quilt

Apesar de algumas cores se terem esbatido com o passar do tempo, o trabalho de Harriet Powers no Pictorial Quilt continua a ser brilhante. Os 15 painéis da colcha contam histórias da bíblia, acompanhadas por acontecimentos da vida e da época de Powers. Fotografia de Album/Granger.

Apenas dois quilts de Harriet Powers, elaborados no século XIX, sobreviveram até aos dias de hoje, mas o seu dinamismo – e poder espiritual – deixaram a sua marca na arte americana.

Texto: Cathy Newman

Na fotografia manchada pelo tempo, o olhar da mulher é directo. As mãos, fortes e com dedos compridos e esguios, seguram um pedaço de tecido. Ela veste um avental. Um olhar mais atento revela que se trata de mais do que um modesto ícone doméstico. É uma afirmação artística. O material é um algodão vulgar, embelezado por uma exuberância invulgar de contornos recortados e grandes aplicações a formar raios de sol. Os raios de sol recordam os que decoravam dois quilts do século XIX, igualmente fabricados pela mulher que fez o avental: Harriet Powers, uma afro-americana da cidade de Athens, no estado da Geórgia. Nascida escrava, Harriet transcenderia essa condição para exprimir a sua visão criativa poderosa sob a forma de retalhos de tecido cosidos.

A sua visão está presente numa colcha de retalhos conhecida como Pictorial Quilt, que pertence à colecção do Museu de Belas Artes de Boston. A sua outra obra-prima sobrevivente, conhecida como Bible Quilt, encontra-se no Museu Nacional de História Natural Smithsonian. Ambos foram feitos no final do século XIX. Os quilt não são originários dos EUA, mas têm uma forte ligação com a América. Estas mantas de retalhos eram simultaneamente práticas e artísticas, peças muitas vezes profundamente pessoais e reflexo das próprias artesãs.

A entrada referente ao Pictorial Quilt de Powers, nos arquivos do MFA é tão directa como o olhar da sua criadora:

Colcha com aplicações de tecidos de algodão, tingidos com padrões, aplicados em algodão. Esta colcha está dividida em quinze rectângulos pictóricos. Elaborada com retalhos de algodão beges, cor-de-rosa, malva, cor-de-laranja, vermelho-escuro, verde e tons de azul.

Aquilo que as fontes escritas não dizem – e que só a própria colcha pode dizer – é que, juntamente com o Bible Quilt é o testemunho pessoal de uma mulher com uma fé e autoconfiança inabaláveis. Ao escrever sobre o Bible Quilt, a romancista Alice Walker chamou-lhe “uma colcha sem comparação em todo o mundo… o trabalho de uma artista que deixou a sua marca nos únicos materiais que podia pagar”. A especialista em folclore Gladys-Marie Fry sentava-se diante daquela colcha e devaneava: “Quem era Harriet?”, interrogava-se. “Qual era a sua história?”

Montando as peças do puzzle

A história de Harriet Powers, à semelhança do seu quilt, foi cosida a partir dos pedaços que os biógrafos usam para montar uma vida: cartas, ficheiros de museu, fotografias esbatidas, entrevistas, revistas científicas, catálogos de exposições e recortes de jornal. Aquilo que se sabe sobre Powers é que ela nasceu escrava em 1837, em Madison County, no estado da Georgia. Casou em 1855, e mais tarde mudou-se com o marido, Armstead, após a emancipação para uma quinta mais perto de Athens. Era profundamente religiosa, alfabetizada e talentosa.

quilt

Esta fotografia sem data de Harriet Powers é a única que se conhece. O seu Bible Quilt atraiu muitos admiradores quando esteve exposto em 1895. Um deles foi Lorene Curtis Diver, que quis saber mais sobre a sua criadora. Ela localizou Powers e escreveu-lhe. A resposta de Powers contém uma lista das outras colchas feitas por si: “Em 1872 fiz um quilt com 4 mil e 50 losangos... em 1887, apresentei o quilt das estrelas na Colored Fair Association de Athens... fiz um quilt da Última Ceia do Novo Testamento. 2 mil e 500 losangos.” O destino destes outros quilt é desconhecido e o seu paradeiro continua a desafiar os historiadores da arte. Museu de Belas Artes, Boston/Scala, Florença

O Bible Quilt tem onze quadrados pictóricos. Entre outras histórias, conta a de Adão e Eva, da Escada de Jacó e da Última Ceia. Os painéis desta colcha e do Pictorial Quilt estão dispostos em função da ordem pela qual ela quis contar as histórias: “É um ciclo, como um fresco do Renascimento”, diz Jennifer Swope, curadora do departamento Departamento de Têxteis e Artes da Moda do MFA. “Comoventes e ilusórios na sua simplicidade”.

Uma descrição de cada painel feita pela própria Powers acompanhava os quilt. Ela era uma contadora de histórias e queria assegurar-se que as suas intenções eram compreendidas. “Vemos trauma, problemas, sofrimento e caos que reflectem histórias sobre a sua vida e a dos afro-americanos”, diz Tiya Miles, professora de história na Universidade de Harvard.

História de uma chuva de estrelas

No Pictorial Quilt, os observadores podem ir até à segunda fila de painéis, andar três quadrados para a direita e descobrir o dinâmico painel central. Formas alaranjadas semelhantes a cometas, encimadas por estrelas, pendem em direcção à Terra enquanto quatro figuras humanas – uma família – levantam os braços, talvez manifestando surpresa medo ou ambos. Há um coelho sentado no canto esquerdo inferior e um gato inclinado para o canto inferior direito. Uma mão fantasmagoricamente desmembrada flutua no topo esquerdo.

quilt colcha de retalhos

Chuva de estrelas de Powers. “As Estrelas Cadentes", uma gravura em madeira de 1889 mostra uma chuva de meteoros em 1833. Science History Images/Alamy

Todos os anos, estrelas cadentes rasgam o céu no mês de Novembro durante a chuva de meteoros das Leónidas, mas algumas chuvas são mais intensas do que outras. A cada 33 anos, aproximadamente, as Leónidas fazem “chover” centenas de milhares de meteoros por hora. Em 1833, as Leónidas maravilharam os espectadores com entre 50.000 e 150.000 meteoros por hora, um acontecimento celebrado por Harriet Powers no seu quilt.

O quadrado, escreveu Harriet Powers, mostra “a chuva de estrelas de 13 de Novembro de 1833. As pessoas estavam assustadas e pensavam que o fim tinha chegado. A mão de Deus serenou as estrelas. Os bandidos levantaram-se das camas a correr.” Foi um acontecimento verídico – a chuva de estrelas das Leónidas de 1893. As estrelas cadentes pareciam chuva. “As pessoas estavam aterrorizadas e muitas achavam que era o dia do julgamento final”, explica Miles. “Teorizavam que Deus estava a levar o mundo ao seu fim e alguns esclavagistas temeram que talvez fosse o pecado de terem pessoas como sua propriedade que os estava a conduzir a este momento de juízo.”

A chuva de meteoros aconteceu antes de Powers ter nascido – mas ela ouviu as histórias. O quilt era o seu próprio relato do acontecimento: trauma, problemas, caos e, por fim, a salvação representada pela mão de Deus.

Em exibição

O Pictorial Quilt, exposto em Nashville em 1897, foi comprado por um grupo de “senhoras da faculdade” da Universidade de Atlanta para oferecer ao reverendo Charles Cuthbert Hall, possivelmente para celebrar a sua nomeação como presidente do Seminário Teológico União.

quilt

Bible Quilt conta histórias do Antigo e do Novo Testamento, incluindo do Jardim do Éden, Caim e Abel, Escada de Jacó, a Última Ceia e a Sagrada Família. Esta obra-prima de Powers pode ser vista no Museu Nacional de História Americana Smithsonian, em Washington, D.C. Oferta de Mr. E Mrs. H. M. Heckman/Museu Nacional de História Americana

O Bible Quilt foi exposto em 1886 numa feira em Athens, no estado da Geórgia, onde Jennie Smith, uma professora branca de artes de um colégio feminino, tentou comprá-lo. Não estava à venda. Vários anos mais tarde, quando a família Powers enfrentava dificuldades financeiras, passou a estar. Obrigada a vender “a adorada criação do seu cérebro”, Powers entregou a colcha numa carroça puxada por bois, dizendo segurar “a preciosa carga no seu colo envolta numa saca de farinha limpa e seguidamente embrulhada numa saca de juta”. Regressou várias vezes para visitar o quilt, escreveu Jennie Smith. “Ficou apenas parcialmente consolada pela sua perda quando lhe prometi guardar todos os meus retalhos para lhe dar”.

Ambos os quilt viriam a integrar colecções museológicas e essa parte da história – a viagem das suas mãos Negras para a posse privada em mãos Brancas até à parede de um museu – é complicada pelo que Miles sugere ser a difícil dinâmica da raça nas colecções museológicas, na filantropia e na custódia de peças.

“Não foi por vontade de Powers que as suas colchas acabaram por ser expostas em dois dos mais respeitáveis museus do país”, escreveu Miles. Por outro lado, foi devido a essa viagem que os quilt foram preservados, apreciados e reconhecidos pelo seu significado.

Legado poderoso

Se soubesse que os seus quilt viriam a estar pendurados na parede de um museu, “ela teria louvado o senhor, diz a criadora de quilt e académica independente Kyra Hicks. Powers orgulhava-se do seu trabalho. Enquanto foi viva, não escondeu a sua arte dentro de um baú ou debaixo de nada, escreveu Laurel Thatcher Ulrich, professora emérita de história na Universidade de Harvard. “Quando as pessoas admiravam as suas colchas, ela insistia em explicar-lhes o seu significado. Os seus quilt sobreviveram não só por serem peças de arte extraordinárias, mas por que ela falava acerca deles a quem quisesse ouvi-la.”

quilt

Arte da conservação. À semelhança de todos os têxteis, os quilt dos museus precisam de ser protegidos das agressões combinadas da luz, tintas instáveis, desgaste causado pelo manuseamento e insectos. O inexorável envelhecimento manifesta-se, por exemplo, no desvanecimento das cores: o fundo cor-de-rosa vívido de ambos os quilt de Harriet Powers é agora um rosa pálido; os verdes tornaram-se castanhos. Para prolongar a sua vida, quando não estão expostas, as colchas de Harriet Powers do Museu de Belas Artes (MFA), em Boston, estão cuidadosamente embrulhadas e armazenadas. A regra genérica diz que, para cada mês de exposição, a peça deve ser guardada durante um ano. O quilt é embrulhado em papel de arquivo, uma camada de musselina e uma camada exterior de poliuretano e enrolado num tubo com 13 centímetros de diâmetro. Na imagem, um dispensador de linhas em madeira de ácer do século XIX. Fotografia de Bridgeman/ACI.

A sua voz pode ser ouvida não só através dos quilt, mas directamente numa carta que Hicks descobriu nos arquivos da sociedade histórica de Lee County, em Keokuk, no estado do Iowa. Harriet Powers tinha 58 anos e, na carta, falava sobre a sua igreja, o marido, os nove filhos, de aprender a ler e sobre os seus quilt, incluindo três cujo paradeiro permanece desconhecido. É tentador esperar que as colchas que menciona (uma com “2 mil e 500 diamantes”) estejam escondidas num baú, à espera de serem descobertas, mas podemos estar gratos pelas duas que sobreviveram. E, acrescenta Hicks: “não temos sorte por haver mãos amorosas às quais as podemos entregar?”

Também existe gratidão pelo retrato do seu olhar que atravessa décadas. Powers visitou o estúdio de um fotógrafo em Athens para aquela fotografia— um acto deliberado e confiante de auto-documentação. Ela está sozinha, com um pedaço de tecido nos dedos, envolta na sua arte. “Isto eu concretizo”, diz naquela carta. Harriet Powers conhecia o seu valor.

 

Pesquisar