Adoro a intimidade de um grande plano porque ele capta a essência de um ser humano. Não me interessam as roupas, nem o ambiente que o rodeia. O retrato não traz pistas sobre o perfil social. Tudo se resume ao rosto.
Texto Lise Funderburg Fotografia Martin Schoeller
McKenzi McPherson, 9 anos, Houston, com os seus pais, Alison, 36 anos, e Lawrence McPherson, 40 anos. Auto-identificação: castanha/mestiça, negra e branca. No censo, preencheu as quadrículas: “Branca” e “Negra”.
Posso tirar 40, 50 ou 100 fotografias de um indivíduo e a de que mais gosto é aquela em que o rosto ainda não revela a expressão seguinte que o cérebro quer que seja formada. Gosto de criar catálogos de rostos que convidem as pessoas a compará-los. Nós temos uma noção de qual deve ser a presumível aparência do olho, do nariz, ou do lábio de um indivíduo. Mas quando comparamos 10, 20 ou 100 pares de olhos, percebemos como são diferentes. Eu tiro fotografias de gente com origens, culturas e antecedentes étnicos muito variados, mas feitas as contas, no final, todos somos seres humanos. Posso fotografar o presidente da República num dia e um sem-abrigo uma semana mais tarde. Quero debater a maneira como nos servimos da aparência para modelar a identidade.
Imani Cornelius, 13 anos, Shakopee, Minnesota Auto-identificação: negra e branca | No censo, preencheu a quadrícula: “Negra” | Imani precisa de um transplante de medula óssea, mas a escassez de dadores afro-americanos e multirraciais obriga-a a esperar dois anos, uma vez que a busca de dadores compatíveis é afectada pela sua ascendência múltipla.
O que haverá nos rostos apresentados nestas páginas que tanto nos intriga? Será apenas o facto de as suas características colidirem com as nossas expectativas, por não estarmos habituados a ver aqueles olhos a combinar com aquele cabelo e aquele nariz sobre aqueles lábios? As nossas reacções podem variar, desde o desejo benigno do antropólogo de bancada de identificar traços antigos e descobrir características comuns à repulsa activa por vermos desrespeitadas as barreiras entre grupos ou, na linguagem dos tempos racistas, “diluídas”.
Reparamos e admiramo-nos porque aquilo que vemos diz muito sobre o passado dos EUA, sobre o seu presente e sobre as promessas do seu futuro.
À esquerda, Yoel Chac Bautista, 7 anos, Castaic, Califórnia. Auto-identificação: negro/mexicano. No censo, preencheu a quadrícula: “Negro”. Tayden Burrell, 5 anos, Sarasota, Florida Auto-identificação: negro e branco. No censo, preencheu as quadrículas: “Branco” e “Negro”.
À esquerda, Sandra Williams , 46 anos, Chicago, Illinois. Auto-identificação: birracial e “ser humano”. No censo, preencheu a quadrícula: “Negra”. Kelly Williams II, 17 anos, Dallas, Texas. Auto-identificação: afro-americano e alemão/multirracial. No censo, preencheu a quadrícula: “Negro”.
O Gabinete Norte-Americano de Recenseamento só começou a recolher dados multiétnicos a partir de 2000, quando pela primeira vez permitiu que os inquiridos assinalassem mais do que uma etnia nos censos. 6,8 milhões de pes- soas decidiram fazê-lo. Dez anos mais tarde, esse valor crescera 32%. A opção da etnia múltipla foi louvada como um progresso face às limitações impostas pelas categorias raciais fixadas em finais do século XVIII pelo cientista alemão Johann Friedrich Blumenbach, que dividiu os seres humanos em cinco “variedades naturais” como vermelhos, amarelos, castanhos, negros e brancos. Embora a opção da etnia múltipla ainda se enraíze nessa taxonomia, ela introduz o factor da autodeterminação. Trata-se de um passo em frente para fixar um sistema de categorização que, paradoxalmente, é erróneo (já que os especialistas em genética demonstraram que a etnia não é uma realidade biológica) mas essencial, uma vez que os conceitos de etnia e o racismo existem de facto. O “despiste étnico” serve para fazer aplicar as leis contra a discriminação e para identificar problemas de saúde específicos de certas populações.
À esquerda, Hosanna Marshall, 32 anos, Nova Iorque, Nova Iorque. Auto-identificação: afro-americana, nativa-americana, branca e judia. No censo, preencheu a quadrícula: “Negra”. Maya Joi Smith, 9 anos, Cary, Illinois. Auto-identificação: negra e asiática, coreana e afro-americana. No censo, preencheu a quadrícula: “Negra”.
À esquerda, Julie Weiss, 33 anos, Hollywood, Califórnia. Auto-identificação: filipina, chinesa, hispânica, indiana, húngara e judia alemã | No censo, preencheu as quadrículas: “Branca”, “Indiana-asiática”, “Chinesa” e “Filipina”. Joshua Ahsoak, 34 anos, Anchorage, Alasca. Auto-identificação: judeu e esquimó inupiat. No censo, preencheu a quadrícula: “Nativo do Alasca”.
O Gabinete de Recenseamento tem a noção de que as suas categorias são falíveis, desmentindo qualquer intenção de “definir a etnia em termos biológicos, antropológicos ou genéticos”. E a verdade é que, para a maioria dos norte-americanos de múltipla etnia, a identidade é um conceito matizado, influenciado pela política, pela religião, pela história e pela geografia, além da forma como o indivíduo crê que a resposta será utilizada. “Eu digo apenas que sou castanha”, explica McKenzi McPherson, de 9 anos. “Penso para os meus botões: ‘Porque queres saber isso?’” Maximillian Sugiura, de 29 anos, afirma pertencer ao grupo étnico que lhe proporciona mais vantagens em cada situação. A fidelidade também conta, sobretudo quando o património hereditário de um indivíduo não se revela em características faciais fenotípicas, no cabelo ou na pele. Yudah Holman, de 29 anos, identifica-se como parcialmente tailandês e negro, mas, nos impressos, autodefine-se como “asiático” e põe sempre “tailandês” em primeiro lugar, “porque foi a minha mãe que me criou e tenho muito orgulho em ser tailandês”.
E a verdade é que, para a maioria dos norte-americanos de múltipla etnia, a identidade é um conceito matizado, influenciado pela política, pela religião, pela história e pela geografia.
Sandra Williams, de 46 anos, cresceu numa época em que o país ainda funcionava a preto-ou-branco. O recenseamento de 1960 mostrou um país que ainda era 99% negro ou branco e, quando Sandra nasceu, seis anos mais tarde, com progenitores de ascendência mista negra e branca, 17 estados dos EUA ainda proibiam casamentos inter-raciais. Na sua cidade natal, na Virgínia Ocidental, havia apenas uma criança asiática na escola. Se associasse a sua pele e cabelo claros aos antepassados brancos, o seu acto teria sido interpretado pelos negros como uma rejeição. Por isso, embora considere a etnia uma construção social, identifica-se no censo como negra. “Era assim que os meus pais se identificavam”, explica.
À esquerda, Maximillian Sugiura, 29 anos, Brooklyn, Nova Iorque. Auto-identificação: japonês, judeu e ucraniano. No censo, preencheu as quadrículas: “Branco” e “Japonês”. Daisy Fencl, 3 anos, San António, Texas. Identificação pelos progenitores em seu nome: coreana e hispânica. No censo, preencheu a quadrícula: ainda não foi contabilizada.
No mundo contemporâneo, os indivíduos com origens raciais e culturais complexas preferem definições mais leves e divertidas para se autodenominarem. Quando Joshua Ahsoak, de 34 anos, frequentou a universidade, a sua ascendência de inupiat (esquimó) e de judeu dos EUA granjeou-lhe o epíteto “jusquimó”, palavra que ainda usa para se identificar, troçando de si próprio por ser um judeu praticante que desrespeita as interdições alimentares koscher não comendo carne de porco, mas carne de morsa e de foca.
Ninguém tem dúvidas de que a etnia continua a pesar nos EUA, apesar de ter sido argumentado que a eleição de Barack Obama inaugurou um mundo pós-racial.
Segundo Tracey Williams Bautista, o seu filho de 7 anos Yoel Chac Bautista identifica-se como negro quando está com ela, a sua progenitora de origem afro-americana. Quando está com o pai, diz que é mexicano. “Chamamos-lhe ‘Mexinegro’”, diz, gracejando. Tracey e o marido estão a educá-lo numa casa onde coabitam os retratos de Martin Luther King, Jr. e Frida Kahlo. Os parentes negros de Tracey previnem-na quanto à persistência da regra da gota única de sangue, o velho hábito de chamar negro a qualquer indivíduo com o mais ligeiro vestígio de “sangue” negro.
Ninguém tem dúvidas de que a etnia continua a pesar nos EUA, apesar de ter sido argumentado que a eleição de Barack Obama inaugurou um mundo pós-racial. Talvez o país se torne uma nação pluralista em 2060, ano em que o Gabinete de Recenseamento prevê que os brancos não-hispânicos deixarão de ser maioritários. Todavia, estas contagens não garantem oportunidades, nem fazem esquecer o legado dos campos de internamento dos japoneses-americanos, nem as leis racistas de Jim Crow. Em média, os brancos possuem um rendimento duas vezes superior ao dos negros e dos hispânicos e uma fortuna seis vezes maior. E os jovens negros do sexo masculino têm duas vezes mais hipóteses de desemprego do que os brancos. O preconceito racial ainda se espelha nas percentagens de encarceramento, nas condições de saúde e nos noticiários televisivos.
Aumento percentual do número de indivíduos que declaram ter duas ou mais etnias, entre 2000 e 2010, nos EUA, por comarca.
Em Maio de 2013, um relatório científico indicou que os eleitores tradicionais de direita têm mais probabilidades que os de esquerda de identificar rostos ambíguos como negros. No fundo, atribuímos significados num abrir e fechar de olhos.
Celeste Seda, de 26 anos, gosta de deixar os interlocutores adivinharem as suas origens antes de lhes falar dos antepassados dominicanos e coreanos. Mas isso só revela uma fracção mínima da sua identidade, que inclui a infância em Long Island, uma família de adopção porto-riquenha, uma irmã afro-americana e uma carreira como actriz. As atenções que lhe são dispensadas devido à sua aparência invulgar podem ser lisonjeiras ou exaustivas. “É um dom e uma maldição”, diz.
À esquerda, Jordan Spencer, 18 anos, Grand Prairie, Texas. Auto-identificação: negra ou birracial. No censo, preencheu a quadrícula: “Negra”. Celeste Seda, 26 anos, Brooklyn, Nova Iorque. Auto-identificação: dominicana e coreana. No censo, preencheu as quadrículas: “Asiática” e “Outra etnia”.
Para os restantes, é também uma oportunidade. Se não conseguimos encaixar os seres humanos nas categorias existentes, talvez reponderemos as definições de etnia e identidade e os pressupostos sobre “nós” e “eles”. Talvez acabemos por nos tornar menos parcimoniosos quanto aos indivíduos aos quais nos ligamos quando conhecemos pessoas como Celeste, cujos rostos parecem ilustrar o verso famoso do poema de Walt Whitman “Canção de Mim Mesmo”: “Eu sou grande, eu contenho multidões.”