Taça Romana

Fotografia de Alexandre Vaz.

Texto: Gonçalo Pereira Rosa

Uma peça romana que passou por mãos reais foi dada como perdida durante mais de um século. Um esforço conjunto reencontrou-a.

Nas suas novelas, Sir Arthur Conan Doyle punha em prática o célebre axioma da navalha de Occam: a explicação mais simples para um problema é normalmente a correcta. Há cerca de dois anos, Maria Teresa Caetano, investigadora do Instituto de História da Arte da Universidade de Lisboa, foi desafiada a escrever um artigo para a revista «Al Madan» sobre o contributo do rei Dom Fernando II (1816-1885) para a arqueologia portuguesa.

Em 1850, o rei aceitara o repto de um grupo de entusiastas setubalenses e ajudara a financiar, juntamente com o primeiro duque de Palmela, a Sociedade Archeologica Lusitana (SAL), uma associação de benemerência cívica constituída por comerciantes, proprietários e funcionários de Setúbal que se propunha realizar desaterros em Tróia, pondo as ruínas à vista, na expectativa de fazer do local a Pompeia portuguesa.

Tróia tinha então grande simbolismo. O próprio duque de Palmela, italiano de nascença, assistira às escavações de Herculano e Pompeia, em Itália. «Acreditava-se que Tróia poderia ser a Cetóbriga mencionada no Itinerário Antonino e que as suas ruínas romanas poderiam aspirar à grandeza das de Pompeia», contou a historiadora.

Taça Romana

Taça ou pátera. Num interessante documento descoberto por Hugo Xavier e redigido por Dom Fernando em 1866, o rei inclui a taça (chamando-lhe pátera e vaso) entre os objectos de ouro e prata da sua colecção e descreve-a: " Antigo vaso romano de sacrificio, em relevo aonde ainda se veem em parte vestigios de douradura. O relevo representa varios animaes, peixes etc. etc. Este vaso é rarissimo e precioso. Foi achado em Setubal já ha muitos annos e passando por muitas mãos veio finalmente às minhas. Tinha antigamente uma pega, qual pega se acha até hoje no museu de Evora. –propr. minha." Num inventário posterior, em 1885, a taça já era descrita como "Uma taça de bronze trabalho bisantino" e, no inventário promovido por Dom Carlos em 1892, já a informação se perdera: "Uma tigela de metal, antiga, com ornamentação em relevo". Também por isso a sua memória se esfumou. Fotografia de Alexandre Vaz.

Em 1814, o colapso de uma falésia pusera a descoberto um cofre de chumbo em Tróia. No interior, entre outras peças, encontrou-se uma bela taça ornamentada. A história remete-nos para o imaginário sherlockiano. O artefacto foi certamente vendido pelo achador ao governador de Setúbal. À morte deste, deverá ter sido adquirido pelo duque de Palmela aos herdeiros e, em 1850, figurou com proeminência nos «Anaes» da nova sociedade científica. Com espírito coleccionista, Dom Fernando II acompanhou as peripécias. Foram mandados fazer moldes de gesso para pedir opiniões à comunidade académica europeia. O prestigiado arqueólogo eslovaco Shimko, amigo pessoal do rei, foi consultado. «Não custa especular que o duque terá então oferecido a taça ao rei, que se mostrara tão interessado pelo objecto», sugeriu Maria de Jesus Monge, directora do Museu-Biblioteca da Casa de Bragança, conservadora de muito do espólio museológico e documental da última dinastia real portuguesa.

Taça Romana

Desenhada magistralmente para um volume dos “Anaes” da Sociedade Arqueológica Lusitana em 1850, a taça foi reconhecida como um artefacto de grande significado histórico. Os desenhos, aliás, testemunham (à esquerda e em cima) que a degradação do objecto foi produzida nos últimos 150 anos. Desenhos: “Anaes da Sociedade Arqueológica Lusitana”, composição de duas imagens, desenhos do Padre Gama Xaro.

Já na posse de Dom Fernando, foram encomendadas peritagens (algumas das quais descuidadas). Em 1865, um fotógrafo do South Kensington Museum, num périplo pelas melhores colecções da Península, fotografou o artefacto – como o comprova uma imagem descoberta pelo investigador Hugo Xavier nas colecções do Museu Victoria e Albert. Hugo Xavier, conservador do Palácio Nacional da Pena, está a realizar o levantamento das colecções artísticas do rei e encontrou documentação de Dom Fernando referindo-se ao objecto como «raríssimo e precioso». «Não há dúvida de que Dom Fernando sabia bem o que ali tinha, mas o mesmo não se pode dizer dos autores dos arrolamentos posteriores dos bens reais», continuou Maria de Jesus Monge.

A partir deste ponto, o conhecimento disponível esbarrava num beco sem saída. A peça pura e simplesmente não se encontrava nas colecções conhecidas. Temia-se que pudesse ter sido dispersada para o estrangeiro ou desviada para uma colecção particular. À data da Implantação da República, em 1910, o acervo sobrevivente dos últimos reis da Casa da Bragança foi arrolado com displicência. Na descrição sumária do artefacto, foi então registado que se tratava de uma peça antiga, ornamentada, mas com defeito. O rasto da taça esfumava-se aí.

«Tornou-se uma peça arrumada na prateleira, tão esquecida como o inventário dos bens da família real», disse ontem Maria de Jesus Monge à plateia.

Rei

Auto-representação de Dom Fernando II como negociante de antiguidades, desenho a grafite e tinta sobre papel, assinado e datado. Imagem de PSML/João Krull.

Maria Teresa Caetano acreditava que a solução mais simples poderia passar por um erro de catalogação. Não se sabia o destino da peça desde que ela estivera nas mãos da Casa de Palmela e os descendentes contemporâneos ignoravam por completo as desventuras do artefacto. «Fiz um cálculo razoável: imaginei que o duque, conhecedor do gosto clássico de Dom Fernando, poderia ter tido a amabilidade de oferecer a taça ao amigo», disse. A Fundação da Casa de Bragança foi contactada em busca de mais informação sobre a Sociedade Arqueológica Lusitana. Poderia a taça permanecer nas reservas da Fundação da Casa de Bragança?

A arquivista Marta Páscoa localizou no Arquivo Histórico da Casa de Bragança documentação comprovativa do envolvimento de Dom Fernando como mecenas da Sociedade Archeologica Lusitana, mas da peça parecia não haver rasto. Teresa Caetano encontrou os magníficos desenhos de 1850, que representam a peça votiva no seu máximo esplendor, e publicou-os na «Al Madan». «Quando vi as imagens que acompanhavam esse texto, fez-se um clic na minha mente», disse Maria de Jesus Monge. «Já tinha visto aquelas figurações.»

Nas reservas do Museu de Vila Viçosa, encontrava-se uma velha taça. A descrição do inventário referia apenas «uma tigela de metal antiga, com ornamentação em relevo. Com defeito.» Perdera-se a referência a Tróia ou ao percurso atribulado do objecto. «Pensei primeiro que seria uma cópia», reconheceu ontem Maria de Jesus Monge. «Percebemos que remontava às colecções reais porque ainda tinha (e tem) apostos os selos do Arrolamento Judicial do Paço das Necessidades de 1910, mas a informação de contexto era inexistente.»

Taça Romana

Arquivos de Bragança. Perdida durante mais de um século, a taça de Tróia foi restaurada e recebe agora a justa apreciação pela sua raridade e importância histórica. Na imagem, Maria de Jesus Monge, directora do Museu-Biblioteca da Casa de Bragança, figura decisiva para este desfecho. Fotografia de Alexandre Vaz.

A busca terminara e começava nova etapa. O Museu Nacional de Arqueologia (MNA) aproveitou o Dia do Investigador para juntar todos os fragmentos desta narrativa, convidando especialistas para partilharem o seu quinhão de conhecimento. «Parecia uma sessão encenada durante muito tempo», brincou António Carvalho, o director. «Fiquei agradavelmente surpreendido pelo facto de a ‘estreia’ ter corrido tão bem, quando o ‘elenco’ nunca tinha ensaiado em conjunto. Só o conhecimento profundo do tema por parte dos participantes e uma noção clara das capacidades e do trabalho de cada um deles, permitiu uma boa ‘arrumação’ dos ‘actores’.»

Teresa Caetano partilhou os passos percorridos nos arquivos distritais de Beja e Setúbal em busca das origens da Sociedade Archeologica Lusitana, Maria de Jesus Monge e Marta Páscoa contaram as vicissitudes reveladas pelo arquivo documental de Dom Fernando e Hugo Xavier deu conta da informação recolhida em Sintra e na Ajuda. Outros especialistas nacionais acrescentaram informação de contexto. O arqueólogo Virgílio Hipólito Correia acrescentou informação de contexto: tratar-se-ia de uma representação de xenia, cena de hospitalidade e cortesia. Na figuração, existem duas cestas simétricas rodeadas de alimentos: uma com alimentos marinhos e outra com alimentos da terra e aves. O polvo está trespassado pelo tridente, indício claro de que está morto. As pequenas aves que figuram igualmente na decoração estão presas num arco pelas cabeças, prontas a serem consumidas. Seria certamente uma representação de disponibilidade de alimento e de acolhimento ao visitante.

Após confirmação da autenticidade do artefacto, iniciou-se uma nova fase. O Centro de Ciências e Tecnologias Nucleares do Instituto Superior Técnico promoveu um estudo pormenorizado da taça, recorrendo a microscopia óptica e a espectroscopia de raios X por dispersão em energia (EDXRF). A análise química permitiu concluir que «a taça foi produzida com uma liga de prata com apenas 3% de cobre e uma lâmina de ouro relativamente puro», explicou o investigador Pedro Valério.

A peça foi restaurada no MNA e depois exposta no Castelo de Vila Viçosa, onde está instalada a colecção de arqueologia do Museu-Biblioteca da Casa de Bragança.

O debate no MNA teve ainda o condão de reabrir uma questão há muito antecipada: quantos artefactos relevantes da história da arqueologia residirão nas mesmas circunstâncias, “perdidos” em acervos ou catalogados de forma imprecisa? Como o arquivista de José Saramago lembrava em “Todos os Nomes”, basta uma vogal mudada para baralhar para sempre os meandros de um arquivo.

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Em 2018, Marcelo Rebelo de Sousa, ele próprio antigo Presidente da Fundação Casa de Bragança, saudou «a colaboração e solidariedade registadas pelo clã da arqueologia portuguesa que, chegado o momento de unidade nos momentos cruciais, não se recusa a colaborar».

O Presidente da República registou ainda uma particularidade esquecida deste artefacto há muito procurado pelos historiadores. «Ao contrário de exemplares contemporâneos, agrada-me muito que taça não tenha sido decorada com representações bélicas. É uma manifestação de solidariedade ao estrangeiro, de acolhimento àquele que chega. Melhor lembrança não nos poderia ser dada pela história passada para o tempo presente.»

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