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Um jovem do século XXI contempla o céu nocturno, do mesmo modo que o fizeram os nossos antepassados há milhões de anos. Quem somos, de onde vimos e para onde vamos? Estas perguntas têm-nos moldado como espécie. STIJN DIJKSTRA/EYEEM/GETTY IMAGES

Queremos instalar-nos no espaço de forma permanente, mas… estaremos preparados para isso?

Texto: Eva Van Den Berg

Amanhece em Tempe Mensa, em Marte. São seis horas da madrugada de um dia de Agosto de, digamos, 2121. Um século separa-nos do presente. O Sol ilumina tenuemente a cidade vertical de Nüwa, perfurada na parede sul deste planalto, pouco acima do equador marciano. No sector superior, avistam-se numerosas cúpulas de polímero translúcido: elas protegem da radiação as culturas das plantas e algas responsáveis por 70% do alimento que sustenta estes seres humanos que, depois de abandonarem a Terra, ocupam a primeira colónia permanente no espaço. Nas redondezas, uma infinitude de painéis e concentradores solares carregam baterias para fornecerem a esta cidade a enorme quantidade de energia indispensável, muito superior à necessária na Terra.

No interior de Nüwa, onde se encontram as zonas residenciais, produtivas e recreativas, a temperatura é de 20°C; no exterior, raramente são atingidos 0°C. No entanto, durante a noite, o termómetro chega a alcançar -100°C do que a temperatura registada no recanto mais frio da Terra.

Na falésia, numerosas aberturas permitem que a luz, indirecta e filtrada, penetre nos macro-edifícios embutidos na rocha. Cada um tem capacidade para alojar cerca de 4.400 pessoas. Os visitantes recém-chegados contemplam, absortos, a desolada paisagem exterior, um ambiente mortal onde morreriam no espaço de poucos minutos. Apesar da persistente tempestade de areia, lá ao fundo, no vale, conseguem observar a forma como as infatigáveis escavadoras extraem matérias-primas do solo marciano. No entanto, cansados da viagem de oito meses que os separou para sempre do Planeta Azul, encontram-se em pleno processo de assimilação, apercebendo-se, em primeira mão, dos efeitos de um ambiente de hipogravidade: aqui, embora a massa corporal seja a mesma, tudo pesa cerca de menos 60%. O que lhes trará este mundo incerto, ao qual chegam cada vez mais pessoas em busca de novos horizontes? Que tipo de sociedade irão encontrar? Conseguirão os seres humanos reproduzir-se nestas condições? Há tantas incógnitas por desvendar…

Desde que terminou a fase principal de construção de Nüwa – em nada comparável às pirâmides do Egipto – milhares de homens e mulheres venderam todos os seus bens terrestres para comprar um bilhete de ida para esta florescente cidade espacial que tanta mão-de-obra exige. Tudo está por fazer e não é possível voltar atrás.

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Regressemos ao presente e à Terra . Os responsáveis pela idealização de Nüwa, a hipotética cidade marciana que foi finalista no concurso da Mars Society, uma organização norte-americana dedicada a promover a exploração do Planeta Vermelho, sabem que a sua proposta é apenas um ponto de partida. Mais um passo na direcção definida para a nova corrida espacial: a colonização do espaço. Nüwa foi concebida no âmbito da SONet (Sustainable Offworld Network – Rede do Mundo Exterior Sustentável), uma rede de profissionais que pretende desenvolver “uma nova economia espacial capaz de funcionar no espaço, sem depender dos recursos da Terra, que acabe por gerar benefícios para toda a sociedade”, afirma o seu instigador, o astrofísico Guillem Anglada-Escudé, investigador do Instituto de Ciências do Espaço (ICE-CSIC).

Na opinião deste cientista, que em 2016 liderou a descoberta de Proxima b, o exoplaneta mais próximo da Terra, a exploração do espaço deve ser reformulada, de modo a impulsionar a investigação e a inovação, procurar soluções para os problemas terrestres e fomentar a cooperação internacional. “Já não se trata de chegar a um novo planeta para fixar uma bandeira, mas de construir uma base permanente e sustentável que acabe por ser independente da Terra”, afirma. Marte é o candidato mais favorável: parecido com o nosso planeta, encontra-se na zona de habitabilidade e intui-se que possa, algum dia, albergar vida e, até, que já a contenha. Talvez o veículo de exploração espacial Perseverance, que desde 18 de Fevereiro procura vestígios de antiga vida microbiana na cratera Jezero, auxiliado pelo pequeno helicóptero Ingenuity, nos permita esclarecer as dúvidas: é esse o objectivo da missão Mars 2020, lançada pela NASA no dia 20 de Julho de 2020, durante a janela de oportunidade para lançamentos entre a Terra e Marte que ocorre a cada 26 meses.

Duas outras missões quiseram aproveitar a oportunidade: a sonda Hope, dos Emirados Árabes Unidos, encontra-se em órbita desde 9 de Fevereiro com o objectivo de estudar a meteorologia marciana; a outra, a missão chinesa Tianwen, que a 12 de Maio fez pousar o seu veículo Zhurong em Utopia Planitia, procura explorar as suas características geológicas.

Zhurong tornou-se o sexto veículo de exploração que conseguiu pousar e funcionar com sucesso no Planeta Vermelho e o único não norte-americano. Algo está a mudar também aí na exploração do espaço.

As próximas missões espaciais serão ainda exploratórias, mas o objectivo é criar uma colónia permanente. Tudo aponta para que o próximo feito seja enviar de novo um ser humano até à Lua, algo que não acontece desde a missão Apollo 17, de 1972. Embora a NASA esteja a trabalhar na missão Artemisa para enviar um homem e uma mulher até à superfície do nosso satélite, em 2024, muitos astrofísicos pensam que essa data não é realista e que talvez a China consiga adiantar-se.

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Reconstituição artística da hipotética paisagem  do exoplaneta Proxima b, situado na zona  temperada – e, por conseguinte, talvez habitável  – da estrela mais próxima do Sol, Proxima Centauri.  A sua descoberta em 2016 abre caminho à detecção  de planetas semelhantes ao nosso, bem como  à descoberta de uma vida extraterrestre sobre  a qual não conhecemos absolutamente nada. ESO/M. KORNMESSER

A conquista de Marte, por outro lado, ainda vai demorar. O foguete reutilizável Starship, da SpaceX, a empresa chefiada pelo magnata e empresário sul-africano Elon Musk, actualmente em pleno período de testes, apresenta-se como o meio de transporte mais provável, embora ainda exista muito trabalho por fazer e recursos por investir. Os cépticos gostam de lembrar que as viagens épicas exigiram décadas de preparação e que o Programa Apollo exigiu 5% do orçamento de um país gigantesco como os Estados Unidos nas décadas de 1960 e 1970 e a boa fé de vários sectores económicos. Agora, a pressão para ganhar a nova corrida espacial é menor. Talvez o ano de 2040 seja mais razoável como meta… se os principais competidores conseguirem estabelecer uma plataforma de colaboração.

Na verdade, existe um exemplo pujante de colaboração internacional, embora a outra escala. A Estação Espacial Internacional (ISS) resultou de uma colaboração internacional inédita que ainda hoje, 23 anos após a sua inauguração, continua a juntar o talento de homens e mulheres de culturas e ideologias muito diferentes, em nome da ciência e da investigação espacial.

Apesar dos incentivos da Mars Society e de uma certa extravagância dos seus comunicados à imprensa, ninguém espera que uma eventual colónia marciana possa sequer começar a ser construída antes de 2050. Antes disso, será necessária uma miríade de estudos geotécnicos.

Alfredo Muñoz é director do gabinete de arquitectura ABIBOO Studio, responsável pelo projecto da cidade extraterrestre de Nüwa. “Uma das primeiras questões levantadas ao projectarmos a cidade foi a seguinte: teria de ser uma cidade permanente, não uma colónia temporária. Portanto, os seus habitantes deveriam sentir-se seguros do ponto de vista físico, mas também desenvolver um vínculo emocional e de identificação com o seu ambiente”, explica. Para ele, Nüwa integra construções escaláveis e diversas – no total, 12 módulos distintos, seis residenciais e seis produtivos – que permitem criar muitos espaços diferentes. “Depois de percebermos os desafios a enfrentar – como a baixa pressão atmosférica exterior, cem vezes inferior à terrestre, a elevada radiação ou o impacte frequente de micrometeoritos – e os objectivos científicos a cumprir, abordámos os primeiros requisitos emocionais”, diz.

Um deles era assegurar a luminosidade, como na Terra. A melhor abordagem a uma cidade permanente em Marte – uma solução enterrada, mas sem luz natural, ou pelo menos de forma indirecta – não é viável. “Por isso, optámos por uma solução intermédia. Fazendo rodar 90º graus todo o sistema enterrado, criámos uma cidade vertical dentro de uma falésia.”

A construção de uma cidade permanente fora da Terra implica, porém, muitas outras interrogações que transcendem a questão tecnológica e nos obrigam a reflectir sobre a nossa essência. Em muitos aspectos, a aventura de colonização de um novo planeta repetirá dilemas da nossa própria caminhada como espécie. Encontrando-nos na Terra em plena emergência ambiental, o que nos leva a supor que teríamos um comportamento melhor em Marte? Há anos que estamos a treinar para isto. Várias experiências científicas, passadas e presentes, dedicaram enormes esforços a temas que se revelam essenciais à vida lá fora. A produção de alimento é, evidentemente, uma prioridade, mas a aprendizagem da vida sem contacto com um meio exterior seguramente mortal também o é.

Em 1914, quando o navegador e explorador Ernest Schackleton publicou na imprensa um anúncio para recrutar membros para a sua heróica missão à Antárctida, especificiou: “Homens, precisam-se, para viagem perigosa. Salários baixos, frio extremo, meses de escuridão total, perigo constante, regresso ileso em dúvida. Honras e reconhecimento em caso de sucesso.” Uma campanha de exploração que nos conduzir a Marte não será menos arriscada, mas contará, como aquela, com milhares de voluntários. Serão eles tão esclarecedoramente avisados como os que integraram a tripulação do Endurance?

Sejamos uma espécie multiplanetária!”, publicou recentemente no Twitter o entusiasta Elon Musk. Uma mensagem tão entusiasmada deveria ser contextualizada, na opinião de Konrad Szocik, investigador da Universidade de Tecnologia e Gestão da Informação de Rzeszow, na Polónia. Ele é o primeiro signatário de um ensaio internacional que reflecte sobre o presumível próximo grande passo da humanidade. “Os desafios mais óbvios a enfrentar por uma colónia em Marte serão médicos e tecnológicos, mas são apenas o prelúdio de outros, muito mais complexos, de natureza ética, social, antropológica e evolutiva”, afirma. Como reagiremos a esses problemas inéditos a mais de quatrocentos mil quilómetros da Terra?

A nossa experiência é mínima: em toda a história espacial, menos de 600 pessoas permaneceram na baixa órbita terrestre e apenas uma dezena pisou o único corpo celeste ao qual chegámos: a Lua. Há diversas práticas marcianas possíveis, como viver em isolamento, em ecossistemas auto-suficientes – já testados em locais quase análogos. Basta lembrar que, em 1967, três voluntários russos permaneceram durante um ano num espaço de 12 metros quadrados, sujeitos a todo o tipo de experiências físicas e psicológicas no Instituto de Problemas Biomédicos (IBMP) de Moscovo.

Mais recentemente, teve lugar outra experiência russa, a Mars 500, na qual seis homens passaram 520 dias, entre 2010 e 2011, em isolamento. No espaço, o cosmonauta Valeri Poliakov permaneceu 437 dias seguidos na Estação Espacial Internacional e o norte-americano Scott Kelly cumpriu uma missão de um ano. Em terra, nos Estados Unidos, o projecto mais conhecido é possivelmente o Biosfera 2, construído entre 1987 e 1991, no Arizona para recriar o ecossistema terrestre num espaço fechado. Embora a experiência, repleta de dificuldades, tenha possibilitado aprendizagens úteis, a tripulação de quatro homens e quatro mulheres acabou por entrar em conflito. A denominada “psicologia do espaço confinado” provocou uma cisão em dois grupos, tendência aparentemente comum neste tipo de situações.

A astrofísica Mariona Badenas participou em 2018 na missão Latam-III, na estação marciana análoga Mars Desert Research Station (MDRS), da Mars Society, onde cerca de duzentas tripulações internacionais (com cinco a sete pessoas) fizeram campanhas de várias semanas para realizar experiências destinadas a avançar na direcção do desejo humano de colonizar Marte. “Neste tipo de experiências, damo-nos conta de que, realmente, o mais difícil é o convívio e não poder tomar um

duche todos os dias ou comer como em casa”, conta. A exploração espacial terá de ser respeitosa e reflexiva e há uma longa lista de filmes e livros de ficção científica imaginada a partir desse dilema primário: como se portará a nossa espécie num novo mundo, sem lei nem roque e onde poderão reemergir os instintos primários que fizeram por exemplo da conquista do Velho Oeste americano uma alegoria do confronto entre a lei e a desordem. Ninguém duvida de que o estudo do que se passar lá fora terá repercussões positivas na Terra, proporcionando-nos tecnologias de ponta em diversos sectores, sobretudo na medicina e nas comunicações, gerando emprego e despertando muitas vocações científicas. O impacte social dos investimentos feitos no espaço tem sido enorme, mas a NASA gasta apenas 0,48% do orçamento anual dos EUA. E este país é, de longe, o que mais gasta em investigação de cariz astronómico.

Enquanto o mundo se maravilha com Marte, dezenas de astrofísicos continuam a detectar, validar e caracterizar exoplanetas que possam ser semelhantes à Terra. Trinta a sessenta por cento das estrelas possuem-nos e todos os anos a lista aumenta. No entanto, para progredir nesta matéria, serão necessários novos instrumentos. Um deles será o Telescópio Espacial James Webb, desenvolvido por mais de uma quinzena de países e cujo lançamento está previsto para este ano. Outros telescópios maiores estarão prontos nas próximas décadas, se a economia do espaço assim o permitir.

É certo que se avizinham surpresas colossais, uma vez que a nossa capacidade científico-tecnológica é assombrosa. Segundo a neurologista italiana Rita Levi Montalcini, enquanto os giros neocorticais do cérebro humano evoluíram de forma extraordinária, dotando-nos de grandes capacidades cognitivas, o sistema límbico, onde elaboramos as emoções, é muito mais primitivo. A dissociação entre ambos, como sublinhou, pode explicar por que razão tendemos a colocar a nossa mais potente inovação técnica ao serviço dos instintos mais baixos. A inversão desse instinto seria um requisito imprescindível para uma espécie fascinada por ultrapassar todos os limites.

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