Sanguessugas médicas num laboratório de criação de sungas medicinais em Biebertal, Alemanha. Fotografia De Tim Wegner, LAIF/REDUX
Há muito menosprezadas como um retrocesso à Idade Média, os médicos têm utilizado os parasitas para ajudarem pacientes de transplantes e de cirurgia plástica.
Texto: Pypriyanka Runwal
Um tipo raro de cancro chamado sarcoma sinovial atacou Ellie Lofgreen no Hospital da Universidade de Utah, no Verão passado. Os cirurgiões removeram o tumor, do tamanho de uma pequena meloa, que se encontrava em volta da articulação do seu joelho e também cortaram alguns centímetros de osso e músculo ligados ao joelho. Em seguida, inseriram um implante metálico na sua perna e cobriram-na com uma grande prega de músculo e pele transplantada da sua coxa. Algumas horas mais tarde, porém, a prega começou a ficar roxa – um sinal, sabiam os médicos, de que o tecido transplantado estava a morrer.
Era fundamental salvar o enxerto, por isso a equipa médica propôs um tratamento que surpreendeu Lofgreen: sanguessugas.
“Fiquei completamente abismada”, disse a residente do estado de Idaho, de 31 anos. “A minha primeira reacção foi ‘OK, tudo menos isso’”.
Além do factor repulsa, o uso de sanguessugas na medicina moderna surpreende frequentemente os pacientes, uma vez que estes parasitas sugadores de sangue foram há muito desvalorizados como charlatanismo. No entanto, o seu uso na cirurgia plástica e reconstrutiva tem vindo a crescer desde 2004, quando a FDA, dos E.U.A., aprovou as sanguessugas como solução médica para aliviar a congestão venosa e restaurar o fluxo sanguíneo em excertos comprometidos.
Sanguessugas médicas mediterrânicas Hirudo verbana alimentam-se de um chouriço de sangue no Royal Ontario Museums Invertebrate Zoology Lab, no âmbito de uma exposição, a 29 de Outubro de 2019. Fotografia de Steve Russel, Toronto Star/Getty Images.
Quando os médicos ligam um pedaço de tecido a outra parte do corpo, ligam também os vasos sanguíneos do enxerto aos do tecido em redor, de modo a manter o fornecimento sanguíneo. Estas cirurgias são frequentemente bem-sucedidas, mas quando as coisas não correm como planeado, o primeiro passo é levar o paciente de volta para a sala de operações, reexaminar os pontos e voltar a ligar os vasos sanguíneos. No entanto, embora seja raro, essa solução também pode falhar.
“As veias são tão frágeis”, diz Jayan Agarwal, chefe de cirurgia plástica da Universidade de Utah. Mesmo havendo ligação, por exemplo, o fluxo sanguíneo pode ser restringido se uma terminação venosa tiver ficado danificada num acidente. Outras vezes, encontrar uma veia num dedo cortado, por exemplo, pode ser um desafio. Sem essa ligação, o sangue pode acumular-se no tecido transplantado – e é aí que às sanguessugas entram em acção.
Elas fornecem um suporte de vida temporário, diz Jeffrey Janis, especialista em cirurgia plástica do Centro Médico Wexner da Universidade Estadual do Ohio, até que os próprios vasos sanguíneos do organismo cresçam no pedaço de tecido transplantado. Sem essa ajuda, o tecido pode morrer, afirma.
De onde vêm as sanguessugas médicas
Embora existam mais de 600 espécies de sanguessugas, incluindo algumas que não sugam sangue, a europeia Hirudo medicinalis e a mediterrânica Hirudo verbana são as mais frequentemente utilizadas pela medicina. Têm três mandíbulas semelhantes a serras, cada uma com cerca de cem dentes, que são utilizados pelos animais para perfurar a pele.
Sanguessugas contorcem-se dentro de frascos de vidro no International Medical Leech Centre, em Udelnaya, na Rússia. Fotografia De Natalia Kolesnikova, AFP/Getty Images.
Há décadas que laboratórios de vários países, incluindo o Reino Unido, os Estados Unidos da América, França, Turquia e Ucrânia, fazem criação destas sanguessugas médicas. Carl Peters-Bond, da Biopharm UK, uma empresa que fornece cerca de metade das sanguessugas médicas utilizadas em hospitais de todo mundo, cria-as há quase 30 anos. Uma sanguessuga pronta para uso médico demora entre um ano e dois a ser criada, diz. O processo envolve alimentá-las às três semanas, entre as oito e as dez semanas e depois entre os quatro e os cinco meses. Depois, são deixadas a passar fome durante até dois anos. “Só fornecemos sanguessugas com o estômago vazio”, afirma.
Assim que recebe um telefonema com um pedido de urgência, Peters-Bond embala entre uma dúzia e 60 sanguessugas num frasco cheio de gel e envia-as para o hospital. Por vezes, as farmácias hospitalares fazem encomendas prévias e abastecem-se de sanguessugas médicas, guardando-as no frigorífico para quando pacientes com um dedo cortado, a precisar de coser uma orelha ou de uma cirurgia de reconstrução mamária possam precisar delas. No entanto, estas criaturas devem ser utilizadas num prazo de três meses, diz Peters-Bond.
Quando usar a terapia de sanguessugas
Quando morde, a sanguessuga suga lentamente o sangue e injecta compostos como hirudina e calina, presentes na sua saliva, que impedem o sangue de coagular. A saliva livro das sanguessugas também contém substâncias semelhantes a histamina que dilatam os vasos sanguíneos e melhoram a circulação. Os médicos também usam anticoagulantes como a heparina para prevenir a formação de coágulos sanguíneos durante as cirurgias reconstrutivas.
Dependendo do tamanho do enxerto e do grau de congestão, a aplicação das sanguessugas pode durar entre três a dez ou mais dias, até o tecido parecer “menos inchado, menos roxo, mais normal”, diz Janis. Os pacientes permanecem no hospital enquanto o pessoal médico supervisiona o processo, substituindo cada sanguessuga ingurgitada por uma nova, esfomeada. Cada criatura só pode ser usada uma vez, sendo afogada em álcool depois de cumprir a sua finalidade.
Ao longo de duas semanas, Lofgreen teve mais de cem sanguessugas a drenarem o seu tecido de aspecto lúgubre. Com ajuda dos enfermeiros e sugestões recebidas através do Facebook, a sua família baptizou cada um dos invertebrados. Alguns dos preferidos de Lofgreen eram Aleecha Keys, Clint Leechwood, Sir Leech-a-lot e Queen Laleecha. A cada quatro horas, um enfermeiro entrava e colocava uma nova sanguessuga, que sugaria o sangue entre 15 a 120 minutos, antes de se soltar e cair sobre cama. Durante a terapia, os médicos deram-lhe transfusões sanguíneas para substituir o sangue perdido.
No entanto, fazer com que as sanguessugas se fixassem foi, por vezes, difícil. E assegurar que se mantinham no sítio foi ainda mais difícil. Inicialmente, os enfermeiros usavam um copo de plástico de 12 cl, virado ao contrário e colavam-no à pele de Lofgren para conter a sanguessuga. No entanto, a criatura escapava frequentemente. Então, o pessoal médico criou uma barreira utilizando um pedaço de gaze com um buraco no local onde queriam que assim que a sanguessuga se fixasse. Esperavam que a gaze a desencorajasse de se afastar para a pele em redor, mas isso também não se revelou à prova de falhas. O que acabou por funcionar melhor foram os olhos atentos da sua mãe e da sua irmã. Ao longo do dia, elas revezavam se em busca de sanguessugas fugidias e alertavam imediatamente os enfermeiros. Lofgreen não sentia nada quando estes parasitas mordiam tecido transplantado, mas sentia uma picada aguda quando a mordiam noutros sítios. “Pareciam agulhas e alfinetes”, diz.
Uma trabalhadora mexe em sanguessugas para terapias médicas e veterinárias num laboratório em Biebertal, na Alemanha. Fotografia de Tim Wegner, Laif/Redux.
Com o passar do tempo, a parte do tecido que parecia inicialmente escura e necrótica foi-se tornando roxa clara e a pele ficou com um aspecto mais normal. “Tivemos algum sucesso com as sanguessugas”, diz Lofgreen. Depois de regressar a casa, uma pequena secção da prega ficou infectada e teve de ser removida. A infecção não estava relacionada com o uso de sanguessugas, tendo sido causada por uma ferida aberta. Porém, ela diz que foram as criaturas viscosas e deslizantes que salvaram a maioria da prega transplantada.
Um estudo que analisou 277 casos de uso de sanguessugas médicas relatou uma taxa de sucesso de 78 por cento. “É uma opção muito atractiva para salvar pregas”, diz Ernest Azzopardi, especialista em cirurgia plástica da University College London, em Inglaterra, e co-autor do estudo. No entanto, a falta de testes de controlo aleatórios fiáveis – o referencial para avaliar a eficácia de uma intervenção – tem feito com que a terapia com sanguessugas não mereça muita confiança.
Outra desvantagem é os pacientes poderem desenvolver infecções dermatológicas como reacção a tais tratamentos devido à bactéria Aeromonas, que vive no intestino das sanguessugas e está presente na sua saliva. Criadores de sanguessugas como Peters-Bond não usam antibióticos. Embora a medicação posso eliminar estas bactérias do intestino, elas voltam, afirma. “Aquilo que podemos fazer é pôr as sanguessugas em estado de privação de alimento para que não haja sangue no intestino e as bactérias estejam nos níveis mínimos”. Nos hospitais, os médicos prescrevem tipicamente antibióticos aos pacientes como medida preventiva, mas começam a surgir evidências de que algumas bactérias Aeromonas estão a desenvolver resistência a medicação frequentemente utilizada, dificultando o recurso a esta terapia.
Sanguessugas robóticas
Há anos que os cientistas procuram alternativas ao uso de sanguessugas. As primeiras tentativas remontam ao século XIX, quando as sanguessugas eram altamente procuradas na Europa e estes invertebrados estavam a tornar-se escassos e, consequentemente, mais caros. Em 1818, Jean-Baptiste Sarlandière, anatomista e médico francês desenvolveu um dispositivo chamado bdellomètre, que sugava o sangue dos pacientes.
Agarwal, por exemplo, trabalha com colegas da Universidade de Utah desde 2013 para desenvolver uma sanguessuga mecânica capaz de administrar um anticoagulante, mas também de imitar a sucção das sanguessugas. O protótipo consiste de um conjunto de agulhas que perfuram a pele, com uma agulha central que fornece heparina anticoagulante ao tecido saturado de sangue; as agulhas em redor estão ligadas a uma bomba para sugar o sangue. Este dispositivo do tamanho de uma almofada de carimbo permitiria aos médicos controlar o volume e a velocidade do sangue sugado, algo que não é possível quando se usam sanguessugas de verdade. Por enquanto, a equipa está a tentar aperfeiçoar o fluxo de anticoagulante injectado no tecido no qual o dispositivo é colocado.
Outros cientistas desenvolveram protótipos semelhantes e igualmente promissores. Alguns testaram o seu desempenho em animais. No entanto, no que diz respeito a um substituto mecânico pronto para uso em humanos, “ainda não chegámos lá”, diz Azzopardi. Por ora, estes parasitas sugadores de sangue continuam a ocupar um lugar de nicho, mas importante, na medicina moderna.