Reconstituição de um sepultamento no interior da anta 2 do Rego da Murta. A equipa de arqueologia encontrou restos humanos correspondentes a mais de cinquenta indivíduos no interior do monumento.
No alto ribatejo, um complexo pré-histórico revelou inesperadas práticas funerárias. o novo museu de alvaiázere ajuda a compreender a história.
Texto: Pedro Sobral de Carvalho
Ilustrações: Anyforms
Bem longe das extensas necrópoles megalíticas do Alentejo Central e dos planaltos da Beira Alta, encontramos uma singular manifestação da pré-história no concelho de Alvaiázere (distrito de Leiria). O complexo megalítico do Rego da Murta é constituído por treze monumentos. Este conjunto de dólmenes e menires tem sido estudado, desde 1998, por Alexandra Figueiredo, do Instituto Politécnico de Tomar, que lidera uma extensa equipa de arqueólogos e antropólogos.
Do conjunto, destacam-se as Antas 1 e 2 do Rego da Murta, que têm merecido um estudo mais aprofundado. Típicos dólmenes de corredor, estes sepulcros implantam-se numa zona associada aos maciços calcários, junto da ribeira do Rego da Murta. Em redor da Anta 2, encontraram-se cinco pequenos menires dispostos em círculo, criando um cenário único, repleto de simbolismo e religiosidade.
Estes dólmenes foram edificados no final do Neolítico, entre 3.360 e 2.990 a.C, e trouxeram a esta região uma nova forma de abordar os rituais da morte, até então realizados no interior de grutas, como as que se encontram junto do rio Nabão, um pouco mais a sul. Desde então, terão coexistido os enterramentos em gruta e em dólmenes, com uma diferença substancial.
A partir deste período, iniciou-se o enterramento colectivo que manifesta um novo paradigma social. Prova disto foi o achado de restos humanos de cinquenta indivíduos tanto na Anta 1 como na Anta 2 do Rego da Murta. Na Anta 2, registaram-se ainda amontoados de ossos, em diversas zonas da anta, cobertos por terra e selados por pedras, perto dos quais eram depositados diversos artefactos.
Os achados mais surpreendentes foram os enterramentos da segunda fase de utilização destes sepulcros, datados do Calcolítico Final/Bronze Inicial, entre 2.130 e 1.730 a.C. Juntamente com os restos humanos, foram identificados vestígios de flores e de ossos de uma grande variedade de animais, sobretudo de pequeno porte (lebre, coelho, cabra ou ovelha, raposa e corça), mas também de boi e cavalo ou zebro. É um claro indício de que estas populações tinham muitos recursos à sua disposição sendo evidente, assim, o fraco stress alimentar.
Ainda desta época, foram depositadas, junto dos corpos, peças extraordinárias como vasos de cerâmica, contas de colar de xisto, variscite e anidrite, placas de xisto, botões e alfinetes de osso, pontas de seta de sílex. Inesperadamente, encontraram-se também alabardas de sílex. Estas peças com forte valor simbólico são muito raras, sobretudo a norte do rio Tejo, sendo ainda de difícil interpretação o modo do seu funcionamento.
Este magnífico conjunto de artefactos sugere intensos contactos com regiões meridionais, como, provavelmente, o Alentejo. É igualmente neste sentido que apontam os resultados obtidos por uma equipa da Universidade do Iowa (EUA), que analisou amostras de esmalte dentário de 25 indivíduos e oito animais, detectando isótopos de estrôncio que identificaram indivíduos migrantes que teriam chegado a esta região numa fase adulta.
Num território onde as grutas sempre tiveram preponderância, as Antas do Rego da Murta conseguiram o seu papel na história e grande parte dessa história pode ser vista no recém-inaugurado Museu de Arqueologia de Alvaiázere concebido pela empresa Glorybox.
A partir dos vestigios no terreno e por extrapolação do que já se conhece consegue-se redesenhar o que existia na época.