No continente americano, o carnaval e outras celebrações são pretextos para evocação de raízes africanas, indígenas e europeias em cada cultura
17 de Fevereiro de 2023
Texto: Jacqueline Charles Fotografias: Charles Fréger
Os trajes alegóricos são uma forma curiosa de desforra sobre os antigos opressores.
Durante uma viagem ao Haiti há alguns anos, fugi às estradas principais e visitei a cidade portuária de Jacmel, no Sudeste da ilha, onde o Kanaval (a grafia do crioulo haitiano) se comemora uma semana antes do Carnaval Nacional em Port-au-Prince.
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Considerados encarnações dos espíritos, os participantes no Carnaval de Guadalupe tocam tambores chamados boulas antes da Quarta-Feira de Cinzas, em desfiles espontâneos. As metades pintadas destes jovens representam a sua ascendência indígena, por um lado, e a sua ascendência de escravos quilombolas, por outro. Dentro de água, perto de Baie-Mahault, simbolizam os mais de 12 milhões de africanos escravizados e transportados para o continente americano entre os séculos XVI e XIX.
Em Fort James, na ilha de Antigua, as máscaras cor-de-rosa usadas pelas companhias de palhaços durante o Carnaval talvez representem os colonizadores europeus. As indumentárias carnavalescas usadas no continente americano têm raízes nas tradições africanas, europeias e indígenas, mas evoluem constantemente, reagindo à cultura contemporânea.
O Carnaval é aqui celebrado com uma personagem chamada John Bull, símbolo da prosperidade e gula do império britânico. Antes de algumas das Ilhas Virgens terem sido vendidas aos EUA, o fato era feito em fibras naturais como a ráfia, mas agora é elaborado com sacos de plástico desfiados. Outras variantes das representações de John Bull nas Caraíbas são o Red Bull de São Cristóvão e Névis e o Jonkonnu da Jamaica.
O diabo é uma figura decisiva no Carnaval dominicano e a sua representação varia muito. A máscara deste diabo específico, Tifuá, pode ser feita a partir de um crânio de boi, cavalo ou vaca. Os tifuás apropriam-se das ruas de San Juan de la Maguana, assustando as crianças que se portaram mal. No passado, os cânones da tradição católica forçaram muitas tradições indígenas a moldarem-se às crenças dominantes.
O carnaval na República Dominicana pode ter sido comemorado já no século XVI. O "diabo", um rótulo dado pelos governantes católicos romanos para descrever muitos personagens não-cristãos, é a imagem central do carnaval dominicano nas aldeias de todo o país; este retrato foi tirado na província de Elías Piña.
Índios usam trajes cerimoniais para homenagear os nativos americanos que ajudaram os negros a fugir à escravatura. Nas semanas que precedem o Mardi Gras, grupos desfilam por Nova Orleães, com diversos porta-estandartes. Travis Carter transporta o estandarte “krewe”, um bastão decorado com ornamentos, em representação dos Uptown Warriors. Cada fato é fabricado à mão e decorado com contas e penas.
Em Jacmel, realiza-se um dos mais criativos carnavais da região. Segundo o fotógrafo Charles Fréger, alguns participantes optam por soluções minimalistas, utilizando pinturas corporais e materiais facilmente disponíveis. O primeiro Carnaval organizado do Haiti aconteceu em 1927, quando o país estava ocupado pelos EUA. Os participantes mascaram-se para simbolizar as lutas históricas e os conflitos actuais da sociedade haitiana.
Por todo o país, e em Boa Hora, uma pequena vila açucareira do Piauí, o Dia de Reis é celebrado na primeira semana do ano. Este mascarado representa um dos três reis magos que trouxe presentes após o nascimento de Jesus. Participa no reisado, uma tradição na qual grupos de cantores, bailarinos e músicos oferecem serenatas aos habitantes e recebem comida e bebida como retribuição.
Máscaras de carnaval criadas por escravos na Praia do Forte durante o século XVI foram usadas não apenas para fins rituais, mas também para assustar crianças. Hoje, essa tradição é preservada, cada participante faz a sua própria máscara de papel machê e outros materiais.
Habitualmente comemorada em meados de Junho em Chepo, a tradição Corpus Christi - que honra o corpo e o sangue de Jesus Cristo - foi usada pela Igreja Católica nas Américas para converter povos nativos e descendentes de africanos ao cristianismo através do teatro de rua.A história de Chepo inclui o legado de Bayano, um rei cimarron que liderou uma das maiores revoluções de escravos das Américas na década de 1550.
Na cidade de Parita, representações do diabo, Diablo Mayor e Diablo Capitan, celebram a tradição de Corpus Christi em meados de junho.
Tradições como a Danza de los Diablos (Dança dos Demónios) nasceram quando escravos africanos apelaram aos deuses por sua libertação. Em Nuevo Capricho, o grupo de dançarinos inclui um demónio mais velho chamado Terrón, que lidera os outros demónios, e uma demónio chamada Minga.
Os foliões de Acolla participam numa dança tradicional de pachahuara. A dança retrata a estrutura de trabalho de uma fazenda colonial. Os espanhóis fizeram o possível para manter separados os africanos e os povos indígenas escravizados, com medo de que se unissem e se revoltassem.
A Cuadrillas de San Martín é uma exposição equestre criada por um padre no século XVIII. Todos os anos, no dia 11 de novembro, quatro grupos de cavaleiros que representam as lutas entre europeus, mouros, povos indígenas e africanos enfrentam-se numa série de jogos.
Os Garifuna, ou Black Caribs, são descendentes de escravos da África Ocidental e os habitantes indígenas das Pequenas Antilhas. Sua celebração original do século XVIII em São Vicente e Granadinas incluiu dançarinas Wanaragua usando máscaras de malha rosa ou brancas para se disfarçar de mulheres europeias
Ao contrário das festividades centradas nas méringues, as melodias de Carnaval neste país de expressão francesa, Jacmel proporciona uma experiência mais enraizada na tradição local. Dos rapazes cobertos de fuligem negra ao som dos rara (os ritmos vodu são uma componente essencial das celebrações carnavalescas no Haiti), passando pelos músicos a tocar tambores ou trombetas feitas de metal reciclado e trompas de bambu, cada ritmo conta a sua própria história e convida-nos a dançar. Vi interpretações assustadoramente belas do diabo, grandes animais míticos e máscaras de aspecto grotesco confeccionadas com pasta de papel.
Em algumas regiões das Caraíbas, o Carnaval é mais do que a folia que transformou as festividades tradicionais desta época numa atracção turística vistosa. É um espaço artístico, um megafone público, uma expressão descarada de identidade cultural por parte dos descendentes dos escravos africanos. Proibidos de prestar culto às suas divindades, impedidos de participar nos bailes de máscaras pré-quaresmais dos senhores franceses e britânicos do século XVIII, os escravos fundiram as tradições e o folclore africanos com rituais coloniais, criando assim a sua própria festa.
Actualmente, celebrações como o Corpo de Deus, o Dia de Reis e o Dia de Finados assumem formas diferentes na diáspora africana e podem ser organizadas noutras épocas do ano, mas são festividades com elementos em comum. Personagens vestidas com roupa garrida e desrespeitando as normas sociais combinam o cristianismo, o folclore e as interpretações indígenas num ritual de rebelião vivaz.
Com as suas identidades disfarçadas atrás de máscaras ornamentadas, os foliões contam histórias, libertam frustrações e, em lugares como o Haiti, promovem agitação em prol da mudança política e social tendo como pano de fundo desfiles e paródias vibrantes. Os figurinos e as canções representam comentários sociais e críticas políticas.
“É um tipo de rebelião que também configura uma resistência cultural”, afirma Henry Navarro Delgado, professor associado da Universidade Ryerson que tem explorado o papel da moda no Carnaval.
Alguns foliões têm os corpos cobertos de tinta e de lama. Outros vestem-se com as cores garridas das divindades africanas, como o vermelho flamejante e o negro de Ogun, o deus africano da guerra e do ferro, ou o azul e o dourado de Erzulie Dantor, a deusa do ciúme e da paixão no paradigma vodu haitiano.
Uma figura central em muitos carnavais é o diablo maroto, o diabo. Na República Dominicana, ele pode aparecer como um vigarista que coxeia, pavoneando-se por todo o lado com um chicote. Em Trindade e Tobago, é por vezes um demónio azul troçado e espancado por outros diabos, para simbolizar a brutalidade da escravatura. E no Panamá surge frequentemente como o capataz, de chicote em punho, combatendo os escravos fugidos (quilombolas), numa dança tradicional do Congo que comemora a resistência dos escravos aos senhores espanhóis. O diabo, como é evidente, é mau no contexto católico romano ou europeu. Durante o Carnaval, porém, é habitualmente o espírito endiabrado necessário para equilibrar o mundo e agitar as coisas.
Nenhum Carnaval fica completo sem as danças mascaradas que retratam a relação entre os escravos e os colonizadores ou, em alguns casos, fazem troça dos opressores. Muitas danças exigem treino, segundo Amy Groleau, curadora das Colecções Latino-Americanas e Caribenhas do Museu de Arte Popular Internacional em Santa Fé (EUA). A investigadora salienta temas comuns, representando diferentes classes sociais, etnias e até animais. “Há uma espécie de elemento sagrado nas personagens”, diz.
Tanto nas personagens de animais da Colômbia como na dança Qhapaq Negro que descreve os afro-peruanos como trabalhadores escravizados que chegaram com os conquistadores espanhóis, o Carnaval é mais do que um ritual sazonal.