Preeti Upadhyay, de 33 anos, segura uma das suas gémeas nascidas há dois dias, seguindo à risca o protocolo dos “cuidados maternos de canguru” do Hospital Safdarjung, em Nova Deli (Índia).
É a primeira sensação que temos como bebés: a carícia reconfortante dos outros. A ciência compreende cada vez melhor a importância dos abraços e dos apertos de mão para a nossa saúde e a nossa essência humana.
Texto: Cynthia Gorney
Fotografias: Lynn Johnson
Numa tarde de Setembro de 2018, seis anos depois do acidente de trabalho que lhe destruiu o antebraço esquerdo e a respectiva mão numa correia de transmissão industrial, um homem chamado Brandon Prestwood apresentou-se perante a sua mulher, com uma expressão facial tão complexa e tão carregada de expectativa nervosa, que parecia dividido entre o riso e as lágrimas. No pequeno grupo reunido em torno dos Prestwood, alguém pegou num telemóvel para registar a cena curiosa: a mulher bonita, o homem barbudo, com uma prótese branca do cotovelo à ponta dos dedos, e os cabos ligados ao computador que subiam pelo interior da camisa de Brandon.
Na verdade, entravam pele adentro, pois Brandon – o seu corpo e não a sua prótese – está, de momento, literalmente ligado à corrente. No âmbito de um audaz conjunto de experiências realizadas por uma rede internacional de neurologistas, médicos, psicólogos e engenheiros, Brendan permitira que os cirurgiões da Universidade Case Western Reserve, em Cleveland, abrissem a extremidade do seu braço esquerdo e fixassem minúsculos condutores eléctricos nos nervos e músculos truncados. Em seguida, os cirurgiões conduziram cabos finíssimos, como linha de costura, pelo interior do seu braço, fazendo-os sair pelo ombro. Sempre que removia o penso que os cobria, Brendan conseguia ver os cabos espreitando através da sua pele.
Incrível, na verdade. São fios que saíam do meu braço, dizia Brendan a si próprio.











A depressão em que caíra após o acidente roubara-lhe demasiado tempo. Agora, sentia-se motivado: tinha um objectivo. Durante alguns meses, viajou com regularidade até Cleveland para que os investigadores pudessem ajudá-lo a fixar um braço prostético de uma nova geração de membros artificiais com motores internos e dedos equipados com sensores. Estes dispositivos têm suscitado grande interesse entre os especialistas em fisioterapia, mas a equipa da Case Western Reserve não queria estudar somente as melhorias de controlo proporcionadas pelas novas próteses. Aquilo que realmente fascinava os investigadores era a experiência do tacto humano.
Com efeito, a interacção fundamental entre a pele, os nervos e o cérebro é tremenda e maravilhosamente complicada. Compreendê-la, medi-la e reproduzi-la de uma forma que pareça… humana é um desafio.
No Laboratório de Restauração Sensorial, sempre que os investigadores da Case Western Reserve o submetiam a exames, estavam a encorajar desenvolvimentos. Por exemplo, quando Brendan conseguiu que a mão prostética se fechasse sobre um bloco de espuma, ele sentiu a pressão contra a espuma. Foi uma ligação. Um tilintar que parecia vir-lhe dos dedos que já não possuía.
Amy Prestwood nunca tivera oportunidade de se juntar ao marido nas sessões no laboratório. Só o fez naquela tarde de Setembro. Ambos conseguiram estar então juntos enquanto Brandon utilizava a prótese experimental com os cabos do ombro ligados.
Brandon guarda no telemóvel o vídeo do que aconteceu a seguir. Ainda hoje perde a compostura quando fala nisso. Ninguém editou este vídeo: tudo o que vemos são duas pessoas, uma diante da outra, numa grande sala. Estão inseguras e desajeitadas, como adolescentes no seu primeiro baile. Brandon olha para os pés e para os dedos prostéticos e ri-se. Com o braço direito, o que ficou intacto, chama Amy para a sua esquerda.
Um volume crescente de bibliografia sobre o nosso sentido do tacto contém abundante informação sobre novas descobertas científicas, conjecturas e propostas fantásticas para o futuro, mas há quatro segundos naquele vídeo que quero descrever. Correspondem ao instante em que Amy envolve com os dedos a mão da prótese de Brandon. Levanta a cabeça de repente. Abre os olhos. Cai-lhe o queixo. Ela está a olhar para ele, mas Brandon está a olhar em frente, para o vazio, sem ver nada. “Eu conseguia sentir”, disse-me. “Eu recebia feedback. Eu estava a tocar-lhe. Eu estava a chorar. Acho que ela estava a chorar.”






Depois de um tumor obrigar o professor reformado Neil Oldham a amputar o antebraço e a mão direitos, em 2018, ele concordou em juntar-se à investigação de restauro do tacto da Universidade de Michigan, o que implicou uma nova cirurgia para implantar eléctrodos. “Fui abençoado com dois braços e pernas durante 70 anos”, diz. “Não me importo de ser uma cobaia se isso ajudar outra pessoa.”
E estava mesmo. No dia em que ele me mostrou o vídeo, vivia-se o auge da pandemia e encontrávamo-nos sentados ao ar livre. Brendan estivera no laboratório de Cleveland durante horas e queria fumar um cigarro. Conhecemo-nos pessoalmente pela primeira vez nessa manhã. Não me lembro de que maneira ultrapassámos a hesitação de apertarmos, ou não, a mão um ao outro. A hesitação não se devera à circunstância de Brandon ter apenas uma das mãos, mas ao facto de, em todo o mundo, as pessoas ainda tentarem perceber como lidar umas com as outras e como dar por terminadas as regras de distanciamento.
Talvez o leitor se lembre das fotografias de pessoas abraçadas através de cortinas de duche durante a pandemia. Esta revista publicou uma imagem particularmente comovente de um pedaço de plástico transparente preso numa corda de estendal: com o plástico a separá-las, uma mulher e a filha abraçam-se pela primeira vez em meses. Juro que conheço o som e a sensação daquele momento: eu e a minha própria filha improvisámos algo parecido, depois da estranha e dolorosa época das visitas à distância no quintal e consigo lembrar-me da felicidade que senti com aquele abraço.
Através de uma barreira, é verdade. Enrugada, escorregadia e de plástico. Mas o meu “estado de carência”, como lhe chama o neurocientista Francis McGlone, da Universidade John Moores de Liverpool, era demasiado elevado para eu reparar nisso. “É como quando se tem uma deficiência vitamínica”, disse Francis McGlone. “Precisamos de repô-la através do toque.”
Os neurologistas e os psicólogos têm marcadores biológicos que explicam o que parece intuitivamente óbvio para muitos de nós – a maioria dos seres humanos precisa da presença física de outros e do toque reconfortante de outros para se manter saudável. Leia este texto antes de eu lhe dizer onde foi publicado pela primeira vez: “O toque é um aspecto fundamental da interacção social, uma necessidade humana fundamental… O toque social acalma o receptor do toque durante experiências stressantes… pode diminuir a activação das regiões do cérebro relacionadas com a ameaça… pode influenciar a activação das vias de stress no sistema nervoso, reduzir os níveis das hormonas de stress… Descobriu-se que estimula a libertação de oxitocina, um neuropeptídeo produzido no hipotálamo… Os níveis elevados de oxitocina estão associados a um aumento da confiança, ao comportamento cooperativo, à partilha com estranhos, à leitura mais eficaz das emoções do outro e a uma resolução de conflitos mais construtiva.”
Clique na imagem para ver detalhes.
Retirei este fragmento de uma acção judicial federal contra o confinamento solitário. Os advogados que defenderam o processo há décadas, em prol de reclusos numa prisão de segurança máxima na Califórnia, argumentaram que a prática de isolar os reclusos durante anos – com um sistema de segurança elaborado que praticamente eliminava o contacto físico com outros, incluindo com os guardas – resultava numa punição inconstitucional, cruel e invulgar.
Ainda hoje estão a ser discutidos os pormenores de um acordo em tribunal, mas o actual registo permanente inclui o relatório técnico redigido pelo professor de psicologia Dacher Keltner, da Universidade da Califórnia, que há mais de 15 anos ensina e supervisiona a investigação na ciência do tacto. “Podemos afirmar que é a nossa mais antiga e fundamental linguagem de ligação social”, disse-me o docente.
A mais antiga em termos evolutivos, quer ele dizer: pensa-se que nós, os seres humanos, utilizámos a “comunicação táctil”, como lhe chamam os artigos científicos, muito antes de começarmos a descobrir a fala. E também a mais antiga em termos individuais: sabemos agora que o toque é a primeira sensação percepcionada por um feto. No nascimento e durante os primeiros meses de vida, é o sentido mais crucial e plenamente desenvolvido de um bebé – é assim que começam a explorar o mundo, desenvolvendo confiança, aprendendo onde os seus corpos acabam e tudo o resto começa.
Um dos mais influentes e inquietantes estudos de psicologia sobre o tacto foi realizado com bebés, embora neste caso fossem macacos. No final da década de 1950, uma equipa liderada pelo psicólogo Harry Harlow, da Universidade de Wisconsin, retirou macacos recém-nascidos às progenitoras e isolou-os em gaiolas com duas substitutas com a forma vaga de um macaco – uma feita de arame exposto e a outra coberta com um tecido felpudo e macio. Numa das experiências de Harlow, só a figura de arame dava leite. As crias aprenderam a alimentar-se dele, mas assim que acabavam de beber – e sempre que os cientistas atiravam um monstro mecânico horrível que abanava a cabeça na sua direcção – corriam para as progenitoras falsas mais macias, agarrando-se à parte central do tecido num gesto cuja melhor descrição corresponde à de um abraço desesperado.
Há um vídeo antigo dos macacos de Harlow a circular na Internet e é horrível vê-lo: Harlow, com a sua bata de laboratório, narra calmamente a observação a um espectador enquanto uma cria enjaulada e sozinha se aninha no tecido felpudo. O psicólogo queria provar uma hipótese até então considerada herética. As autoridades ocidentais desta época aconselhavam os pais a não tocarem nos bebés mais do que o estritamente necessário por considerarem que os abraços e beijinhos em bebés e crianças pequenas eram formas antiquadas de excesso de mimo. As crianças cresceriam fracas e dependentes, insistiam.
As experiências de Harlow com macacos são eticamente repugnantes para a sensibilidade moderna, mas são parte da razão pela qual hoje sabemos quão erradas essas teorias estavam. As crias, os nossos primos evolutivos, precisavam tão profundamente daquilo a que Harlow chamou “conforto de contacto” que rejeitavam uma fonte de alimento estável em prol de um toque suave.
Estudos realizados depois de Harlow multiplicaram as provas do poder e da química do conforto de contacto. Cientistas que trabalham com ratos de laboratório, por exemplo, descobriram que pegar nos ratos e acariciá-los delicadamente beneficia a capacidade de aprendizagem e de gestão do stress dos animais. O tipo certo de contacto de pele com pele também produz melhorias específicas em indicadores de saúde dos bebés humanos: no batimento cardíaco, no peso, na resistência a infecções. As incubadoras neonatais foram concebidas para manter os prematuros e outros bebés que nascem com baixo peso em condições de isolamento estéril, mas alguns hospitais tratam agora estes bebés seguindo um protocolo chamado “cuidados maternos de canguru”. Implica pousar os recém-nascidos sobre o peito desnudo das mães, mal tal seja possível após o nascimento, e mantendo-os assim durante muitas horas.
Os bebés que têm contacto com as mães têm acesso constante e imediato ao leite materno e podem absorver microrganismos maternos protectores. Estudos hospitalares também concluíram que, quando a mãe está doente ou quando se mostra incapaz de pegar no bebé durantes longos períodos, outro adulto pode substituí-la temporariamente. Não é uma hipérbole romântica dizer que o calor físico e o toque de uma mãe – ou de um pai ou de qualquer outro ser humano atento que compreenda a delicadeza necessária – consegue manter um bebé recém-nascido vivo.
"Sinta isto", disse Veronica Santos, e retirou quatro ladrilhos da gaveta de uma secretária. “Feche os olhos.” Os meus dedos comunicaram-me em segundos a informação de que os quatro pedaços eram todos de plástico. Um tinha concavidades. Outro, uma saliência. Curvas. Ângulos. Um quadrado elevado aproximadamente do tamanho de um selo.
Qualquer pessoa que faça uso de, pelo menos, uma mão, lidará constante e diariamente com este tipo de transmissão de informação instantânea entre a pele e o cérebro. Qual das formas dentro da sua mala é a caneta que procura às apalpadelas? A sua carteira ainda está no bolso de trás das calças? Neste preciso instante, presumindo que o leitor está vestido, experimente sentir o tecido das calças, da camisola ou do pijama. Mas não olhe para baixo.
Veronica Santos, uma engenheira que dirige o Laboratório Biomechatronics, na UCLA, também me pediu para fazer esse gesto e para descrever a textura da camisa que eu trazia vestida, sem olhar para ela. É provável que eu e você tenhamos reagido da mesma forma: não espetámos um dedo, da forma como poderíamos apontar um local num mapa. Em vez disso, deslocámos a ponta de um ou dois dedos ligeiramente sobre o tecido, para trás e para a frente, ou esfregamo-lo entre o indicador e o polegar.
Foi a anatomia que nos ensinou isto e não a cultura. Nós, seres humanos, estamos envoltos, como em tempos ouvi outro cientista dizer, numa “película incrivelmente complexa coberta de sensores” – é a pele, o nosso maior órgão. As suas camadas contêm centenas de milhares de células receptoras, irregularmente distribuídas pela superfície do corpo, especializadas em várias tarefas. Algumas transmitem ao cérebro sinais sobre temperatura ou a perturbação dolorosa que percepcionamos como dor. Outras parecem especializadas em acalmar: o neurologista Francis McGlone pertence a um grupo internacional de cientistas que estuda receptores mais densos na pele com pêlos dos braços e das costas, que produzem um efeito agradável quando a pele que os segura é penteada ou afagada.
Alguns receptores transmitem ao cérebro o tipo de informação pormenorizada que, ao longo de todo o dia, nos ajuda a saber aquilo em que estamos a tocar, a fazer e a usar. Chamam-se mecanorreceptores. Graças à evolução, para nossa comodidade, a sua densidade é particularmente elevada na palma da mão e na face interior dos dedos. Estão a trabalhar para si – mais uma vez, se fizer uso de, pelo menos, uma mão – neste preciso instante. Tem estado a virar as páginas da revista com os dedos, certo? Experimente dobrar uma página. Depois com os olhos fechados, passe um dedo pela dobra, sentindo a suavidade da página atrás dela. Deixe os seus dedos encontrarem os cantos da página, as capas, a lombada.
Neste preciso instante, entre a sua mão e o seu cérebro, estão a ocorrer vários processos. A pressão contra a ponta dos seus dedos, a distorção da pele, as vibrações em que não repara quando desliza o dedo sobre superfícies – cada uma destas minúsculas alterações à sua própria película coberta de receptores estavam a estimular os seus mecanorreceptores. Foram identificadas quatro variedades de receptores de tacto, cada qual com a sua própria especialidade: os seus mecanorreceptores que sentem vibrações, por exemplo, estão a disparar enquanto as pontas dos dedos se deslocam sobre texturas de papel e tecido. Os nervos transportam esses sinais da pele até ao cérebro, que instantaneamente os identifica e percebe: Macio! Outro tipo de macio! Ganga! Bombazine!
Nada disto acontece isoladamente. O contexto, os cheiros, os sons, a memória, a informação sobre a situação afectam o desfecho. Reconhecemos a bombazine em parte porque aprendemos há muito a reconhecer a sua textura. É por isso que o toque da mão de outra pessoa pode agradar num contexto e repelir noutro. “Toda a nossa percepção é construída em torno da nossa vida de experiências”, disse o engenheiro biomédico Dustin Tyler, da Universidade Case Western Reserve. “O sistema com o qual estamos a trabalhar – a interligá-la e a criar o nosso eu – não é um mecanismo com um princípio e um fim e é isso que queremos compreender.”
Dustin chefia a equipa, constituída por profissionais de várias especialidades, que trabalha com Brandon Prestwood e oito outros pacientes, todos os quais – devido a amputação ou, num caso, a paralisia – perderam capacidade natural de sentir o toque em, pelo menos, um membro. Uma conversa com Dustin Tyler pode ricochetear entre metafísica e exuberância pura e simples, abrangendo temas como a engenharia electrotécnica e as redes neuronais. Afinal, as redes neuronais correm através do sistema eléctrico interno do organismo: são impulsos eléctricos que transportam sinais de e para os nervos. “Fiquei fascinado com o cérebro”, disse-me. “Ainda me surpreendo todos os dias com a maneira como funciona esta máquina na qual nos deslocamos.”
A sobreposição da neurociência com a engenharia é uma longa história. Durante as décadas de 1960 e 1970, os cientistas começaram a recorrer a estimulação eléctrica e a eléctrodos, implantados cirurgicamente ou fixados sobre a pele, para activar os músculos de pessoas com paralisia. Joyce, a mulher de Tyler, é terapeuta ocupacional reformada e o seu trabalho com pacientes amputados ajuda a chamar a atenção dele para um desafio de neuroengenharia paralelo no século XXI. E o tacto? Com tantos veteranos de guerra feridos nos Estados Unidos devido a explosivos provocados por conflitos militares no século XXI, os departamentos de Assuntos de Veteranos de Guerra e da Defesa dos EUA estavam a financiar generosamente a investigação de próteses. Na sua demanda pelo “quase natural”, um termo por vezes utilizado pelos investigadores quando incorporam tecnologia em novos tipos de membros substitutos, conseguirão eles gerar nesses membros sensações quase naturais? Poderia uma prótese com sensores incorporados, utilizada em conjunto com eléctrodos implantados, permitir a um amputado sentir o toque através do dispositivo, como se fosse uma parte do corpo viva?
A resposta, baseada nas investigações da Case Western Reserve e de outros institutos, é afirmativa. “Considerámos isto um desafio com todos os nossos sujeitos”, disse Dustin Tyler. Mas hesitaram na palavra mais adequada. “‘Cócegas’ é a mais típica. Mas eles não têm referências. Não se assemelha a nada que tenham sentido antes.”
É como uma gota de água fria, disse-lhe um paciente. Ou aquela sensação de formigueiro que temos quando um pé ou uma mão ficam dormentes e depois começam a recuperar. “Uso a palavra ‘zumbido’, mas é quase demasiado forte”, disse-me Brandon Prestwood. “Como se alguém pegasse na ponta de uma agulha e, sem tentar furar-me a pele, lhe tocasse ao de leve.”
Cada centro está a organizar experiências com a sua própria combinação de implantes e próteses. O gráfico das páginas 22-23, criado sob orientação do engenheiro Max Ortiz Catalán da Universidade de Tecnologia Chalmers, na Suécia, mostra a solução desenvolvida pelos cientistas desta instituição. Eis a ideia principal: um paciente amputado – um homem como Brandon Prestwood, que perdera o antebraço inteiro – tem os nervos truncados na parte que resta. Aqueles nervos ainda conseguem transmitir sinais, interpretados pelo cérebro como provenientes do membro em falta. Esta é uma das causas da sensação de membro-fantasma.
Por isso, o segredo consiste em restaurar a transmissão dos sinais. Os sensores que estão a ser incorporados nestas próteses experimentais podem converter o contacto com uma superfície – um dedo prostético tocando no tampo de uma mesa, por exemplo – em sinais eléctricos. Isto transmite dados para um computador, que identifica os nervos que precisam de ser estimulados para que o cérebro percepcione o toque no sítio apropriado. O computador transmite impulsos a um eléctrodo através dos cabos implantados no paciente, que estimula o nervo indicado, devolvendo impulsos eléctricos biológicos pelos nervos acima. Voilà: informação sensorial, idealmente a informação certa, a caminho do cérebro.
Numa situação de funcionamento correcto, tudo isto deve acontecer instantaneamente, do ponto de vista do cérebro, como os sinais neurológicos com que nascemos. Mas não existem dois organismos exactamente iguais e, para todos os participantes voluntários (até à data, cerca de duas dezenas, em hospitais de investigação nos EUA e na Europa), o processo exige paciência: uma cirurgia séria seguida por muitas horas em laboratórios de investigação respondendo a perguntas com o paciente ligado a um computador. “De onde lhe parece vir essa sensação?” “E agora?” Mesmo assim, Brendan e outros participantes contaram-me que se inscreveram sobretudo pela possibilidade de ajudar os cientistas a descobrir como o processo vai decorrer.
“Só pretendia saber se era capaz de ajudar os outros”, disse Keven Walgamott, um agente imobiliário que perdeu partes do braço e pé direitos há duas décadas, depois de um cabo eléctrico o ter electrocutado enquanto ele levantava a bomba de um poço ao lado de casa. Desde 2016, Walgamott passou mais de um ano enquanto voluntário de investigação na Universidade de Utah, onde lhe foram implantados temporariamente eléctrodos, incluindo alguns desenvolvidos pelos cientistas da própria universidade.
No interior do laboratório, ligado a um computador, Keven colocava uma das novas próteses com sensores. Esta chama-se LUKE, acrónimo de Life Under Kinetic Evolution, mas também em homenagem a Luke Skywalker, o jedi da saga “Guerra das Estrelas” que perde a mão num combate de sabres de luz contra Darth Vader. No final de “O Império Contra-Ataca”, Luke tem uma prótese aparentemente capaz de fazer tudo, incluindo sentir. Se introduzir os termos de pesquisa “Walgamott eggs” ou “Walgamott grapes” num motor de busca, vê-lo-á num laboratório no Utah com o LUKE: concentrado, de rosto sério, a fazer o tipo de tarefas simples quase impossíveis para mãos incapazes de sentir.
Ele levanta um ovo cru com casca com a delicadeza certa e pousa-o suavemente numa tigela. Pega num cacho de uvas com a mão verdadeira, fecha um polegar e um dedo prostéticos em redor de uma única uva e puxa-a sem a esmagar. Vídeos de outros centros de investigação mostram pequenos triunfos semelhantes: na Case Western Reserve, um paciente vendado serve-se dos dedos prostéticos com sensores para segurar e retirar os pés das cerejas; na Suécia, um paciente de Chalmers dentro da sua própria garagem, utiliza ferramentas com a mão verdadeira e com a prostética. Porém, aquilo que muitos voluntários do estudo mais queriam sentir era o toque da pele humana. “Fiquei surpreendido com a quantidade deles que queria simplesmente sentir uma ligação com alguém”, disse Dustin Tyler. “Não era funcional. Pretendiam somente dar a mão à mulher.”
Certa vez, perguntei a Brendan Prestwood, depois de lhe pedir desculpa pela insensibilidade da pergunta, por que motivo era tão importante sentir os dedos de Amy em volta da mão esquerda, que lhe faltava, quando a mão direita dele estava intacta. Não se sentiu ofendido. Disse que era difícil explicar por palavras. Por fim, disse que o gesto fazia-o sentir-se inteiro. “Foi algo que perdi”, disse. “Durante seis anos, não dei a mão à minha mulher com a mão esquerda e agora estou a fazê-lo. “É a emoção que acompanha qualquer tipo de toque. É sentir-me completo.”
Dustin Tyler comoveu-se com este relato profundo e provocante. O que significa sentir a alegria do toque da pessoa amada quando a sensação é semelhante à ponta de uma agulha de costura? Se as circunstâncias certas permitirem que um certo tipo de estímulo no córtex seja registado como o aperto de dedos humanos, o que poderá isso implicar para pessoas separadas pela distância? “Essa reflexão vai muito além das próteses”, disse Dustin.
Isto leva-nos a Veronica Santos e ao seu laboratório em Los Angeles, carregado de robots. “Biomecatrónica” significa essencialmente aquilo a que soa: uma mistura de ciência biológica e mecânica e Veronica Santos é especialista no desenvolvimento de sensores para mãos robóticas. Grande parte do seu trabalho pretende tornar os robots mais úteis em contextos médicos e em locais perigosos para os humanos, como as profundezas do oceano. Há três anos, porém, começou a colaborar com Dustin Tyler.
Imagine o seguinte: um indivíduo em Los Angeles e outro em Cleveland, a 3.000 quilómetros um do outro estão a tentar dar um aperto de mão. Há um robot envolvido e estou prestes a explicar como: Veronica e Dustin decidiram mostrar-me uma das suas experiências mais ousadas. Há décadas que cientistas e escritores de ficção científica imaginam como um ser humano poderá, num local distante, tentar estabelecer algo que pareça contacto físico com outro ser humano ou com um objecto que se encontre noutro sítio. Se já sentiu um telemóvel vibrar, então faz parte desta iniciativa: é um sinal sem fios, vindo de outro local, que activa um sensor minúsculo que activa os mecanorreceptores da sua pele.
O termo de engenharia é “háptica” [táctil], do grego haptikos: relacionado com o sentido do tacto. Qualquer tecnologia concebida para desencadear sensações de toque é táctil, desde os sistemas de restaurante que vibram na sua mão quando o seu pedido fica pronto às luvas de realidade virtual que se utilizam agora, em combinação com óculos de realidade virtual, para que os seus dedos e palmas das mãos sintam algo semelhante a contacto quando as suas mãos virtuais tocam em objectos virtuais.
Pode ver uma parede na sala virtual mostrada pelos seus óculos e levantar a sua mão real. Pode colocar a mão virtual na parede e uma força exercida pelas luvas empurrá-la-á para criar a ilusão de que não pode atravessá-la. Ou os seus dedos virtuais podem tocar num tractor virtual numa quinta virtual e os seus dedos reais sentirão a vibração do motor. Os apaixonados por videojogos são os maiores consumidores destas luvas, que também servem para tornar mais realistas os dispositivos de treino, como os simuladores de voo.
Comparada com essa sinfonia que é o toque humano natural, contudo, a tecnologia ainda tem um longo caminho a percorrer. A metáfora da sinfonia não é minha. Ouvi-a a três cientistas diferentes que tentavam ajudar-me a apreciar a coordenação sinfónica por detrás das sensações que tomamos por garantidas. “Estou a fazer o que posso com estes materiais fabulosamente concebidos e eles continuam a ser a nossa maneira desajeitada de tentar recriar aquilo com que o meu sobrinho nasceu, há nove meses”, disse-me Veronica Santos. “Isso ainda me faz sentir humilde.”
No dia em que fui sentir os dedos dela a oito estados de distância, Veronica vestia uma T-shirt, calças de ganga e uma máscara facial por causa da pandemia. Vi-a de relance, numa imagem tremida, transmitida ao vivo e em 3D, através dos óculos de realidade virtual que dois investigadores da Case Western Reserve colocaram na minha cabeça. Depois, ela afastou-se abruptamente para o lado, desaparecendo de vista, e o que via eu agora? Os mosaicos do chão. A perna de uma mesa, dois pés calçados – os pés de Veronica. Levantei os olhos, com os óculos postos e escutei uma saudação dela.
Ela estava a cumprimentar um robot com rodas o qual, depois de se deslocar desastradamente entre a mobília do laboratório da UCLA, parara finalmente para apontar a sua câmara de vídeo à dela. Utilizando a linguagem dos investigadores, eu estava a “encarnar” aquele robot, vendo através dos seus olhos, ouvindo através do seu microfone e mexendo-me como se estivesse bêbedo devido à incompetência do ser humano que o controlava em Cleveland. Não há nada de extraordinário nisto, em plena era dos drones. A novidade era a minha própria mão direita, que estava a “encarnar” a mão de metal e plástico do robot móvel de Los Angeles. Há dois discos de metal colados à minha palma enluvada e ao meu dedo indicador. Cabos ligavam os discos a um computador do laboratório, conectado através da Internet ao computador, que possui sensores tácteis nos próprios dedos robóticos. Sempre que o robot tocava numa superfície, os sensores transmitiam impulsos ao seu cérebro robótico – o seu computador. Esses impulsos atravessavam o país, desciam pelos cabos do laboratório até aos discos da minha mão, atravessavam a minha pele e depois subiam pelos meus nervos até ao meu córtex somatossensorial.
Um zumbido ténue, dissera Brendan Prestwood. A ponta de uma agulha. São boas alegorias para explicar isto. É uma pressão exercida contra os meus dedos quando eu, ou melhor, quando o robot fechou a minha mão em volta do copo de plástico que se encontrava numa mesa ao lado de Veronica Santos. A experiência foi concebida para reproduzir a ideia de duas pessoas separadas a comemorar um acordo de negócios com um brinde e um aperto de mão. Falhei na parte do brinde: o meu eu robótico deixou o copo cair.
Em contrapartida, o investigador cujo lugar eu assumira temporariamente, um aluno de pós-graduação da Case Western Reserve chamado Luis Mesias, já era muito hábil com o toque à distância. Aprendera a manusear a sua mão enluvada suficientemente bem para pegar no copo em Los Angeles pelo pé e encostá-lo a um segundo copo erguido pelo colega. Sentimos o contacto, em Cleveland. Tchim-tchim.
Encarnando o robot de laboratório de Veronica Santos, Luis já descascou uma banana à distância. Já apertou uma bisnaga de pasta de dentes à distância, com a precisão delicada de alguém que se prepara para lavar os dentes. Podemos imaginar um futuro no qual o toque é transmitido, de maneira tão realista como a visão e o som são actualmente, em todas as áreas sociais: no trabalho, nas viagens, nas compras, nos encontros de família. Como consolo. Na intimidade sexual. Nos cuidados médicos que exijam o toque de um profissional de saúde. Talvez no metaverso, aquele local de encontro virtual ainda não concretizado que saltou da ficção científica para os modelos de negócio empresariais. No fundo, poderá ser aplicado a qualquer actividade a que liguemos os nossos corpos, convencendo os nossos cérebros de que estamos a sentir pessoas virtuais, animais virtuais ou objectos virtuais.
Se eu não estivesse a olhar mesmo para a cara de Veronica Santos quando ela veio apertar-me a mão ou se eu não tivesse já apertado a mão verdadeira real e caminhado a seu lado em Los Angeles, aprendendo o timbre da sua voz, a sensação súbita de zumbido na minha pele não se pareceria minimamente com o aperto proporcionado por dedos humanos. Mesmo assim, foi de cortar a respiração. Eu conseguia ver a cara dela, enquanto ela pôs a mão desnuda sobre a do robot e, durante muito tempo, pensei em Brandon e Amy Prestwood e na firmeza dos braços da minha filha através daquela barreira de plástico. Pensei como a mente consegue fundir a história e o cenário com os impulsos que percorrem os nervos humanos.
Há dois anos, nas primeiras semanas do confinamento pandémico, um pastor falou-me sobre as suas primeiras missas de domingo através do Zoom. Contou que os seus paroquianos sentiram sobretudo falta da saudação da paz – o murmúrio de “paz de Cristo” e o aperto rápido de mãos entre cada fiel. Naquele momento, nenhum de nós se lembrou de pensar na biologia daquele toque, na deformação de dois segundos das células da pele que fazem os seres humanos sentirem-se ligados uns aos outros e ao seu deus. Os diagramas neuronais que estão agora afixados nas paredes do meu gabinete incluem muitas etiquetas com explicações. Por isso, quando perguntei a Dustin Tyler quanto disto poderá eventualmente ser reproduzido pela bioengenharia, ele corrigiu-me antes de eu acabar a pergunta. “A ideia de reprodução é perigosa”, disse. “Temos particular cuidado com isso. Não temos a fiabilidade necessária para replicar o esquema natural. O termo geral que utilizamos é ‘restaurar’.”
Vi Brandon Prestwood falar perante muitos cientistas. Ele ainda fica nervoso nesses momentos, mas aprendeu simplesmente a contar-lhes aquilo que lhe aconteceu e vê-os endireitarem-se na cadeira quando chega à parte em que relata a maneira como sentiu a mão de Amy.
“Num dos discursos que fiz, falei sobre o soldado que esteve destacado no Afeganistão durante um ano”, contou-me numa das últimas vezes em que falámos. Era um soldado hipotético e Brendan estava a improvisar, imaginando até onde poderia a experiência ir. “Antes de sair em comissão de serviço, a mulher engravidou. Ele nunca vira a filha, mas pode fazê-lo, estendendo a mão e, de certo modo, tocar-lhe através deste sistema. Ou o homem de negócios que não vai a casa há seis meses. Ou a fotógrafa da National Geographic que estava em viagem na Costa de Marfim.”
Ele referia-se a Lynn Johnson, autora das imagens desta reportagem e que passou tempo com os Prestwood na sua casa de Hickory, na Carolina do Norte. Ela mencionou um trabalho futuro em África e Brendan imaginara Lynn no futuro, com a sua bagagem contendo alguma versão de venda livre dos eléctrodos estimuladores de nervos e sensores tácteis, com um dispositivo semelhante em casa do pai, no estado do Arizona. “Só para conseguir dar e receber um toque reconfortante”, disse.
A National Geographic Society, empenhada em dar a conhecer e proteger as maravilhas do nosso mundo, financia as reportagens da exploradora Lynn Johnson sobre a condição humana desde 2014. Ilustração de Joe Mckendry.