Na época anglo-saxónica, os londrinos pagavam impostos na Guildhall. A estrutura actual data de 1411. Uma linha negra curva marca o anfiteatro romano. Fotografia de David Gee, Alamy Stock Photo.
O Império Romano deixou uma estrutura marcante nos locais onde governava: o anfiteatro. Os arqueólogos procuraram durante décadas o de Londres até o encontrarem num local inesperado.
Texto: Sean Kingsley
À semelhança de outros cidadãos romanos do império, a população de Londinium, a Londres romana, tinha acesso a uma diversificada oferta cultural. Desde finais da década de 1800 que os arqueólogos desenterram ruínas de estruturas sofisticadas da época romana por toda a cidade, incluindo Billingsgate Bathhouse, onde os romanos se banhavam e socializavam; o fórum, o seu local de encontro público; e uma basílica maior do que a actual Catedral de S. Paulo, onde adoravam os seus diversos deuses. Mas onde estava o anfiteatro? Todas as comunidades romanas tinham um local onde os cidadãos podiam assistir a combates de gladiadores, matança de animais e execuções. Esta cidade teria certamente um. Durante mais de um século, porém, os arqueólogos não conseguiram encontrar qualquer vestígio.
Descoberta espectacular
Em 1987, inspecções pontuais para as fundações de uma nova galeria de arte a construir sob a Guildhall (a câmara municipal), no coração do distrito financeiro de Londres, encontraram, a cerca de seis metros abaixo do solo, uma área enorme com ruínas com 2.000 anos cobertas por séculos de detritos. Os arqueológos deduziram que os diversos vestígios pertenciam a um único edifício. Análises mais aprofundadas do espaço existente sob as torres góticas do edifício acastelado revelaram uma curva inconfundível que só poderia pertencer a um anfiteatro.
O Sol põe-se sobre Londres e uma série de tesouros escondidos aguarda por uma descoberta no futuro. Fotografia de Chris Dalton, Istock/Getty Images.
A sua localização era surpreendente. A maioria dos anfiteatros romanos eram construídos fora das muralhas da cidade, enquanto este fora construído no interior.
Os arqueólogos descobriram uma parede exterior inclinada que permitia bancadas escalonadas, curvando-se até uma parede interior que rodeava a base. A planta baixa da passagem de entrada com sete metros de largura, pela qual entravam animais selvagens, gladiadores e criminosos a caminho da arena, permanecia intacta.. Pequenas câmaras de ambos os lados do corredor, com alçapões em frente, poderão ter sido usadas como balneários, santuários ou recintos para animais selvagens. Os arqueólogos também descobriram vários canais de drenagem, guarnecido com pranchas de madeira, que conduziam a uma fossa.
Escavações posteriores, realizadas em 2000, descobriam vestígios de uma guarita do século XIII, construída sobre a entrada sul do anfiteatro.
No entanto, talvez sejam as descobertas mais pequenas que fornecem as imagens mais poderosas da vida quotidiana naquele passado tão distante. Os espectadores, jogavam com peças em osso sobre tabuleiros enquanto aguardavam o início do espectáculo. Mármore verde e roxo da Grécia e do Egipto dá-nos um vislumbre de como as paredes brilhavam no passado contra o céu cinzento de Londres. Elegantes tigelas vermelhas de terra sigillata, decoradas com gladiadores e acessíveis à classe média, eram vendidas como recordações ou continham o jantar dos espectadores que assistiam aos jogos. E uma tabuleta de maldições – uma folha de chumbo fina, enrolada, inscrita com um feitiço pedindo às forças das trevas que esmagassem o adversário de um campeão – foi descoberta escondida nos tubos de escoamento em madeira da arena.
Mistério dos gladiadores.
Ao lado do anfiteatro, o riacho Walbrook (hoje enterrado sob a superfície da cidade contemporânea) é o ponto zero do maior caso forense de Londres: centenas de crânios humanos de todas as épocas foram dragados nos últimos dois séculos e alvo de uma escavação científica recente. Quem seriam?
Os arqueólogos examinaram o grande mistério através de uma lente científica. As cabeças foram descartadas entre 70 e 200 d.C., a algumas centenas de metros do anfiteatro romano. Pelo menos 36 pertenceram a homens que morreram entre os 18 e os 35 anos. Muitos sofreram múltiplos traumatismos na cabeça, fracturas nas mandíbulas, danos nos dentes e fracturas no crânio causadas por golpes de força bruta no rosto e nas regiões laterais do crânio.
Terão os crânios vindo de cemitérios? Seriam oferendas religiosas aos deuses de Londres? Ou seriam gladiadores – que costumavam morrer entre os 22 e os 27 anos, depois de sobreviverem em média a cinco a dez combates?
No entanto, os gladiadores não eram executados como estas pobres almas foram. A melhor correspondência forense aponta para criminosos aprisionados no forte do alto da colina, que foram conduzidos até ao anfiteatro antes de serem despachados pela ponta da espada de um gladiador. Em seguida, os troféus macabros foram levados para o sopé da colina e exibidos em estacas.
Um de 39 crânios romanos encontrados em Walbrook Valley, provavelmente os restos mortais de criminosos decapitados.
Fotografia de Stefan Rousseau, Pa Images/Getty Images.
A descoberta completamente inesperada pôs fim a décadas de especulação sobre a existência do anfiteatro da Londres romana. As ruínas subterrâneas sobreviveram por estarem submersas tendo a água preservado as madeiras e outros elementos tipicamente perecíveis.
Construído para impressionar
A arena ganhou vida por volta de 74 d.C. na colina ocidental de Londres, junto ao riacho Walbrook e ao forte romano de Cripplegate. A primeira arena, possivelmente encomendada pelo governador Q. Petillius Cerialis, era uma simples estrutura em madeira. Por volta de 125 d.C., foi melhorada com tijolo e calcário Kentish e uma entrada revestida com mosaicos.
Desafiando o tempo, parte da muralha romana da cidade de Londres ergue-se ainda hoje no frondoso Salters’ Garden, outrora parte de um fosso defensivo. A muralha continuou a ser usada ao longo de mais de 1.500 anos. Fotografia de Whitemay, Istock/Getty Images.
O anfiteatro de Londres foi construído para impressionar. Com cerca de 100 metros de comprimento e 85 metros de largura, era maior do que as arenas comuns das províncias romanas do ocidente (para efeitos de comparação, o coliseu de Roma media 188 por 156 metros). A parede da arena erguia-se até 2,7 metros de altura, seguindo-se depois degraus com bancadas em madeira. Os 6.000 lugares disponíveis eram ocupados pelos espectadores que clamavam por sangue e rugiam em resposta aos discursos dos políticos.
As noites do anfiteatro eram preenchidas por uma variedade de entretenimento. Políticos honrando deuses e imperadores. Lutas de animais e caçadas eram recriadas com javalis, touros e ursos adultos (cujos ossos foram encontrados sob o muro da arena). Combates de gladiadores, concursos de atletismo, acrobacias, luta corpo-a-corpo, boxe, e corridas eram as actividades essenciais muito apreciadas.
Apenas cinco dos anfiteatros da Grã-Bretanha foram construídos junto a um forte, à semelhança do anfiteatro romano de Londres. Como tal, poderia também ser usado para cerimónias e eventos militares.
Mas o anfiteatro oferecia mais do que entretenimento puro. Era uma criação política. Por volta de 100 d.C., o poeta romano Juvenal explicou que “pão e circo” eram os dois pilares da cidade que mantinham a multidão feliz. Se dessem comida e entretenimento ao povo, este não se concentraria na política e nos problemas da sociedade, evitando-se assim uma possível revolta.
O fim de uma era
O anfiteatro de Londres foi usado até cerca de 360 d.C. Quando os romanos partiram, com a queda do seu império, o local ficou negligenciado durante centenas de anos. Londres tornou-se uma cidade-fantasma e as suas luzes ficaram apagadas até o rei Alfredo, o Grande, (reinado de 871 a 899) marchar cidade dentro no final do século IX para ressuscitar a civilização – pelo menos é isso que diz um conjunto de livros de história. Pouco a pouco, as pessoas foram roubando as pedras da arena para as usarem noutros projectos de construção.
Alicerces do anfiteatro romano, situado sob a Guildhall, fundado em 74 d.C. e melhorado por volta de 125 d.C. Ainda é visível um alçapão em frente às câmaras onde se encontravam os animais e os gladiadores. Fotografia de Steve Vidler, Alamy Stock Photo.
Na Idade Média, construíram-se sobre o local casas de madeira, seguidas pela primeira Guildhall de Londres no século XII. A Guildhall foi o centro da cidade durante séculos, acolhendo banquetes, cerimónias formais e outros eventos. A sua localização baseou-se certamente na localização do antigo anfiteatro romano. A estrutura actual, concluída em 1440, continua a ser o centro administrativo e cerimonial da Cidade de Londres.
O anfiteatro hoje
Após cuidadosos trabalhos de conservação no anfiteatro, em 1999 foi oficialmente inaugurada a Guildhall Art Gallery nos pisos inferiores da Guildhall, e os vestígios do anfiteatro foram abertos ao público em 2002, num ambiente controlado na cave. A exposição do anfiteatro, mostrando in situ, as paredes em ruínas e uma selecção de achados escavados no local, usa iluminação com lasers verdes e tinta luminescente na cave obscurecida para mostrar o possível aspecto do anfiteatro durante a época romana. Embora não tão grande como o Coliseu de Roma, nem com a sua imponente presença, o anfiteatro de Londres oferece-nos vislumbres do espectáculo de há 1600 anos, quando animais e profissionais do entretenimento actuavam ao vivo diante do público entusiasmado da Londres romana.
Partes deste trabalho já foram publicadas em Hidden London, de Sean Kingsley. Copyright da compilação© 2022 National Geographic Partners, LLC.