Texto de Andy Isaacson Fotografias de Nick Cobbing









O gelo marinho que reveste o oceano Árctico não é o manto branco ininterrupto mostrado nos mapas. É um quebra-cabeças de plataformas irrequietas que colidem constantemente entre si e se deformam e fracturam devido à força do vento e das correntes oceânicas.
Em Fevereiro de 2015, de pé no convés do Lance, observei o velho navio de investigação norueguês enquanto este abria caminho por um labirinto de fracturas navegáveis. Uma planície branca e estéril de gelo e neve estendia-se até ao horizonte em todas as direcções. O casco de aço do navio navegava sobre pedaços irregulares de gelo flutuante. O Lance procurava um pedaço de gelo compacto para se fixar e assim poder retomar a sua deambulação errática pelo mar congelado na missão de cartografia do gelo marinho árctico.
O Árctico aqueceu em média 3ºC no último século, mais do dobro da média global. A superfície do oceano coberta de gelo é muito menor e muito desse gelo é gelo sazonal mais fino e não plataformas antigas e espessas. Instalou-se um ciclo vicioso com consequências de grande alcance: à medida que o gelo branco é substituído por águas oceânicas mais escuras, que absorvem mais luz solar durante o Verão, a água e o ar aquecem ainda mais, intensificando o processo de degelo em curso.
O Árctico aqueceu em média 3ºC no último século, mais do dobro da média global.
“O Árctico aquece mais cedo, mais e mais depressa”, diz Kim Holmén, director internacional do Instituto Polar da Noruega (NPI), responsável pelas operações do Lance. Os modelos climáticos prevêem que seja possível navegar em águas abertas até ao Pólo Norte durante o Verão já em 2040.
O gelo marinho árctico ajuda a arrefecer o planeta, reflectindo a luz solar de volta para o espaço. Por conseguinte, é inevitável que a sua perda afecte o clima a curto e longo prazo, de maneira ainda não determinada, para além do Árctico. A elaboração de modelos mais completos exige dados mais robustos sobre o gelo e a sua distribuição irregular. “A maioria dos cruzeiros científicos no Árctico realiza-se no Verão, o que significa que os dados recolhidos no campo referem-se apenas a essa estação”, explica Gunnar Spreen, físico especializado em gelo marinho do NPI.
“As alterações contínuas que acontecem na transição do Inverno para a Primavera são uma lacuna no nosso conhecimento.”
Durante a missão de cinco meses do Lance, a sua tripulação rotativa de cientistas internacionais procura investigar as causas e efeitos da perda de gelo, monitorizando-a ao longo de todo o seu ciclo de vida sazonal, desde a sua formação no Inverno até ao degelo no Verão.
Provavelmente nenhuma região foi mais afectada pelas alterações climáticas do que o Árctico.
Alguns dias depois de o fotógrafo Nick Cobbing e eu sermos transportados até ao navio por um quebra-gelo e, antes disso, por um helicóptero a partir da cidade de Longyearbyen, na ilha de Spitsbergen, do arquipélago de Svalbard (base das operações no Árctico da NPI), o Lance navegou até à latitude de 83º Norte, imediatamente a oeste de território russo. Os cientistas escolheram como modelo uma plataforma de gelo com meio quilómetro de largura de gelo predominantemente sazonal. A tripulação fixou o navio à plataforma através de cabos ligados a grossos postes metálicos cravados no gelo. O motor principal foi desligado. Isolados e rodeados de uma escuridão quase total, demos início à difícil viagem de um mês à deriva no deserto de gelo. Os cientistas montaram acampamento na plataforma. Físicos como Gunnar Spreen cartografaram a topografia do gelo com laser e registaram a espessura e temperatura da neve sobre ele. Oceanógrafos recolheram dados sobre a água e as correntes. Meteorologistas registaram dados e mediram gases com efeito de estufa. Biólogos procuraram algas no gelo. Poucas semanas mais tarde, quando o sol já ameaçava o manto de noite polar, os cientistas assistiram ao despertar do ecossistema.
As temperaturas desciam regularmente até -30ºC. Os dedos ficavam dormentes, os cabos partiam-se e os instrumentos electrónicos avariavam. Em terra, os ursos errantes farejavam-nos.
Em 2007, o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas da ONU (IPCC) avisou que ao longo do século em curso as repercussões das alterações climáticas no Árctico “irão exceder as repercussões previstas para muitas outras regiões, gerando um ciclo com consequências significativas a nível global”. Volvida quase uma década, esta previsão sombria já se concretizou. Provavelmente nenhuma região foi mais afectada pelas alterações climáticas do que o Árctico.
O solo permanentemente gelado está a derreter e a vegetação começa a romper. As árvores avançam para norte e os arbustos e ervas invadem a tundra. Algumas populações de ursos-polares, morsas e renas sofreram declínios significativos.
Desde 1979, data de início dos registos de satélite, o Árctico perdeu mais de metade do seu volume de gelo e a diminuição expressa-se em área e espessura. A zona congelada encolhe até ao seu mínimo actual em Setembro, no final do Verão. Em Setembro de 2012, a sua extensão era apenas metade da média registada nas décadas de 1980 e 1990. A extensão máxima do gelo durante o Inverno, geralmente atingida em Março, também está a diminuir, embora a ritmo mais lento. Antigamente, muitas plataformas tinham três ou quatro metros de espessura e mantinham o gelo perene durante anos; agora, acumulam gelo mais fino e menos reflectivo que se forma e derrete num único ano. A cobertura de gelo marinho sempre teve flutuações naturais, mas restam poucas dúvidas de que os gases com efeito de estufa estão actualmente a acelerar o seu declínio.
É provável, por exemplo, que as orcas substituam os ursos-polares no topo da cadeia predatória, à medida que os ursos se retiram para refúgios menores de gelo marinho estival.
É um ecossistema que está a derreter. A perda de gelo marinho poderá afectar alguns dos organismos fotossintéticos que contribuem para a cadeia alimentar marinha, como as algas unicelulares que vivem sob o gelo e crescem na Primavera mal a luz regressa. As alterações na magnitude e na data de ocorrência deste crescimento, à medida que o gelo recua mais depressa e mais cedo, poderão perturbar o ciclo de vida de formas de zooplâncton minúsculas, os copépodes, que ingerem as algas e constituem, por sua vez, alimento para bacalhaus do Árctico, aves marinhas e baleias-da-gronelândia. Para mamíferos marinhos como o urso-polar, a morsa-do-pacífico ou a foca-anelada, a perda de centenas de milhares de quilómetros quadrados de gelo marinho já é devastadora.
Parte-se do princípio de que estes animais perderão toda a vantagem competitiva se não dispuserem de um local seguro para viver. É provável, por exemplo, que as orcas substituam os ursos-polares no topo da cadeia predatória, à medida que os ursos se retiram para refúgios menores de gelo marinho estival. Embora os ursos consigam sobreviver em terra firme, situação que tem resultado na sua hibridização com ursos-pardos, Ian Stirling, da Universidade de Alberta, desvaloriza como “ilusória” qualquer ideia de serem capazes de sobreviver em terra a longo prazo. É provável que condições sem gelo atraiam outros concorrentes vindos de águas mais temperadas.
GELO DE INVERNO, MAIS JOVEM E FINO: mapas do Árctico em Março e gráficos representando a última Idade do Gelo mostram um declínio de 75% no gelo mais velho e espesso, gelo esse que sobreviveu pelo menos quatro verões. Actualmente, a maior parte do gelo marinho congela e derrete em menos de um ano.
A perda de gelo também está a tornar o Árctico mais vulnerável à acidificação do oceano, outro efeito do aumento de dióxido de carbono na atmosfera. A água fria absorve mais CO₂ do que a água temperada e agora há mais água fria exposta a céu aberto. À medida que a água acidifica, perde carbonato. Nos próximos 15 anos, poderá já não conter quantidade suficiente para animais como os búzios e o caranguejo-rei construírem e manterem as suas conchas de carbonato de cálcio. Ian Stirling resume com dureza o desfecho de todas estas circunstâncias: “O ecossistema marinho do Árctico, tal como o conhecemos, deixará de existir.”
Prevê-se que o aquecimento da atmosfera sobre a bacia oceânica tenha repercussões sobre as costas adjacentes da Rússia, do Alasca e do Canadá, causando efeitos de retroalimentação com um alcance máximo que pode chegar 1.400 quilómetros até ao interior, incluindo o degelo acelerado da plataforma da Gronelândia e grandes emissões de dióxido de carbono e metano da tundra em degelo. Modelos do IPCC prevêem que a perda total de gelo marinho estival possa, isoladamente, causar um terço do aquecimento no hemisfério norte e 14% do aquecimento global total até ao fim do século.
A maneira como o Árctico em rápido aquecimento influenciará o clima a curto prazo no hemisfério é um pouco mais obscura. Os cientistas Jennifer Francis, da Universidade Rutgers, e Steve Vavrus, da Universidade de Wisconsin, sugeriram que os habitantes da região continental dos Estados Unidos poderão já estar a sentir os efeitos do degelo do gelo marinho árctico. Nos últimos dois invernos na Costa Leste, as palavras “vórtice polar” tornaram-se comuns.
À ESQUERDA, EFEITO DE ALBEDO: o gelo e a neve reflectem cerca de 85% da radiação solar. O mar aberto é escuro e absorve 93%. À medida que aquece, a água derrete mais gelo, um ciclo cujos efeitos se estendem para além do Árctico. À DIREITA: a temperatura das águas de superfície no Árctico está a aumentar. A água mais quente dificulta a formação e a sobrevivência do gelo marinho. A água congela a cerca de -2ºC.
O vórtice polar é a massa de ar frio que se encontra confinada ao pólo pela corrente de jacto polar, uma corrente de ar de grande altitude e deslocação rápida que serpenteia em redor do pólo, no sentido oeste-leste. A corrente de jacto atrai a maior parte da sua energia do contraste de temperatura e pressão entre o ar gelado a norte e o ar mais quente a sul. Segundo a hipótese de Jennifer Francis, à medida que a perda de gelo marinho intensifica o aquecimento do Árctico, o contraste é reduzido, enfraquecendo os ventos ocidentais da corrente de jacto. A corrente torna-se um rio mais lento e sinuoso, com meandros largos que se estendem para sul e para norte. Como os meandros avançam lentamente pelo mapa, as condições climáticas decorrentes persistem durante muito tempo. Nos dois últimos invernos, o padrão ondulante permitiu que a atmosfera árctica e a neve extrema assediassem o estado de Nova Inglaterra e que a seca se prolongasse na Califórnia. O degelo do Árctico também poderá afectar as condições climáticas noutros locais. Investigadores coreanos associaram invernos extremos na Ásia a alterações na circulação do ar provocadas pela perda de gelo no mar de Barents-Kara.
Mesmo que sejam adoptados limites rigorosos para as emissões de gases com efeito de estufa nos próximos 20 anos, o declínio do gelo marinho prosseguirá durante décadas.
Diversos investigadores que estudam as dinâmicas atmosféricas não subscrevem esta hipótese, argumentando que uma explicação plausível para a corrente de jacto mais ondulada e as incursões do vórtice polar rumo a sul é a influência do Pacífico tropical, uma fonte de calor mais poderosa do que o Árctico. Serão necessários anos de recolha de dados para resolver o debate.
Em qualquer dos casos, à medida que o aquecimento do planeta avança, as vagas de frio tornam--se menos comuns. Mesmo que sejam adoptados limites rigorosos para as emissões de gases com efeito de estufa nos próximos 20 anos, o declínio do gelo marinho prosseguirá durante décadas. Um aumento adicional de 4ºC no Árctico está praticamente assegurado até meados do século.
No fim de Junho, os cientistas a bordo do Lance acordaram e descobriram que a última plataforma de gelo a que se tinham fixado também estava a desintegrar-se. Apressaram-se a salvar o equipamento antes que este desaparecesse.
O navio passara 111 dias no gelo, preso a várias plataformas durante semanas, percorrendo cerca de quatro mil milhas náuticas no Árctico. Cruzara-se com ursos-polares que, por vezes, paravam para brincar com os instrumentos electrónicos dos cientistas. Tempestades arremessaram enormes blocos de gelo contra o navio, elevando-o acima da superfície. Nos dois ou três anos seguintes, os 68 cientistas voltaram aos laboratórios, esforçando-se por ordenar os dados entretanto reunidos.
Numa manhã de Março, juntei-me a Gunnar Spreen e outra investigadora do NPI, Anja Rösel, numa incursão para medir alterações na espessura da plataforma de gelo. Vestíamos roupa com isolamento. Os cientistas trouxeram uma sonda de neve, um dispositivo GPS e um trenó de plástico para transportar o instrumento medidor da espessura da neve. Eu transportava uma pistola de sinais luminosos e uma espingarda para dissuadir eventuais ursos. Depois de uma caminhada de um quilómetro, atravessámos montes de neve semelhantes a dunas e cumeeiras de pressão, lajes de gelo empurradas para cima pela colisão das plataformas. A cada metro, Gunnar parava e mergulhava o medidor de profundidade na neve até este apitar, indicando a conclusão da medição.
O aquecimento do Árctico parecia um conceito abstracto naquele dia, pois nem conseguíamos sentir os dedos dos pés. Gunnar, porém, via evidências da mudança em toda a paisagem gelada. “É uma quantidade invulgar de neve”, comentou. Havia meio metro de neve por baixo das nossas botas especiais, o dobro da quantidade de um ano normal. Um dado solitário não define uma tendência, mas este coincidia com as previsões dos modelos: à medida que o gelo encolhe, o calor adicional e o vapor de água libertado da água exposta na camada inferior da atmosfera deverão gerar mais precipitação.
A queda de mais neve num glaciar em terra deveria ser positiva, uma vez que é assim que os glaciares crescem, acumulando camadas de neve tão espessas que tudo o que está por baixo é comprimido. Contudo, o gelo marinho forma-se quando o ar frio congela a água do mar e a queda de neve sobre a água funciona como um manto isolante que abranda o crescimento do gelo. Surpreendentemente, duas semanas após o meu passeio com Gunnar, o Centro Nacional de Neve e Gelo anunciou que o gelo marinho do Árctico já atingira a sua extensão máxima desse Inverno no mês de Fevereiro, muito mais cedo que habitualmente. Foi o máximo mais baixo que os satélites registaram até hoje.
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