A barca solar de Khufu tal como pode ser admirada hoje, totalmente reconstruída no Museu da Barca junto da Grande Pirâmide de Guiza.
Em 1954, arqueólogos egípcios encontraram em Guiza um fosso com os vestígios desmontados da barca funerária do faraó Khufu.
Texto: José Miguel Parra
O início da década de 1950 foi um momento decisivo na história do Egipto moderno. Em 1952, a revolução dos coronéis derrubou a monarquia e transformou o país numa república laica. Sob a presidência de Gamal Abdel Nasser, o Egipto iniciou uma vaga nacionalista que terminou em 1956 com a nacionalização do canal de Suez à custa das velhas potências colonialistas, França e Grã-Bretanha.
Não parece acidental que fosse igualmente durante esses anos que os arqueólogos egípcios, livres da tutela dos egiptólogos ocidentais, realizassem descobertas de repercussão mundial. A primeira aconteceu logo em 1952, por Zakaria Goneim, nomeado um ano antes director da área arqueológica de Sakara.
Enquanto realizava sondagens a oeste da pirâmide escalonada do faraó Djoser, Goneim identificou outra pirâmide escalonada, a de Sekhemkhet, um faraó que até então era apenas conhecido por figurar no velho Papiro de Turim, que lista todos os faraós do Antigo Egipto até Ramsés II.
A segunda descoberta teve maior repercussão internacional: a barca funerária de Khufu, perto da Grande Pirâmide, sem dúvida uma das mais espectaculares da história da egiptologia.
Uma barca milenar
No final da Segunda Guerra Mundial e com intenção de os turistas conseguirem transitar com maior facilidade pelo planalto de Guiza, foi decidido limpar os escombros que cobriam a parte inferior das faces da Grande Pirâmide.
Em 1954, esta tarefa estava prestes a terminar. Faltava só rematar a face sul e foi aí que ocorreram algumas interessantes descobertas. A primeira já era esperada: alguns vestígios do muro que antigamente delimitara o complexo funerário de Khufu, o criador da Grande Pirâmide, do qual já se tinham encontrado vestígios nas outras faces do monumento, a 23,6 metros de distância deste. Neste caso, porém, os vestígios estavam muito mais próximos, somente a cinco metros.
O muro estava construído sobre uma ampla camada de dakkah, constituída por lodo do Nilo e escombros, o que de imediato chamou a atenção do arquitecto encarregado da escavação, Kamal el-Mallakh. Seguindo as suas ordens, os operários levantaram a camada de dakkah para comprovar se existia algo por baixo. Enquanto o faziam, Mallakh sondou a camada com um bastão e acabou por tropeçar na típica argamassa rosada usada no Império Antigo. Entusiasmados com esta descoberta, os operários não demoraram a retirar toda a dakkah, sob a qual encontraram dois grupos distintos de lajes monolíticas: 40 no grupo oeste e 41 no leste, claramente separadas. Uma cartela com o nome de Khufu apareceu numa das pedras. Era evidente que as lajes cobriam longas trincheiras escavadas na época de construção da pirâmide.
O ambiente político rarefeito atrasou a escavação. Depois do afastamento do rei Faruk, o director do Serviço de Antiguidades também fugiu do país e ninguém parecia disposto a assumir a tarefa. Por fim, as autoridades concederam autorização para perfurar uma das lajes e comprovar o que existia por debaixo.
O trabalho foi árduo, mas, no dia 26 de Maio de 1954, alcançou-se finalmente a parte inferior das pedras, assentes sobre um rebordo da trincheira. Numa destas, o próprio Mallakh fez um orifício e, graças a um espelho e à posição do Sol, conseguiu espreitar para o interior. Dentro do fosso, havia o que parecia ser uma embarcação de madeira desmontada sobre a qual tinham caído algumas lascas e pó das lajes de calcário que a cobriam, sem que se detectassem mais danos.
Quando Kamal el-Mallakh chegou perto do fosso que continha a barca funerária, os seus olhos esbarraram na escuridão. “Semicerrei os olhos como um gato e cheirei incenso, um aroma muito sagrado. Cheirei tempo. Cheirei séculos. Cheirei a história”, recordou mais tarde. Na imagem retira-se a barca, em 1955, de um dos fossos da trincheira. Fotografia de Ralph Crane.
Tratava-se de uma enorme descoberta, que ficou ligada à descoberta de Goneim em Sakara e transformou estes dois arqueólogos egípcios nos melhores embaixadores da nova república árabe. Foram ambos enviados para os Estados Unidos para realizarem um conjunto de conferências, mas infelizmente a notoriedade não foi positiva, já que gerou bastantes invejas e receios.
A barca no seu túmulo. Esta imagem mostra a barca desmantelada no seu milenar refúgio, tal como foi vista pelos arqueólogos quando o fosso foi inteiramente destapado em 1955. As madeiras estavam colocadas em três camadas sobrepostas. Cada uma foi fotografada e catalogada antes da remoção. Fotografia de Victor R. Boswell, Jr / National Geographic Image Collection
Falsamente acusado de tráfico de antiguidades, Goneim acabou por se suicidar em 1959. Mallakh, por seu lado, foi acusado de querer monopolizar todo o protagonismo da descoberta.
Acabaria expulso do Serviço de Antiguidades e tornar-se-ia jornalista.
Só para egípcios
Dado o clima nacionalista que reinava no Egipto durante esses anos, o governo decidiu que a escavação e reconstrução seriam projectos exclusivos dos egípcios, tanto em relação a recursos como a especialistas. Esta decisão implicou um enorme atraso na altura de montar a barca e de a expor. Com ajuda externa, não teriam sido necessários 30 anos para concluir a campanha.
Quando a escavação terminou, descobriu-se que a barca funerária de Khufu era constituída por 1.224 peças de tamanho variável, desde um decímetro até 23 metros de comprimento, dispostas em várias camadas.
A barca que viajou no tempo. O restaurador Ahmed Yousef Moustafa relembrava assim a primeira vez que viu os vestígios da barca do faraó Khufu em Guiza: “Senti-me ansioso e cheio de medo. Não sabia nada sobre construção de barcos e parecia que aquele trabalho precisava mais de um carpinteiro do que de um restaurador.” Assim, enquanto as peças eram retiradas do fosso para conservação, Yousef aprendeu tudo o que conseguiu sobre construção de embarcações ao visitar os estaleiros do Nilo; tomou notas e construiu modelos à escala para praticar. No final, estava pronto para levar a cabo uma campanha sem igual nos anais da egiptologia: dar uma nova vida a uma barca sagrada com quase cinco mil anos. Na imagem a barca de khufu depois de montada de novo por Ahmed Yousef Moustafa. Museu da Barca, Guiza.
O encarregado do restauro das peças e de montar o quebra-cabeças resultante foi Ahmed Yousef Moustafa, conservador-restaurador principal do Museu Egípcio no Cairo. A tarefa, para a qual elaborou uma cópia em miniatura das peças da barca, seria facilitada pelas marcas nas peças que indicavam bombordo, estibordo e popa.
A barca gémea
Ahmed Yousef Moustafa montou a barca cinco vezes até conseguir encaixar todos os elementos. Quando acabou, deparou com uma embarcação de dimensões imponentes: 43,4 metros da proa à popa e 5,9 metros de largura. Desde 1985, ficou exposta no Museu da Barca, construído exactamente sobre a trincheira que a escondeu durante milénios.
Uma vez montada, viu-se que a barca de Khufu era enorme: 43,4 m da proa à popa e 5,9 mde largura. Reconstrução do entramado do casco da barca de Khufu. Fotografia de Ian Patric
Porém, ficava ainda por escavar a segunda trincheira localizada em 1954, na qual se suspeitava poder existir outra embarcação. A sua existência só foi demonstrada em 1987 graças a uma análise com um scanner electromagnético realizado por uma equipa da universidade japonesa de Waseda, liderada por S. Yoshimura. Sob o patrocínio da National Geographic Society, captaram-se fotografias da barca, mantendo intacta a atmosfera, embora o esforço tenha sido em vão porque o fosso não fora mantido estanque. Seguramente, a construção do vizinho Museu da Barca afectou o desfecho.
Dado que a madeira parecia estar em mau estado, decidiu-se levantar as lajes e construir por cima uma tenda-laboratório. A extracção das aproximadamente 1.200 peças da barca começou em Junho de 2013. Destas, 704 já foram restauradas e transferidas para o novo Grande Museu Egípcio do Cairo.