submetidos ao tratamento relataram melhorias semelhantes de bem-estar. Durante a operação, foram implantados dois microeléctrodos no cérebro de Linda para enviar impulsos eléctricos para zonas que processam a componente emocional da dor. Fotografia: David Guttenfelder

Apesar disso, Stephen Waxman mostra-se optimista e espera que a investigação venha a produzir melhores fármacos. “Estou seguro de que surgirá uma nova categoria, mais eficaz, de fármacos para a dor que não sejam viciantes”, afirma, com os olhos a brilhar. Faz uma pausa momentânea e refreia o entusiasmo. “Mas não posso apontar uma data.”

Embora a demanda por novos fármacos continue, médicos e investigadores estão a estudar formas de usar as capacidades intrínsecas do cérebro para ajustar a dor e diminuir o sofrimento associado.
E essas capacidades são impressionantes. Afinal, as nossas mentes e corpos já lidavam com a dor muito antes de começarmos a estudá-la.

Veja-se, por exemplo, um estudo britânico recente com mais de trezentos doentes com um tipo de dor no ombro provocada por uma excrescência óssea ou osteofito. Para aliviar a dor, o osteofito costuma ser cirurgicamente removido. Os investigadores dividiram aleatoriamente os participantes em três grupos. Um grupo foi submetido a cirurgia.
O segundo grupo foi levado a crer que fora operado, mas não fora. O terceiro grupo foi instruído a regressar três meses mais tarde para consultar um especialista em ombros. O grupo submetido à cirurgia e aquele que pensou que o fora relataram um alívio semelhante na dor do ombro.

“Isto demonstra que se trata apenas de um placebo. A cirurgia não faz nada pela dor, em termos mecânicos”, diz Irene Tracey, uma das autoras do estudo. “O alívio da dor sentido pelos pacientes é gerado por um efeito placebo.”

Segundo Irene Tracey, porém, o resultado não é menos importante só por ter demonstrado que o efeito placebo funcionou. O estudo revela também a força da crença de um paciente no tratamento. “Aquilo que nos diz de importante é que as expectativas moldam a dor”, diz.

Outros estudos desvendaram a maneira como a expectativa de diminuição da dor num paciente pode traduzir-se num alívio real, pois activa a via descendente da dor, desencadeando a libertação de opióides sintetizados no cérebro e travando, deste modo, a recepção dos sinais da dor. “Não é a fingir”, diz Irene Tracey. “O mecanismo placebo contorna o poderosíssimo sistema da dor no cérebro.”

A percepção da dor não se limita à região sensorial. As sensações de desagrado, medo e ansiedade que acompanham a sensação são uma parte integral da experiência da dor. Num teste realizado na Clínica Cleveland, investigadores liderados pelo neurocirurgião André Machado recorreram a estimulação cerebral profunda (DBS) para visar este componente emocional da dor em dez pacientes que padeciam de dor neuropática crónica como sequela de um AVC. Os investigadores implantaram eléctrodos minúsculos numa zona do cérebro envolvida no processamento das emoções. Ligados a um dispositivo electrónico inserido no peito, os eléctrodos administravam estímulos eléctricos de baixa intensidade no local de implantação, a um ritmo de quase duzentas vezes por segundo.

“Vários pacientes registaram melhorias na sua qualidade de vida, na sensação de bem-estar, na sua independência sem melhorar a quantidade de dor”, diz André Machado.

Doentes que anteriormente classificavam a sua dor com um nove, numa escala de 0 a 10, por exemplo, continuaram a atribuir-lhe a mesma classificação, mas disseram que conseguiam funcionar melhor. Um dos sujeitos do estudo, Linda Grubb, descreve o tratamento como transformador. “Fez toda a diferença do mundo, no que diz respeito a conseguir deslocar-me”, diz, acrescentando que a dor pós-AVC a compelira a passar os dias no sofá. “Tenho muito mais energia. O meu marido diz que pareço muito mais feliz. Mudou completamente a minha vida.”

Uma parte subsequente do estudo, envolvendo sujeitos saudáveis e doentes com dor crónica, proporcionou a André Machado e aos seus colegas algum conhecimento sobre a forma como a estimulação profunda do cérebro parecia ter beneficiado pacientes como Linda. Os investigadores registaram a actividade eléctrica proveniente dos cérebros dos participantes enquanto observavam um ecrã com dois dispositivos ligados aos braços. Um dos dispositivos aplicava calor repentino na pele e o outro emitia um zumbido inofensivo. A partir da pista visual mostrada no ecrã, os participantes conseguiam saber qual dos dois estímulos iriam receber ou se não iriam receber nenhum.

Os investigadores compararam a actividade cerebral dos participantes enquanto recebiam calor, zumbidos ou nada. Concluíram que os cérebros dos pacientes com dor crónica reagiam de forma semelhante ao preverem um estímulo doloroso e um inofensivo, enquanto os cérebros dos voluntários saudáveis mostraram mais actividade em determinadas zonas quando previam o calor. Quando os pacientes com dor crónica repetiram a experiência recebendo DBS, a actividade cerebral foi mais semelhante à dos participantes saudáveis.

Para este grupo de investigação, as conclusões sugerem que a exposição constante à dor condiciona os cérebros dos pacientes com dor crónica a reagir como se todos os estímulos fossem potencialmente dolorosos, levando os doentes a viver em sofrimento. O tratamento com DBS parece restaurar um grau de normalidade, permitindo ao cérebro “voltar a distinguir o doloroso do não-doloroso, que é aquilo de que precisa para conseguir funcionar”, diz André Machado.

Talvez a realidade virtual (RV) venha a ser outra maneira de diminuir a dor. Experimentei em primeira mão o poder desta técnica no laboratório da neurocientista Luana Colloca, da Universidade de Maryland. Um dos assistentes da especialista atou uma caixinha ao meu antebraço esquerdo enquanto eu me instalava confortavelmente numa poltrona reclinável. O dispositivo era semelhante ao utilizado pelo grupo de André Machado: ligado ao computador através de um cabo, conseguia aquecer e arrefecer rapidamente. Na mão direita, eu tinha um comando com um botão: este, ao ser premido, interrompia o calor que eu sentia no braço. “Não se preocupe. Não vai queimar-se”, assegurou um assistente.

Nos primeiros testes, Luana pediu-me para premir o botão assim que sentisse o dispositivo a aquecer. Na ronda seguinte, eu tinha de esperar um pouco mais até o calor se tornar desconfortável. Na última série de testes, deveria pressioná-lo apenas quando o calor se tornasse insuportável.

Na experiência seguinte, fui acompanhada pela própria Luana Colloca. Desta vez, puseram-me óculos de RV que me levavam a mergulhar num ambiente marinho e escutei música relaxante, enquanto observava peixes de cores espectaculares esvoaçando pela água, iluminada por raios descendentes de luz solar. Alforrecas enormes e iridescentes flutuavam à minha frente. De vez em quando, sentia o dispositivo a aquecer a pele do meu antebraço, recordando-me que não estava numa sessão de mergulho.

Quando a experiência terminou, Luana mostrou-me as temperaturas que eu deixara o dispositivo atingir durante os testes. As leituras daquilo que eu considerara “morno”, “quente” e “insuportavelmente quente” foram todas mais altas durante a experiência imersiva. Mais especificamente, a temperatura mais elevada que suportei sem pestanejar aumentara 1,5ºC, para 47,7ºC, o que, na opinião de Luana Colloca, era “incrível”.

“Isto significa que você tolerou um nível de dor muitíssimo mais elevado enquanto estava imerso neste ambiente, a ouvir música relaxante”, disse.

Os cientistas ainda não entendem a maneira como, ao certo, a RV exerce este efeito positivo sobre a tolerância à dor. Segundo algumas hipóteses, ela actua por meio da distracção: ou seja, mobilizando redes neuronais que, de outro modo, estariam envolvidas na sinalização e percepção da dor. Outros especulam que funciona regulando as emoções e alterando o estado de espírito. Luana Colloca demonstrou que o factor essencial da experiência é o entretenimento, que ajuda os pacientes a reduzir a ansiedade. Sejam quais forem os mecanismos subjacentes à sua eficácia, os médicos já estão a usar a RV para ajudar pacientes com dores agudas, como é o caso das queimaduras graves. Luana Colloca considera, aliás, que esta estratégia também pode ser útil no tratamento da dor crónica.

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Daniel Boltz beija a filha Peyton, de 8 meses, antes de lhe dar banho. Daniel nasceu com síndrome de abstinência neonatal porque a mãe consumiu heroína durante a gravidez. Peyton passou dois meses na unidade de cuidados intensivos neonatais no Hospital Infantil de Penn State, para fazer o desmame dos opióides. Os estudos sobre os efeitos a longo prazo ainda são limitados, mas os investigadores descobriram que os bebés que nascem com esta condição são mais sensíveis à dor do que os bebés saudáveis e também podem ter problemas cognitivos, comportamentais e de desenvolvimento. Fotografia: David Guttenfelder

Todos os meses, Tom Norris preside ao encontro de um grupo de apoio que ajudou a fundar há alguns anos, através da Associação Americana da Dor Crónica. O objectivo do grupo é proporcionar terapia de grupo, aplicando os novos conhecimentos científicos, segundo os quais os nossos
pensamentos e sensações podem alterar a experiência de dor.

Juntei-me a ele num encontro recentemente realizado numa igreja de Los Angeles. Tom apresentou-se aos membros enquanto eles iam chegando. (Para respeitar a sua privacidade, decidi não lhes perguntar os apelidos.) Um deles, um jovem magro chamado Brian, apertou-me a mão. Quando lhe expliquei, tal como fiz aos restantes, que viera para ouvir e não para participar, ele brincou: “Se calhar, podíamos dar-lhe um murro na cara para conseguir perceber o que sentimos.”

Éramos dez pessoas no total: cinco homens e cinco mulheres. Dispusemos as cadeiras em círculo e sentámo-nos. Encostando a bengala a uma mesa, Tom sentou-se e pediu aos membros para partilharem como corria a sua vida.

Brian, que sofre de dores abdominais graves que os médicos ainda não conseguiram diagnosticar, foi o primeiro a falar. Contou que fora a uma aula de jujitsu, que o ajudou temporariamente a esquecer a dor. “É triste que eu tenha de sofrer outra dor para esquecer esta”, disse, rindo-se. “Pensei em vocês ao longo da semana. Isso permitiu que me sentisse melhor.”

Os membros conhecem as histórias uns dos outros, mas parecem ter-se comprometido, por meio de um contrato não verbal, a escutar-se uns aos outros com toda a sua atenção, mesmo que já tenham ouvido as mesmas palavras antes. “Hoje telefonei para uma linha de socorro para suicidas”, disse uma mulher chamada Jane. Ela padece de fibromialgia e de síndrome da dor regional complexa, entre outras maleitas. “Queixei-me tanto aos meus amigos que já não quero telefonar-lhes.”

Tom Norris disse que está apenas a um telefonema de distância. “Às vezes, só precisamos de gritar”, disse. Dirigindo-se a outra mulher do grupo que admitira sentir relutância quanto a procurar ajuda, recomendou: “Por isso, por favor, grite.”

Quando a reunião terminou, Tom esperou que todos saíssem da sala antes de desligar as luzes. Perguntei-lhe o que o inspirara a organizar o encontro mensal. “Acho que as minhas experiências ajudam frequentemente as pessoas”, disse. No entanto, isto também o ajudava a ele, acrescentou. “Estes encontros fazem-me sentir que ainda contribuo para a sociedade e que não sou o único que lida com a dor crónica.” 

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