Quando se reformou, Chester Lovett, um antigo carteiro, esperava passar algum tempo com os dez filhos. Chester morreu devido a complicações associadas à
COVID-19. Com as regras da pandemia, apenas dez pessoas puderam comparecer no funeral. Após o serviço fúnebre, o irmão soltou uma pomba para simbolizar o espírito de Chester a levantar voo.
Chamamos-lhe novo coronavírus. Ou SARS-CoV-2. Ou COVID-19. Independente- mente do nome, o vírus dominou por completo o ano de 2020, troçando das nossas defesas e dominando a nossa existência.
Texto: Cynthia Gorney
Este ano, um homem da província de Java Central, na Indonésia, montou uma barreira de postes de bambu, pintou a palavra “LOCKDOWN” num pedaço de plástico e bloqueou a estrada de entrada na aldeia. Um agente funerário belga começou a vestir-se para trabalhar com um fato de protecção. Uma criança de Detroit queixou-se de dor de cabeça e, um mês depois, apenas 12 pessoas tiveram autorização para comparecer no seu funeral e o sofrimento dos pais ficou ocultado pelas máscaras.
Eis o que este ano exigiu que compreendêssemos: que um único fenómeno liga estas pessoas, estes lugares, esta tristeza, este medo. A maior parte de nós não é epidemiologista ou sobrevivente da gripe pneumónica de 1918; para a maioria dos seres humanos, antes de 2020, a palavra “pandemia” pertencia à história, à ficção distópica ou a livros de jornalistas de ciência. O esforço para entender o novo coronavírus como o verdadeiro evento global em que se transformou é exaustivo. Mesmo para o observador mais experiente, o acompanhamento dos desenvolvimentos da ciência é perturbador: “Até para uma fã da ciência como eu, tem sido inquietante observá-los a discutir, discordar, rodopiar sobre si mesmos e reavaliar. Já dei por mim a desejar que algum herói vestido com uma bata de laboratório varresse a doença e a fizesse desaparecer”, escreve Robin Marantz Henig.
É um acto simultâneo de arrogância e de esperança apelidar os textos e imagens reunidos nesta revista como registo da pandemia – um registo é algo para que se olha depois do acontecimento, em retrospectiva. Quando chegaremos ao fim do túnel? Vamos seguir em frente porque temos de o fazer, mas como e para quê? E o que nos mudou durante este ano devastador? Estas são algumas das questões que os jornalistas e fotógrafos se propuseram explorar na edição de Novembro 2020 da National Geographic.
No passado dia 22 de Junho, o Gran Teatro de Barcelona reabriu as portas depois do confinamento perante uma plateia singular: o público era constituído por 2.292 plantas.
Na sua reflexão sobre a percepção da investigação científica num futuro marcado pelo coronavírus, Henig questiona-se sobre a hipervelocidade do trabalho de laboratório, grande parte do qual conduzido com uma abertura sem precedentes para um público também desesperado por um super-herói de laboratório.
“Talvez, de uma maneira estranha, ver os cientistas tentarem construir um avião ao mesmo tempo que o fazem voar seja uma faceta positiva para compreender o processo científico”, escreve Henig. Talvez. Somos uma espécie impaciente e egocêntrica, capaz de magníficos actos de heroísmo e de uma estupidez inacreditável. Quais as probabilidades de termos aprendido um caminho sustentável para atravessar esta calamidade? Não parecem certas, pois alteram-se de um dia para o outro.
Enquanto tentávamos dominar o vocabulário da quarentena e da lavagem das mãos durante 20 segundos, a temperatura do planeta continuou a subir. O optimismo pelos efeitos ambientais colaterais da pandemia sentia-se no ar, e certamente, parte era merecido. Os golfinhos regressaram aos canais de Veneza – desculpem, não era verdade, embora desejássemos muito que fosse. Os punjabis conseguiram ver os Himalaia pela primeira vez em décadas porque a desaceleração económica reduziu fortemente a poluição – sim, isso era real, tal como os relatórios que registaram níveis de poluição atmosférica mais reduzidos em Banguecoque e São Paulo.
Outra notícia falsa assegurava que 14 elefantes tinham invadido uma aldeia chinesa, tinham-se embriagado com vinho de milho e perdido a consciência num jardim.
“Cessação do movimento”. Esta expressão do presidente queniano Uhuru Kenyatta ao decretar o confinamento no seu país foi estranhamente poética. Durante algum tempo, região a região, parecia que o mundo inteiro tinha parado em 2020. As avenidas vazias. O comércio encerrado. Um quarteto de Barcelona a tocar Puccini numa sala de ópera cheia de vasos de plantas.
Porém, mesmo aqueles que podiam permanecer em casa conseguiam ver que o movimento não cessara por completo. As ambulâncias continuavam em movimento, as urgências e os cuidados intensivos trabalhavam freneticamente. Uma massa enorme de trabalhadores e pessoas desfavorecidas continuou a enfrentar diariamente o perigo de contágio por coronavírus por não ter outra hipótese.
Como Robert Kunzig escreve sobre as repercussões da pandemia no ambiente, a poluição atmosférica já está a recuperar e, este ano, a tundra siberiana ardeu. “Irá a experiência da COVID-19 mudar, de forma duradoura, a maneira como tratamos este planeta, no qual quase oito mil milhões de seres humanos lutam para sobreviver?”, pergunta. “Como seria se as economias do mundo fossem geridas dentro dos limites estabelecidos pela natureza?”
Cerca de metade dos trabalhadores norte-americanos não podem trabalhar em casa, pelo que, provavelmente, ficarão atrás dos que podem, comenta Nicholas Bloom, economista da Universidade de Stanford. A situação será “uma bomba-relógio para a desigualdade”.
O ano também fez surgir novos guerreiros, como recordam vários testemunhos nesta edição. Pessoas dispostas a colocar as malditas máscaras na cara e a fazer o possível para liderar, consolar e cuidar dos outros à sua volta, mesmo quando os outros estão na iminência de sucumbir.
Como seria se substituíssemos as palmas dirigidas aos trabalhadores subitamente rotulados como “essenciais” por salários mais altos, mais protecção e benefícios de saúde garantidos? Como seria se nos forçássemos por ler os números da infecção, não para reavaliar os nossos próprios riscos, mas para aceitar a miséria desproporcional que a pandemia provocou nas famílias e nas latitudes desprotegidas. Como seria se olhássemos de perto os rostos enlutados pela COVID-19 quando é mais confortável desviar os olhos?
Aquela criança de Detroit? Chamava-se Skylar Herbert. A mãe é polícia, o pai bombeiro. Tinha 5 anos.