A investigadora Valme Jurado Lobo faz amostragens de ar no interior de uma mina de pirites em Lousal, que serão mais tarde analisadas em laboratório. Esta informação é fulcral para a compreensão das dinâmicas das minas e das características biológicas dos microrganismos em estudo.
O que pode residir no interior de uma mina ou numa gruta escura?
Texto e fotografias: António Luís Campos
Numa manhã invernal que cobrira de geada as urzes das encostas vizinhas, o ar gélido penetra nos pulmões com a mesma resistência com que nos aproximamos do portão de entrada na mina, por onde se somem, no escuro, homens e máquinas, a um ritmo alucinante. De coração apertado, descemos ao âmago das minas da Panasqueira, umas das principais unidades mineiras de Portugal. Das entranhas da terra, extraem-se valiosos minérios. Destaca-se o volfrâmio (também conhecido como tungsténio), objecto de negócios dúbios durante a Segunda Guerra Mundial e material cobiçado como endurecedor de ligas metálicas para armamento. Hoje, é valioso por ser um importante componente de aplicações eléctricas.





Sob as estruturas mineiras espalhadas pelo território nacional, muitas das quais abandonadas ou sobre as quais subsistem dúvidas sobre a viabilidade financeira e ambiental, abrem-se agora novos horizontes. Uma equipa conjunta das universidades portuguesas de Évora e do Algarve, do Instituto de Recursos Naturais e Agrobiologia de Sevilha e da empresa Serviços Mineiros da Andaluzia estuda os microrganismos existentes em ambientes hipogénicos (onde o oxigénio é deficitário), desvendando lentamente um mundo pouco conhecido e para o qual, há bem pouco tempo, se avançava apenas com retroescavadoras e brocas de proporções hercúleas. O HERCULES tem efectivamente uma palavra a dizer. Não se trata de uma referência ao semideus grego, mas sim ao laboratório eborense homónimo – que, como integrante do projecto transfronteiriço ProBioma (Prospecção em Ambientes Subterrâneos de Compostos Bioactivos Microbianos) busca, em articulação com investigadores espanhóis, plantas, fungos e animais de dimensões ínfimas em minas subterrâneas e grutas do Alentejo e Andaluzia.
“São, na verdade, nichos de biodiversidade desconhecidos e uma fonte para microrganismos que sobreviveram às mudanças no seu habitat durante milhares de anos”, explica Ana Teresa Caldeira, a coordenadora do projecto naquela unidade académica. “Podem esconder a chave para a elaboração de antibióticos e fármacos antitumorais.”
Em pleno século XXI, existe um nicho pouco explorado na biosfera, com perspectivas muito promissoras: os ambientes subterrâneos.
O projecto em curso tem como objectivo identificar organismos biológicos com uso potencial para a medicina, agricultura e ambiente, primeiro à escala laboratorial, mas depois com o foco assumido na procura de aplicações viáveis comercialmente em grande escala. Parte do pressuposto de que, nos confins profundos dos ambientes menos conhecidos e à partida menos favoráveis ao desenvolvimento da vida, haverá organismos resistentes e potencialmente úteis para a ciência.
Embora possa parecer uma linha de investigação (literalmente) obscura, a verdade é que pouco se sabe sobre estes habitats subterrâneos. As condições ambientais são peculiares devido a regimes de humidade e temperatura praticamente constantes ao longo do ano. A reduzida ventilação e a consequente baixa oxigenação do ar contribuem para o desenvolvimento de propriedades biológicas únicas.
Activa ou abandonada, uma mina muito raramente desaparece da paisagem, como o Centro Ciência Viva do Lousal testemunha com eloquência. Estabelecido numa antiga mina de pirites, no limite noroeste da Faixa Piritosa Ibérica, este centro de educação científica integra-se num esforço mais vasto e ambicioso de recuperação ambiental da exploração, abandonada em 1988, que inclui também um museu mineiro. De certa forma, conta a história da mineração no Alto Alentejo.
As antigas lagoas de retenção de águas, de cores vibrantes devido aos depósitos de óxidos de enxofre, são um lembrete pungente do preço ecológico a pagar a longo prazo... Porém, ao entrar nas antigas galerias, toscamente escavadas na rocha, na companhia de uma vasta equipa de investigadores ibéricos, o registo muda por completo. A excitação sente-se na pele à medida que o burburinho em “portunhol” cresce, proporcional à escuridão que nos envolve, apenas entrecortada pelos movimentos nervosos dos focos das lanternas frontais.
O grupo espalha-se. Num cruzamento de túneis, a investigadora Valme Jurado Lobo pousa a pesada mochila e, cuidadosamente, retira um estranho dispositivo, que parece um “Y” amarelo em tamanho XL. É um amostrador de ar para amostras microbiológicas, que permitirá à equipa conhecer melhor as dinâmicas de fluxos gasosos destas galerias. A seu lado, um cabelo grisalho desponta do capuz do fato biológico completo. Cesáreo Sáiz Jiménez, coordenador do projecto no Instituto de Recursos Naturais e Agrobiologia, fita a parede num local aparentemente tão vazio como o resto da mina. No entanto, olhando bem de perto e com luz rasante e lateral, o motivo torna-se aparente: uma colónia de organismos destaca-se do fundo escuro.
Uma pequena amostra é recolhida para um tubo Eppendorf. Metros adiante, uma percussão seca e sincopada ecoa no ambiente sinistro da cavidade. Maria Clara Costa, da Universidade do Algarve, de martelo de geólogo em riste, recolhe amostras de rocha, auxiliada por uma aluna de bata surpreendentemente branca, dado o entorno barrento e bafiento. Entre investigadores seniores, pós-doutorados e doutorandos, o grupo é constituído por mais de uma dezena de cientistas, especializados em diferentes áreas técnicas.
Das sinuosas galerias subterrâneas para os compridos corredores universitários, a comunidade científica vem sendo confrontada com uma escassez de novos antibióticos em desenvolvimento para combater os riscos da crescente resistência antimicrobiana. De acordo com os investigadores do ProBioma, “só oito dos 51 novos antibióticos e produtos biológicos em desenvolvimento clínico para tratar microrganismos patogénicos resistentes a antibióticos são tratamentos inovadores, adicionando valor à oferta actual de medicamentos”. E uma boa parte dos fármacos actuais apresenta apenas soluções imediatas, sendo modificações das classes de antibióticos já existentes. A Organização Mundial da Saúde tem chamado a atenção para a emergência global de saúde que vai comprometer seriamente o progresso da medicina moderna: a resistência aos compostos antimicrobianos. É fundamental mais investimento na pesquisa e desenvolvimento de antibióticos capazes de combater infecções resistentes a antibióticos.
Fazendo uma retrospectiva histórica, percebe-se que a procura por antibióticos inovadores no século passado se concentrou inicialmente na produção de compostos bioactivos por organismos do solo. Mais tarde, o foco do desenvolvimento e investigação passou para o mundo marinho. Em pleno século XXI, porém, existe um nicho pouco explorado na biosfera, com perspectivas promissoras para a investigação biomédica: os ambientes subterrâneos.
Segundo a equipa do ProBioma, grutas e minas são um óptimo ambiente para a descoberta de novas substâncias bioactivas. Ainda assim, a investigação neste ramo não tem sido profunda, constatando-se que o conhecimento sobre microbiologia subterrânea em território nacional é limitado, exceptuando alguns estudos em grutas vulcânicas dos Açores, uma realidade com condições distintas das grutas do continente, graníticas ou calcárias.
Não é só na medicina que a procura de compostos bioactivos acontece. É igualmente pertinente na agricultura. Um exemplo relevante dessa abordagem é o combate a pragas de insectos em produções hortícolas e de árvores de fruto, sendo a actividade biocida desses elementos testada em diversas bactérias fitopatogénicas.
Cruzando longitudinalmente o Baixo Alentejo, a Faixa Piritosa Ibérica é uma longa formação geológica que penetra na Andaluzia, quase até Sevilha. E é ali que o ProBioma incide, seguindo uma abordagem inovadora, com recurso à biotecnologia e biologia molecular para o estudo da transcriptómica e do genoma completo dos microrganismos em análise.
Pormenor de amostras minerais recolhidas na mina da Panasqueira, que em meados do século passado era a maior e mais importante mina de Portugal e uma das maiores explorações de volfrâmio do mundo. Durante a Segunda Guerra Mundial chegou a ter mais de dez mil trabalhadores e a processar mil toneladas de materiais por dia.
Ao longo da história, o subsolo desta região, rico em minerais, tem sido testemunho de múltiplos esforços das comunidades locais para a sua exploração mineira. É um território hostil, que imprimiu stress às espécies lá existentes, ao longo da evolução, o que as levou ao desenvolvimento de metabolismos capazes de sobreviver à escassez de nutrientes orgânicos. Ali, só os mais fortes vingam através da produção de compostos bioactivos contra outros organismos concorrentes, numa luta silenciosa mas implacável pelos poucos recursos disponíveis. No outro Alentejo, na sombra da austera fachada da Sé de Évora, o quartel-general do HERCULES parece uma verdadeira Babel. Cientistas de várias nacionalidades trabalham em conjunto sob os tectos abobadados de tijolo burro, emprestando uma banda sonora multilingue a este centro de investigação. Debruçada sobre um sequenciador de ADN de nova geração Miseq Ilumina, de aspecto futurista, Teresa Caldeira estuda dados aparentemente ininteligíveis. Segundo ela, os resultados são auspiciosos: “A análise do genoma das bactérias seleccionadas permitiu já encontrar conjuntos de genes envolvidos na síntese de metabolitos secundários e a identificação de mecanismos genéticos associados à produção desses compostos bioactivos, que apresentam também actividade antibacteriana e antitumoral.” E acrescenta: “Devido à sua capacidade de degradar compostos xenobióticos, poluentes de solos e águas, pela sua produção de lípidos, compostos surfactantes ou polissacarídeos, com propriedades de melhoria de solos agrícolas, muitos destes microrganismos são benéficos para o ambiente e podem vir a ser utilizados em grande escala.”
Dias mais tarde, uma centena de quilómetros a sul, à saída da mina do Lousal, e à medida que a proverbial luz ao fundo do túnel cresce, um céu plúmbeo aguarda os investigadores que terminam mais uma campanha de campo. Entre o ribombar surdo e distante dos trovões, uma chuvada torrencial cai e a neblina densa abate-se, fazendo as silhuetas das torres mineiras parecer os gigantes de Dom Quixote de La Mancha.
Sob os pés, o caminho de regresso rapidamente se torna um riacho lamacento, mas o aguaceiro é bem recebido pela equipa após horas na escuridão, a respirar ar viciado. Estiveram num ambiente improvável que, nos próximos anos, se espera que traga à comunidade científica e ao público novas soluções tecnológicas providenciadas pelos minúsculos organismos que fazem das húmidas e escuras galerias a sua casa.