penas

A maioria dos seres humanos jamais verá as mais fantásticas maravilhas da natureza. Nunca vislumbraremos o olho de uma lula gigante, grande como uma bola de basquetebol. Porém, existe uma maravilha natural que praticamente todos podemos ver, bastando para tal sair à rua: são os dinossauros que se servem das penas para voar.

Texto: Carl Zimmer  
Fotografias: Robert Clark
Arte: Xing Lida

As aves são tão comuns que facilmente desvalorizamos a plumagem que lhes sustenta o voo e o facto de elas serem descendentes dos dinossauros. Para aguentar o embate do ar, cada pena possui uma forma assimétrica e o rebordo exterior é fino e rígido, ao passo que o interior é longo e flexível. Para se manter em voo, a ave precisa apenas de inclinar as asas, ajustando o fluxo do ar por cima e por baixo delas.

As asas dos aviões aproveitam alguns destes truques aerodinâmicos. No entanto, a asa de uma ave é mais sofisticada. A partir do eixo central (a ráquis), estende-se uma série de barbas esguias, das quais emergem bárbulas mais pequenas, como galhos de um ramo maior, revestidas com ganchos chamados hámulos. Quando estes se agarram aos hámulos das bárbulas vizinhas, criam uma rede estrutural leve como uma pluma mas admiravelmente forte. Quando uma ave afasta as penas umas das outras, com o bico, para as limpar, as barbas separam-se sem dificuldade, voltando depois ao lugar.

A origem deste mecanismo é um dos mistérios mais persistentes da evolução. Em 1861, apenas dois anos depois de Darwin publicar a sua “Origem das Espécies” em Inglaterra, operários de uma pedreira na Alemanha desenterraram fósseis de uma ave com a dimensão de um corvo, baptizada Archaeopteryx, que viveu há cerca de 150 milhões de anos. Possuía penas e outras características das aves hoje existentes, mas também vestígios de um passado reptiliano, como dentes na boca, garras nas asas e uma cauda longa e ossuda. À semelhança dos fósseis de baleias com pernas, a Archaeopteryx parecia congelar o momento de uma metamorfose crítica da evolução. “É uma prova valiosíssima para mim”, confiou Darwin a um amigo.

pavão

Em 1860, Darwin ainda não percebia como a selecção natural poderia explicar um ornamento como a cauda dos pavões. Mais tarde, propôs a ideia da selecção sexual: os machos vistosos agradam às fêmeas e transmitem os seus genes. (Conjunto compósito de três imagens, Museu Peabody de História Natural, Universidade de Yale)

A prova seria mais valiosa se os paleontólogos tivessem descoberto uma criatura mais antiga com penas ainda mais primitivas, achado que procuraram em vão durante grande parte do século e meio que se seguiu. Entretanto, outros cientistas procuraram esclarecer a origem das penas examinando as escamas dos répteis actuais, os parentes vivos mais próximos das aves. Como as escamas e as penas são planas, talvez as escamas dos antepassados das aves se tivessem alongado, geração após geração. Mais tarde, os seus rebordos poderiam ter-se esfiapado e dividido, transformando-as nas primeiras penas verdadeiras. Fazia também sentido que essa mudança se tivesse registado como adaptação ao voo. Imaginemos os antepassados das aves como pequenos répteis escamudos de quatro patas, habitando as copas das florestas, saltando de árvore em árvore. Se as escamas se tivessem alongado, conseguiriam aumentar a sua impulsão, o que lhes permitiria planar cada vez mais longe. Só numa fase posterior poderiam os braços ter evoluído, transformando-se em asas, que conseguiam empurrar para cima e para baixo, deixando de ser planadores e transformando-se em máquinas voadoras. Em resumo, a evolução das penas teria sucedido a par da evolução do voo.

Forma e Função. As aves vivas exibem uma diversidade estonteante de penas, cada qual adaptada a uma tarefa própria. Se a forma familiar de um vexilo longo fosse alterada, ele podia falhar em voo. Porém, a evolução pode ser mais criativa quando se trata de demonstrações de cortejo, muitas das quais dependem de plumas coloridas. Várias aves também utilizam as penas para se manterem frescas ou quentes, emitir ou abafar ruídos, flutuar ou deslizar sobre a neve, concentrar o som para aguçar a audição, construir ninhos, auxiliar a digestão, transportar água e escapar dos predadores soltando penas, da mesma maneira que os lagartos soltam a cauda. “As penas são o mecanismo mais complexo que emerge da pele de qualquer organismo”, diz Richard Prum, da Universidade de Yale.

A ideia de que as penas levaram ao voo foi proposta na década de 1970, quando o paleontólogo John Ostrom reparou que havia semelhanças entre os esqueletos das aves e dos dinossauros terrestres chamados terópodes, um grupo no qual se incluem monstros como o Tyrannosaurus rex e o Velociraptor. Parecia evidente que as aves eram os descendentes vivos dos terópodes, defendeu ele. Porém, muitos terópodes conhecidos possuíam grandes pernas, braços curtos e fortes e caudas longas. Dificilmente, seria a anatomia adequada para uma criatura que saltava de árvore em árvore.

penas

Um início tão simples. Alguns cientistas pensam que as penas primitivas foram estruturas novas que eclodiram de segmentos de pele denominados placódios. A princípio, eram simples tubos ocos. Mais tarde, evoluíram e transformaram-se em estruturas mais complexas com barbas interligadas, formando vexilos planos, propiciadores do voo.

Em 1996, os paleontólogos chineses corroboraram a hipótese de John Ostrom. A resposta foi produzida pelo fóssil de um pequeno terópode de braços curtos com 125 milhões de anos, denominado Sinosauropteryx, que possuía uma característica extraordinária: uma camada de filamentos finos e ocos revestia a região posterior do corpo e a cauda. Por fim, encontravamse provas de penas verdadeiramente primitivas num terópode. Em resumo, a origem das penas talvez nada tenha que ver com a origem do voo. Em breve, os paleontólogos descobriam centenas de terópodes emplumados. Com tantos fósseis para comparar, começaram a reconstituir uma história mais pormenorizada da pena. Primeiro, apareceram simples filamentos. Mais tarde, linhagens diferentes de terópodes desenvolveram tipos diversos de penas, algumas semelhantes às penas interiores fofas que ainda revestem as aves, outras apresentando barbas simétricas. Outros terópodes ostentavam fitas longas e rígidas, ou filamentos largos, bem distintas das penas das aves actuais.

penas

Os filamentos longos e ocos criaram um quebra-cabeças. Se eram penas primitivas, como se tinham desenvolvido a partir de escamas planas? Felizmente, ainda existem terópodes com penas semelhantes a fios: as crias de ave. Todas as penas presentes no corpo de um filhote em desenvolvimento começam por ser cerdas que crescem a partir da pele: só mais tarde se dividem, abrindo-se em formas mais complexas. No embrião da ave, estas cerdas eclodem de minúsculos aglomerados de células cutâneas denominados placódios. Um anel de células de crescimento rápido no topo do placódio forma uma parede cilíndrica que se transforma numa cerda. Os répteis também possuem placódios. No entanto, num embrião de réptil, cada placódio exprime genes que apenas provocam o crescimento das células cutâneas no rebordo posterior do placódio, acabando por formar escamas. No fim da década de 1990, Richard Prum e Alan Brush propuseram a tese de que a transição das escamas para as penas poderia ter dependido de uma mudança na afinação dos comandos genéticos no interior dos placódios, levando as células a crescer na vertical, através da pele. Uma vez gerados os primeiros filamentos, teriam bastado alterações insignificantes para produzir penas crescentemente mais complexas.

penas

Bolsas microscópicas de pigmentos responsáveis pela cor nas penas fósseis assemelham-se a “salsichas e almôndegas,” diz Jakob Vinther. Os formatos de salsicha libertam a cor negra; os formatos de almôndega, vermelho e castanho. Ambas aparecem numa amostra recolhida nas penas do rosto da "Anchiornis".

Até há pouco tempo, pensava-se que as penas tinham surgido pela primeira vez num membro primitivo da linhagem dos terópodes que desemboca nas aves.

Em 2009, contudo, os cientistas chineses anunciaram a descoberta de uma criatura com o dorso cerdoso, o Tianyulong, no ramo ornitisquiano da árvore genealógica dos dinossauros. O achado levantou uma possibilidade admirável: o antepassado dos dinossauros possuía penas semelhantes a cabelos, mas algumas espécies perderam-nos mais tarde, no decurso da evolução. A origem das penas poderia ser ainda mais recuada, se vier a confirmar-se que a “penugem” encontrada em alguns pterossauros corresponde a penas, uma vez que estes répteis voadores partilham um antepassado ainda mais antigo com os dinossauros.

Há ainda outra hipótese. Os parentes vivos mais próximos das aves, dinossauros e pterossauros são os crocodilídeos. Embora não possuam penas, a descoberta nos aligátores do mesmo gene responsável pela formação das penas nas aves parece sugerir que talvez os seus antepassados as tivessem, há 250 milhões de anos, antes de as linhagens divergirem. Para alguns cientistas, a pergunta a fazer talvez não seja como terão as aves ganho as suas penas, mas sim como terão os aligátores perdido as suas.

Se as penas não se desenvolveram para propiciar o voo, que vantagem poderiam ter proporcionado aos animais que as possuíam? Alguns paleontólogos têm sustentado que as penas poderiam ter surgido com a função de isolamento. Nos últimos anos, ganhou força outra hipótese: poderiam as penas ter surgido para serem vistas? Nas aves, as penas existem numa gigantesca gama de cores e padrões. O pavão desdobra o seu leque iridescente, por exemplo, para atrair um séquito de fêmeas. A possibilidade de os terópodes terem desenvolvido penas para efeitos de exibição foi reforçada em 2009, quando se começou a estudar a estrutura das penas.

dinossauros com penas

Experiências com penas. Os fósseis de dinossauros emplumados não-avianos (os três da esquerda) e de aves primitivas (à direita) provenientes da província de Liaoning, têm cerca de 125 milhões de anos, mas mostram abordagens diferentes às penas e ao voo. Como viveram ao mesmo tempo, é difícil identificar fases na evolução do voo.

Os cientistas descobriram no interior das penas bolsas microscópicas denominadas melanosomas, que correspondem às estruturas associadas a cores específicas presentes nas penas das aves actuais. Os melanosomas encontram-se tão bem preservados que os cientistas conseguem reconstituir a cor das penas dos dinossauros. Por exemplo, a cauda do Sinosauropteryx parece ter possuído listas avermelhadas e brancas.

 

Fosse qual fosse o propósito original das penas, elas existiram durante milhões de anos antes de uma única linhagem de dinossauros começar a utilizá-las para voar.

Os paleontólogos estão agora a estudar os terópodes mais estreitamente aparentados com as aves, procurando pistas sobre o modo como essa transição se desenrolou. Um dos achados mais reveladores é a recentemente descoberta Anchiornis, com mais de 150 milhões de anos. Do tamanho de uma galinha, possuía penas nos braços, com secções a preto e branco. Na cabeça, ostentava uma vistosa coroa avermelhada. Em termos de estrutura, as plumas da Anchiornis eram quase idênticas às penas de voo, com a diferença de serem simétricas. Não possuindo um rebordo anterior fino e rígido, talvez fossem fracas de mais para permitir o voo.

No entanto, aquilo que faltava às plumas em termos de força sobrava-lhes em número. A Anchiornis possuía uma profusão embaraçosa de penas. É possível que a selecção sexual guiasse a formação desta plumagem extravagante, tal como condiciona a formação dos leques dos pavões da actualidade. E, tal como os leques compridos e pesados criam problemas aos pavões, também as penas extravagantes da Anchiornis poderiam ser um peso morto.

Corwin Sullivan e os seus colegas propuseram um processo através do qual a Anchiornis poderia superar este problema. Nos terópodes aparentados com as aves da actualidade,  havia um osso do pulso em forma de cunha que lhes permitia dobrar a pata. O osso do pulso da Anchiornis tinha uma forma de cunha tão acentuada que o animal era capaz de dobrar os braços para os lados, mantendo as penas dos braços afastadas do chão enquanto caminhava. As aves de hoje utilizam um osso semelhante  durante  o voo, juntando as asas ao corpo durante um batimento ascendente. Se Corwin e os colegas tiverem razão, esta característica voadora desenvolveu-se muito antes de as aves se elevarem nos céus. Trata-se de um exemplo daquilo a que os especialistas em biologia da evolução chamam exaptação: pedir emprestada uma parte do corpo antiga para executar uma tarefa nova.

Ganhando asas. A comunidade científica sabe agora que as penas surgiram muito antes de serem utilizadas para voar, mas como se desenrolou a transição para o voo impulsionado? Luis Chiappe, do Museu de História Natural do Condado de Los Angeles, sugere que o voo aconteceu provavelmente como subproduto do batimento de asas em dinossauros terrestres, quando os antecessores das aves se serviram dos seus membros superiores emplumados para aumentar a velocidade de corrida ou para se equilibrar quando guinavam bruscamente para mudar de rumo. Ao longo das gerações, os músculos utilizados em tais acções tornaram-se mais fortes, os corpos mais pequenos e mais leves e as penas mais longas e mais aerodinâmicas. Por fim, o batimento dos membros superiores emplumados acabou por transformar-se nos batimentos repetitivos das asas. “A própria Archaeopteryx, frequentemente classificada como voador deficiente, poderia ter levantado voo a partir do solo”, diz Luis Chiappe. Também é possível que, antes do voo livre, alguns dinossauros tivessem sido planadores, aproveitando a impulsão associada às velocidades consegui- das quando se deixavam cair das árvores ou de falésias. Mas o processo não foi seguramente simplista. “Tudo o que precisamos de saber acerca da origem do batimento de voo está aqui mesmo, à nossa frente, nas aves vivas”, pergunta Ken Dial, do laboratório de voo da Universidade de Montana-Missoula.

A forma como essa transição ocorreu continua a inspirar discussões acaloradas. Para alguns cientistas, esses dinossauros emplumados desenvolveram o voo a partir do solo, batendo os braços emplumados enquanto corriam. Outros contestam esta ideia, fazendo reparar que as “pernas precursoras de asas” na Anchiornis e noutros parentes próximos das aves originariam uma corrida muito desajeitada. Estes investigadores estão a recuperar a velha ideia de que as proto-aves utilizaram as penas para saltar de árvore em árvore, planar e, finalmente, voar.

O voo não evoluiu num mundo bidimensional, diz Ken Dial, que investiga o voo das aves. Em muitas espécies, as crias batem as asas rudimentares para ganhar tracção, enquanto fogem dos predadores subindo por superfícies inclinadas. Mas o batimento das asas também suporta o inevitável regresso da cria a terreno mais baixo. À medida que a ave amadurece, essa descida controlada vai dando lugar ao voo impulsionado. Talvez o percurso de desenvolvimento trilhado pela cria reconstitua o percurso seguido pela sua linhagem na evolução: vai dando às asas, por assim dizer, até que, por fim, as asas a fazem levantar voo. 

Carl Zimmer escreveu sobre plantas carnívoras em Março de 2010. Robert Clark fotografou as linhas de Nasca no mesmo mês. Os livros de Xing Lida sobre dinossauros são líderes de mercado na China.

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