Apenas um mês depois de a Ford desvendar uma versão eléctrica da sua popular carrinha de caixa aberta F-150, os clientes já tinham reservado mais de cem mil unidades. O F-150 Lightning custa mais 8.400 euros do que a versão original a gasolina, mas a Ford garante que a manutenção do modelo eléctrico será mais barata.
Os fabricantes deram grandes passos para desenvolverem veículos amigos do clima.
Texto: Craig Welch
Fotografias: David Guttenfelder
Na linha de montagem da Volkswagen, em Chattanooga, no estado do Tennessee (EUA), carroçarias pairam no alto, acima do piso de betão, em correias de transporte. A cada 73 segundos, uma é baixada e depositada sobre um trem de força e, pouco depois, a carroçaria e o chassis começam a erguer-se juntos. Enquanto observo, trabalhadores sentados em cadeiras com rodas e equipados com chaves de boca eléctricas com o formato de pistolas deslizam sob um Passat. Apertam painéis de revestimento da parte inferior da carroçaria e placas de protecção do motor, antes de guardarem as ferramentas no cinto enquanto esperam pelo próximo automóvel.
Numa área de 320 mil metros quadrados, cerca de 3.800 trabalhadores e 1.500 robots passam todo o dia neste ritmo de pára-arranca, construindo alguns dos veículos a gasolina mais reconhecíveis das estradas – 45 por hora, 337 por turno, mais de 1,1 milhões desde que a Volkswagen concluiu a fábrica em 2011.









Esta fábrica tem uma história complexa: desde a Segunda Guerra Mundial, e periodicamente durante as três décadas seguintes, as forças armadas encomendaram-lhe o processamento de ácido nítrico e sulfúrico para fabricar TNT, armazenando as munições em bunkers de betão nas florestas dos arredores. Fumos tóxicos emitidos pela fábrica escaldaram petúnias e amareleceram as agulhas dos pinheiros ao longo de muitos quilómetros. Hoje, porém, numa cidade que, em tempos, foi das mais afectadas pela poluição atmosférica dos EUA, num antigo local de armamento que contribuiu imenso para esses céus imundos, um fabricante de automóveis com o seu próprio legado complicado em termos de emissões – a Volkswagen infringiu, mentindo, as regras referentes à poluição durante sete anos – está a tentar contribuir para tornar o sistema de transportes do país mais ecológico.
Em breve, esta fábrica apresentará o primeiro veículo eléctrico da Volkswagen construído nos EUA. Em 2022, iniciará a produção em massa do automóvel, um SUV compacto chamado ID.4, na sua linha de montagem já existente, dividindo esta produção com a de modelos a gasolina de modo a responder rapidamente a alterações na procura. Na minha visita à fábrica na Primavera passada, a transição estava em curso.
Os veículos totalmente eléctricos são mais simples do que os movidos a gasolina. Não têm depósitos, pistões, velas de ignição e não têm tubo de escape. “A ideia básica é que há menos peças”, grita o especialista em montagem Chris Rehrig para sobrepor a sua voz ao zumbido da fábrica.
Em contrapartida, possuem baterias enormes. Na Volkswagen, conjuntos de baterias com quase 500 quilogramas serão montados do outro lado da rua e inseridos em veículos com piloto automático. Cada conjunto de baterias, envolto numa placa coberta com veios de líquido refrigerante, será aparafusado com uma chave de fendas eléctrica à parte inferior do carro. Quando um carro a gasolina se aproxima, essa mesma ferramenta aparafusa um escudo térmico. O funcionamento do sistema sem percalços “é um pouco como uma dança”, diz Noah Walker, supervisor de Chris Rehrig, com algum cansaço na voz.
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O facto de a Volkswagen, à semelhança de muitas outras empresas, estar a aprender essa dança sugere que chegámos a um momento crucial para o planeta. Esta empresa e esta indústria estão a afastar-se daquilo que fez da Volkswagen o fabricante com maiores receitas do mundo: o motor de combustão interna emissor de dióxido de carbono.
À medida que um maior número de pessoas e governos pede uma acção urgente face às alterações climáticas, carros e carrinhas enfrentam a maior revolução desde o aparecimento dos automóveis, há mais de um século. Novas empresas tecnológicas e empresas de referência disputam agora uma posição naquele que, subitamente, os líderes da indústria consideram o melhor caminho para o futuro: veículos sem tubos de escape. A sua popularidade está a aumentar em praticamente todas as vertentes.
No entanto, segundo o calendário necessário para enfrentar o desafio do clima, a transição dos veículos a gasolina continua a ser muito lenta. Os recordes de temperatura continuam a ser quebrados a nível global, alimentando secas devastadoras e incêndios florestais do Árctico à Austrália.
O degelo está a causar a subida dos níveis dos mares, aumentando a ocorrência de cheias à medida que as tempestades se tornam mais extremas. Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, para evitar que milhões de pessoas corram perigo, o planeta precisa de reduzir a zero as emissões de dióxido de carbono até 2050. De preferência, muito antes disso.
Com quase um quarto das emissões globais geradas por todos os tipos de transporte, conseguiremos fazer o desmame dos carros alimentados a petróleo suficientemente depressa para evitar os piores efeitos?
É difícil contestar que aquilo a que estamos a assistir é uma revolução. Na década de 1990, a General Motors apresentou um carro eléctrico, construiu menos de 1.200 e procedeu à sua recolha por defeitos de fabrico. O ritmo actual da mudança é intenso.
A quantidade de veículos totalmente eléctricos e de híbridos eléctricos plug-in, ou EV, aumentou quase 50% no ano passado, apesar de as vendas de automóveis terem descido 16% em geral. O tipo de modelos disponíveis para condutores de todo o mundo aumentou 40%, para cerca de 370. Na América do Norte, a variedade deverá quase triplicar até 2024, alcançando os 138. De momento já existem versões eléctricas de Mini Coopers, Porsches e Harley-Davidsons.
Museu Húngaro da Ciência, Tecnologia e Transporte (Modelo Jedlik); Musée Electropolis, Mulhouse, França (Triciclo); Lebrecht Music & Arts/Alamy Stock Photo (Carro Belga); Getty Images (Tesla). Fontes: Nick Enge, Universidade do Texas; Ministério da Energia dos EUA
Da Califórnia à China, do Japão ao Reino Unido, vários governos anunciaram recentemente planos para proibir a venda de novos veículos de passageiros alimentados unicamente a gasolina ou gasóleo até 2035, ou antes. Gigantes da indústria automóvel, da Volvo à Jaguar, acreditam que, daqui até lá, já terão descontinuado os motores a pistões, ao passo que a Ford afirma que os seus veículos de passageiros na Europa serão todos EV ou híbridos dentro de cinco anos e totalmente eléctricos até 2030. A GM prometeu tornar-se neutra em carbono até 2040. O presidente norte-americano, Joe Biden, jurou trocar a frota federal, constituída por mais de 600 mil veículos por EV e a sua administração planeia reforçar as normas de eficiência de combustível.
Wall Street e os investidores estão a apostar em grande. Durante parte do ano passado, o valor da Tesla, responsável por quase 80% de todas as vendas de EV nos Estados Unidos da América em 2020, foi superior ao das gigantes petrolíferas ExxonMobil, Chevron, Shell e BP juntas. Novas marcas de carros e carrinhas eléctricas estão constantemente a aparecer: Bollinger, Faraday
Future, Nio, Byton. Outras estão a apresentar-se ao mercado com agressividade. Um microcarro eléctrico de duas portas com uma velocidade máxima de 100 quilómetros por hora e preço-base aproximado de 5.000 euros tem estado a vender mais do que a Tesla na China, lar de mais de 40% dos veículos plug-in do mundo.
Os dias dos veículos ligeiros com motores de combustão parecem, finalmente, contados. “A barragem vai rebentar, chegámos ao ponto de ruptura”, diz Sam Ricketts, membro da equipa que redigiu o plano de acção climática do governador Jay Inslee, do estado de Washington, durante a sua candidatura à presidência. Muitas das ideias de Inslee foram mais tarde introduzidas nos planos climáticos de Biden.
“A electrificação dos transportes é o nosso futuro. Acho que o comboio já partiu”, acrescenta Kristin Dziczek, economista do Center for Automotive Research, uma organização sediada no estado de Michigan parcialmente apoiada pelos fabricantes de automóveis.
Como chegámos a este ponto?
Mesmo antes do sucesso da Toyota na produção em massa, há mais de duas décadas, alguns países com consciência ambiental tinham começado a restringir normas sobre emissões. Países como a Noruega, onde metade dos veículos novos em circulação na estrada em 2020 eram eléctricos, começaram a oferecer benefícios fiscais aos carros eléctricos. Na China, cidades com problemas de poluição atmosférica tornaram mais célere e barato o registo de EV do que de veículos com motores de combustão interna. O governo dos EUA ofereceu aos consumidores incentivos de 6.300 euros na aquisição de EV e híbridos e investiu enormes montantes na pesquisa e desenvolvimento de baterias. Depois, em 2009, a Tesla obteve um empréstimo de 393 milhões de euros do Ministério da Energia dos EUA para incentivar a produção de berlinas. Os preços das baterias desceram 89% em dez anos e a Tesla vendeu 1,5 milhões de plug-ins.
No entanto, ainda há um longo caminho por percorrer. Cerca de 12 milhões de carros e carrinhas plug-in foram vendidos em todo o mundo, quase 90% dos quais em apenas três regiões: China, Europa e Estados Unidos. Contudo, cerca de 1.500 milhões de veículos a gasolina ainda enchem as estradas e o número total de veículos de passageiros pode aumentar mais mil milhões nos próximos 30 anos, à medida que os rendimentos aumentarem nos países subdesenvolvidos.
A velocidade a que os condutores de todo o mundo vão adoptar os EV depende de vários factores. A indústria está, gradualmente, a derrubar algumas das principais barreiras que afastam os consumidores: autonomia, tempos de recarga, infra-estrutura de carregamento, custos. Um protótipo de laboratório com bateria em estado sólido poderá ser o primeiro passo no sentido de recarregar veículos eléctricos em menos de dez minutos. A Tesla e a Lucid Motors já estão a construir veículos totalmente eléctricos capazes de ultrapassar 650 quilómetros por carga. A Aptera insiste que alguns condutores do seu veículo aerodinâmico de três rodas com alimentação solar poderão nunca precisar de visitar uma estação de recarga. Por enquanto, a maioria dos novos EV são automóveis de luxo. Contudo, o banco de investimento UBS e a empresa de investigação BloombergNEF prevêem que os carros eléctricos possam atingir a paridade com os veículos convencionais em cerca de cinco anos.
Apesar disso, os analistas insistem na necessidade de atingir mais marcos para acelerar esta transição. Ninguém espera que surja em breve uma variedade de opções disponível equiparável à dos automóveis a gasolina actuais. Incentivos do Estado, como a renovação do benefício fiscal de 6.300 euros, que já não se encontra disponível para alguns fabricantes de automóveis, poderá ser essencial para atrair os consumidores.
“Não existe um mercado no mundo que possa fazer isto sem investimento público”, diz Kristin Dziczek. A administração Biden quer gastar 12,7 mil milhões de euros para contribuir para a criação de 500 mil estações de carregamento, mas muitos membros do Congresso esquivaram-se.
O preço e a sustentabilidade dos EV também dependem das matérias-primas. As baterias EV são feitas de lítio, níquel, cobalto, manganês e grafite. A maioria destes materiais são extraídos apenas em algumas minas e muitos são refinados na China. Perante o aumento da procura, os países produtores de EV estão a esforçar-se por garantir as provisões, mas “não faz sentido ter uma mina de lítio nos EUA, expedir o lítio para ser processado na Ásia e depois trazê-lo de volta para os EUA e usá-lo nas nossas baterias”, diz Jonathon Mulcahy, da empresa de investigação Rystad Energy, cujas projecções apontam para uma potencial escassez de lítio no final desta década.
As baterias são o coração dos veículos eléctricos e os fabricantes de automóveis estão a torná-las mais leves,rápidas e duradouras. Numa fábrica no Illinois (EUA), colaboradores da nova empresa tecnológica Rivian montam conjuntos de baterias com o comprimento do chassis para protótipos de veículos. As baterias são feitas à máquina para os modelos em fase de produção. A empresa está a construir modelos eléctricos de carrinhas de caixa aberta, SUV e carrinhas de entregas.
Enquanto isso, a extracção destes metais deu origem a abusos ecológicos e dos direitos humanos. Na União Europeia, debatem-se formas de tornar as cadeias de abastecimento estáveis, éticas e seguras, enquanto os fabricantes de automóveis, incluindo a Volkswagen, estão a criar sistemas de auditoria e certificação para garantir que os fornecedores de baterias cumprem as regras ambientais e laborais. No entanto, não será a primeira vez que os fabricantes de automóveis desiludem.
Quando algo corre mal na linha de montagem da Volkswagen em Chattanooga, os operários puxam cabos que travam a produção e uma de meia dúzia de canções facilmente reconhecíveis faz-se ouvir em toda a fábrica. Os gerentes usam estas músicas para identificar rapidamente o problema. Durante a minha visita, ouvi “The Entertainer”, de Scott Joplin, e reparei que o movimento em meu redor cessara. Mas havia muito a acontecer naquele dia. Os robots especiais necessários para a produção de EV já tinham sido instalados. O departamento de aquisições estava a formalizar contratos com novos fornecedores de peças. Os executivos estavam a ultimar a contratação de centenas de operários.
As sementes deste impulso foram plantadas em 1979, quando Lamar Alexander, na altura governador do Tennessee, visitou o Japão com mapas e uma fotografia captada por satélite. Ali convenceu o presidente executivo da Nissan que o seu Estado dispunha de terrenos ideais para a manufactura, ligados por vias-férreas e auto-estradas a grandes centros populacionais de ambas as costas. Seguiram-se outros fabricantes de automóveis e hoje este Estado conservador é um grande participante no movimento do fabrico de automóveis amigos do ambiente.
Desde 2013 que a fábrica da Nissan em Smyrna, nos arredores de Nashville, fabrica o eléctrico Leaf, o primeiro EV moderno do mundo com sucesso comercial. Custando cerca de 21 mil euros depois dos benefícios fiscais, continua a ser um dos mais baratos da América do Norte. A 65 quilómetros de distância, a GM está a gastar 1,7 mil milhões de euros para remodelar a sua fábrica de Spring Hill de forma a produzir um Cadillac eléctrico, o primeiro de vários EV que aqui serão construídos. Toda essa produção será alimentada por energia solar até 2023. A empresa também está a investir cerca de dois mil milhões numa fábrica de baterias que empregará 1.300 pessoas. A Tennessee Valley Authority, que gere as centrais hidroeléctricas e outras centrais electroprodutoras, planeia financiar estações de carregamento rápido a cada 80 quilómetros ao longo das vias rápidas do Tennessee.
Depois, temos Chattanooga. Em 1969, um ano antes da criação da Agência de Protecção Ambiental (EPA), o governo dos EUA declarou que a poluição da cidade por materiais particulados era a pior do século. A sua poluição por ozono só ficava atrás da de Los Angeles. Décadas de revitalização conduziram a um dos mais aclamados feitos ambientais da história. Em 2008, pouco depois de a cidade finalmente cumprir as normas referentes ao ozono, a Volkswagen iniciou a construção da sua nova fábrica.
O Grupo Volkswagen, que inclui a Audi, a Porsche e mais nove marcas, aderiu aos EV. Isto deve-se, em parte, ao escândalo das emissões, revelado em 2014, que resultou em multas de milhares de milhões de euros, recolha de milhões de automóveis e à acusação do seu antigo director executivo por conspiração. Um acordo firmado com a EPA devido à instalação de dispositivos que faziam os automóveis parecer menos poluentes em alguns dos 590 mil veículos a gasóleo vendidos nos EUA exigiu que a empresa procedesse a grandes investimentos no carregamento de EV. Mas isso não basta para explicar a profundidade da conversão da Volkswagen.
A empresa está a investir mais de 33,8 mil milhões de euros em todo o mundo para projectar 70 novos modelos eléctricos e produzir 26 milhões até 2030. Com o apoio de parceiros, a VW espera instalar 3.500 pontos de carregamento rápido nos EUA até ao final do ano e 18 mil na Europa até 2025. A Volkswagen injectou 250 milhões de euros numa nova empresa tecnológica fabricante de baterias que espera reduzir os tempos de carga para metade. Está a construir e a expandir fábricas em toda a Europa, pretendendo baixar o preço das baterias para metade.
“Os louros a quem os merece: é mais do que evidente que, entre os grandes fabricantes de automóveis, a VW é a que está a fazer maiores investimentos nos EV”, diz Nic Lutsey, director do programa de veículos eléctricos do Conselho Internacional para os Transportes Limpos, que fornece dados e análises para ajudar os governos a tornarem os transportes mais verdes. Foi esta organização que apanhou a Volkswagen a mentir sobre as emissões. “Esses investimentos puseram-na num caminho muito mais ambicioso do que foi exigido” por qualquer acordo judicial, diz Nic.
Scott Keogh, director-geral do Grupo Volkswagen da América, cresceu em Long Island na década de 1970, encolhendo-se para caber no porta-bagagens do VW Carocha da sua família.
Estudou Literatura Comparada na universidade e trabalhou em projectos de desenvolvimento na Bolívia antes de entrar para a indústria automóvel, primeiro na Mercedes-Benz e depois na Audi. Em 2018, após o acordo com a EPA, assumiu a direcção dos negócios da VW na América do Norte.
O escândalo das emissões é “um desastre empresarial, causando certamente danos e deixando cicatrizes que não esquecemos”, diz quando falo com ele por Skype. Mas “a empresa mobilizou-se para emergir desta crise melhor, mais forte, mais inteligente e com um sentido de missão”. A Volkswagen anunciou tão cedo o seu compromisso com os EV que, ao apresentar o plano aos vendedores de automóveis dos EUA, “esse plano foi esmagadoramente recebido com... cinismo – creio que é a palavra adequada”, disse Scott. Até há poucos anos, os vendedores presumiam que os EV continuariam a ser um mero nicho de mercado.
Motociclistas conduzindo motos eléctricas quase silenciosas serpenteiam perto de Malibu, na Califórnia. O passeio foi organizado por Harlan Flagg, dono da Hollywood Electrics, uma loja de motociclos eléctricos que promove a alegria de conduzir motos silenciosas e limpas em vez dos ruidosos modelos a gasolina. Até a Harley-Davidson já vende motos eléctricas.
Tudo isso mudou, diz o meu interlocutor. Recebe regularmente na sua secretária sondagens que, em alguns cenários optimistas, sugerem que a aquisição de automóveis poderá ser 50% eléctrica na próxima década. De repente, as apostas da VW parecem “mesmo inteligentes e mesmo necessárias”, diz.
Scott Keogh não subestima o desafio. Menos de 5% das vendas de automóveis novos na Europa são de veículos totalmente eléctricos, enquanto nos EUA é 2%. O número sobe para 8% na China. “E é claro que estamos a investir e a fazer projecções para, daqui a dez anos, elevá-lo a cerca de 30 a 40%”, diz. Aguardar uma curva de crescimento tão rápida é “algo verdadeiramente capaz de nos tirar o sono”.
É também por isso que Scott Keogh não vê a Tesla ou outros fabricantes de EV como os seus principais concorrentes. Os condutores a quem se dirige são os que estão agora a comprar pequenos SUV a gasolina, como o Toyota RAV4 ou o Subaru Forester. “Estamos muito concentrados nos 98% do mercado que não conduzem um veículo eléctrico.”
Também se operou uma luta parecida pelo coração dos consumidores, no início. Em 1896, quando os cavalos e as carruagens ainda competiam com os automóveis, os potenciais compradores presentes na primeira grande feira automóvel de Londres podiam escolher entre motores eléctricos e a gasolina. Alguns aspectos dessa escolha não mudaram.
“A electricidade tem a vantagem de funcionar sem cheiro e com menos ruído e vibração”, escreveu o “British Medical Journal” num artigo de análise da feira. “A desvantagem é o custo dos acumuladores [baterias] e a impossibilidade de recarregar, excepto nos locais onde há fornecimento de electricidade disponível.”
Quando o primeiro concessionário de venda de automóveis dos EUA abriu em Detroit, alguns anos mais tarde, vendia apenas carros eléctricos. Na Áustria, os primeiros veículos projectados por Ferdinand Porsche também funcionavam a electricidade. O seu sócio, Ludwig Lohner, disse que ele preferia os carros eléctricos porque achava que o ar de Viena já estava “implacavelmente estragado pelo grande número de motores a petróleo”. No entanto, o petróleo barato e a pavimentação das estradas rurais não tardariam a eleger um vencedor. Os veículos eléctricos desapareceriam até ao final da década de 1930.
Em Normal, no estado de Illinois, conheci um homem com uma visão diferente sobre a maneira de trazer de volta os veículos eléctricos. Em 2015, a Mitsubishi encerrou a sua fábrica no local, despedindo quase 1.300 trabalhadores. Dois anos mais tarde, o engenheiro e empreendedor Robert “RJ” Scaringe transformou o espaço vazio numa fábrica da sua nova empresa tecnológica, a Rivian.
Vislumbro Robert pela primeira vez, sozinho na fila da cafetaria, num dia em que o valor da sua empresa está avaliado em quase 23,7 mil milhões de euros. Mesmo quando era um adolescente da Florida a arranjar Porsches na oficina de um vizinho, Robert sabia que queria fazer carros. Quando frequentou o MIT, onde se doutorou em Engenharia Mecânica, a sua preocupação com as alterações climáticas já o consumia. Enquanto passeamos pela antiga fábrica da Mitsubishi, antes de os novos veículos de Rivian começarem a ser produzidos, Robert explica como encara esta tarefa: “Como pegamos em cerca de 90 a 100 milhões de automóveis por ano e os tornamos eléctricos?” Ele decidiu que o seu contributo seria desenhar EV que os condutores pudessem desejar. E o que querem os consumidores acima de tudo? Alguns dos veículos com consumos menos eficientes da estrada. Existem actualmente mais de 200 milhões de SUV em todo o mundo, seis vezes mais do que há uma década, e ainda mais milhões de carrinhas. Nos EUA, ambas as categorias representavam 70% do mercado de veículos novos em 2019. “Não só são o maior problema em termos de carbono e sustentabilidade… como são o tipo de veículo mais popular”, diz.
Os dois primeiros EV da Rivian, uma carrinha de caixa pequena chamada R1T e um SUV chamado R1S, serão alternativas mais ecológicas para os amantes do ar livre. À semelhança da Tesla, a empresa está a construir a sua própria rede de carregamento exclusiva: 3.500 carregadores rápidos nas auto-estradas e mais alguns milhares em parques de skate e junto ao início de trilhos de caminhada. Robert Scaringe achou que não tinha alternativa. Apesar de a maioria dos carregamentos serem feitos em casa, uma rede de carregamento mal distribuída e inconsistente dificulta as viagens mais longas e continua a ser “uma razão para não comprar o veículo”.
A Rivian não terá o mercado das carrinhas só para si. A Tesla já mostrou a sua Cybertruck e a chegada de uma versão eléctrica do Ford F-150 – o veículo mais popular dos EUA, com vendas próximas de 900.000 unidades em 2019 – está prevista para 2022. O preço-base para o F-150 Lightning será substancialmente inferior ao dos veículos topo de gama da Rivian. A um mês da sua apresentação, mais de cem mil compradores já fizeram reservas.
A Ford investiu na Rivian e Robert Scaringe mostra-se optimista quanto à concorrência. Salienta rapidamente que uma transição completa para os EV não pode ser alcançada apenas por uma empresa. Mas ele e a sua equipa também vêem a nossa relação com os veículos a mudar de formas que poderão contribuir para a electrificação.
“Há 15 anos, se quiséssemos bananas, íamos à loja. Se quiséssemos sapatos novos, íamos de carro até à loja”, diz. Agora, as empresas de entregas trazem livros, refeições, artigos de supermercado e sapatos até à nossa porta. Outros fazem viagens por nós. Robert Scaringe vê uma oportunidade nisto. E se ele pudesse trocar uma frota de camiões de entrega por EV? “Uma pessoa pode, enquanto consumidor, ainda não decidir electrificar o seu veículo pessoal. Mas como está a entregar a outros uma grande parte da sua logística de quilómetros finais, vai electrificar, quer se aperceba, quer não.”
A Rivian está a fabricar cem mil veículos de entregas eléctricos para a Amazon, a gigante das vendas a retalho. Alguns já andam nas ruas, em fase de testes. A FedEx também anunciou que vai tornar-se eléctrica. A UPS investiu noutra empresa de EV e vai comprar dez mil veículos eléctricos para entregas.
Robert Scaringe está a pensar alargar o negócio fora dos EUA, aos países menos desenvolvidos, onde poucos possuem automóveis e carrinhas novos e a relação com os veículos é completamente diferente. Na sua opinião, surgirão ali novos modelos de utilização: propriedade parcial, locação automóvel flexível, serviços de subscrição.
Em vez de vermos novos veículos a gasolina a conquistarem regiões como a África ou a Índia, “a resposta certa será: ‘Como podemos inovar o produto, o modelo de negócio, o ecossistema, de modo a permitir que estes mercados prescindam daquilo por que passaram os EUA, a Europa ou a China? Ou seja, os actuais ecossistemas de transporte muito ineficientes e extremamente poluentes.”
No Quénia , Esther Wairimu desenvolve trabalho nesse sentido. Nas profundezas da zona industrial de Nairobi, filas de armazéns do tamanho de campos de futebol alojam torrefactores de café, vendedores de tintas e fabricantes de mobiliário. Ao fundo de uma via poeirenta cheia de carrinhas, porém, o negócio é outro.
Num piso imaculado, emoldurado por paredes brancas impecáveis, 88 funcionários, incluindo Esther, passam dias a soldar cabos e a testar sistemas de bateria, ligando-se a um dos primeiros carregadores de veículos do Quénia. Quando a fotógrafa Nichole Sobecki se encontrou aqui com ela na Primavera passada, esta mulher de 25 anos estava a tentar resolver problemas de ligação num velhinho matatu – um pequeno autocarro público decorado. Estava a tentar fazê-lo funcionar com uma bateria.
Esther é engenheira e trabalha na Opibus, uma de muitas novas empresas tecnológicas que esperam trazer a electrificação aos países em desenvolvimento. No entanto, a empresa com quatro anos não está a construir carros ou carrinhas. Está a transformar velhos veículos de transporte a gasolina em EV e a construir motocicletas novas e baratas, ajudando os quenianos a financiá-los.
“Neste momento, a situação não evoluiu muito”, diz. “Há muitos sítios em África que nem sequer têm bombas de gasolina. Temos uma oportunidade de criar uma visão melhor.” Embora a Opibus tenha sido fundada por engenheiros suecos, a maioria dos funcionários da Opibus é queniana, tal como Esther Wairimu. 40% são mulheres.
Os países menos desenvolvidos são um grande mercado por explorar, “mas são muito assustadores para os fabricantes tradicionais de veículos”, diz a directora de estratégia Albin Wilson. No entanto, este é o momento certo para agir. O número de veículos a gasolina e gasóleo em regiões da África Oriental está a duplicar a cada década que passa. A maioria deles (cerca de 85% de todos os veículos no Quénia) são modelos antigos usados e importados. O Quénia estabeleceu normas de poluição para veículos novos e usados. Porém, mais de oitenta países no mundo em desenvolvimento têm limites mais folgados ou nenhuns. Poucos grandes fabricantes de automóveis estão concentrados neste mercado emergente, pelo que restam as pequenas empresas como a Opibus para tentar construir os alicerces para a mudança.
A Opibus começou por criar kits de conversão para empresas de safaris, incorporando motores e baterias de EV, que poderiam ser carregados com painéis solares, instalando-os nas estruturas de jipes a gasóleo. No entanto, os líderes da empresa queriam obter mais impacte e começaram a fabricar motocicletas eléctricas.
Até agora, só testaram uma centena. O preço unitário não será superior ao de uma moto convencional e o combustível e a manutenção custam menos de metade. Num sítio onde muitos condutores usam as suas motos como táxis ou veículos de entregas, esta é uma alternativa atraente. Segundo parece, a principal preocupação dos consumidores é se a electrificação tornará as suas vidas melhores. “Eles querem saber: vou ganhar mais dinheiro com esta ferramenta?”, explica Albin Wilson.
Rob de Jong, do Programa Ambiental das Nações Unidas no Quénia, defende que estão a surgir esforços semelhantes em muitos países menos desenvolvidos. Emergiram novas empresas tecnológicas de EV no Ruanda e na Etiópia. Uma cidade nas Filipinas está a experimentar veículos eléctricos nos serviços postais. Autocarros eléctricos podem chegar às ilhas Seychelles. Na sua opinião, os fabricantes de automóveis devem aumentar os seus esforços para promover a tendência.
O impacte potencial é enorme, diz Esther Wairimu: as alterações climáticas já estão a ameaçar a agricultura dependente da chuva que sustenta a África Oriental e a sua própria família. “Se nos tornarmos eléctricos, estaremos a salvar África”, diz ela a Sobecki. “Se nos tornarmos eléctricos, estaremos a proteger o mundo inteiro.”
A National Geographic Society, empenhada em divulgar e proteger as maravilhas do nosso mundo, financia as histórias do explorador David Guttenfelder sobre a condição humana desde 2014. Ilustração de Joe Mckendry