Texto Gonçalo Pereira Fotografia Augusto Salgado e Arquivo do Museu de Marinha
O navio Patrão Lopes numa imagem datada de 1932.
Pelas nove horas da manhã, “dolorosamente abatido”, como escreveu a imprensa da época, o capitão-tenente Fernando Monteiro de Barros dá a ordem que nunca proferira em mais de duas décadas de navegação: manda a guarnição abandonar o navio de salvamento Patrão Lopes. Desde a noite do dia anterior, 29 de Fevereiro de 1936, que, em frente de Paço de Arcos, a escassa distância da Torre do Bugio, luta-se contra a intempérie, o azar, os “redemoinhos fortíssimos” e a violência da corrente.
Na noite do dia anterior, tudo parecia indicar que o Patrão Lopes acumularia mais um salvamento bem-sucedido à sua longa lista de proezas que o tornaram célebre de Viana do Castelo a Sagres. O velho navio de fabrico alemão saíra em socorro do grande batelão Franz, fortemente abalado pela tempestade. A tarefa de reboque fora executada com a mestria tradicional, mas à entrada da barra de Lisboa o Patrão Lopes fora arrastado pelo batelão, saíra do canal de navegação e os dois encalharam no areal do Bugio. Perdido, o Franz afundara-se primeiro, mas os seus mastros perfuraram acidentalmente o casco do navio de salvamento, comprometendo-o também. Seria uma questão de horas até ao naufrágio.
“Emocionado até às lágrimas e acompanhado pelos seus homens, [Monteiro de Barros] saiu então, mas foi o último, como é da tradição.”
Nessa manhã, o salva-vidas Almirante Castilho assiste a guarnição, enquanto as vagas sacodem perigosamente o navio encalhado no areal do Bugio, com um rombo no casco. Um a um, os homens saem. Uma onda mais violenta quase esmaga um marinheiro contra o casco. Monteiro de Barros anuncia que fica com a sua embarcação, motivando vivos protestos dos seus homens. “O mar rebentava com fragor de encontro ao costado”, escreveu o jornalista Maurício de Oliveira, principal fonte destes acontecimentos. Três marinheiros já a bordo de um salva-vidas saltam de novo para o Patrão Lopes. Em nome da marinhagem, pedem ao comandante que abandone o navio. “Emocionado até às lágrimas e acompanhado pelos seus homens, [Monteiro de Barros] saiu então, mas foi o último, como é da tradição.” O Patrão Lopes, esse, está condenado e ali ficará mais cinco dias, ao sabor das ondas e das marés, permitindo a recuperação do seu valioso recheio, incluindo a caldeira, bombas e restante aparelhagem para salvamento de navios encalhados que vale à época cerca de quatrocentos contos.
Nos dias 4, 5 e 6 de Março de 1936, membros da tripulação do navio procederam ao salvamento de equipamentos de bordo.
“Depois, foi esquecido”, diz Jorge Russo, do CINAV (Centro de Investigação Naval da Marinha). A sua história tornou-se aos poucos difusa junto da maioria da comunidade científica e os poucos investigadores que tinham tomado contacto com o caso desconheciam a localização correcta do destroço. O nome do rebocador permaneceu na memória oral e era conhecido de pescadores, mergulhadores e surfistas do Cachopo Sul, na entrada da barra do estuário do Tejo. Há até uma onda, popular entre os surfistas da região, que se forma no local exacto por cima do destroço. “Simplesmente, ainda ninguém cruzara esse conhecimento com a história naval documentada.
O Patrão Lopes naufragou na barra de Lisboa a 1 de Março de 1936 num dia de temporal, muito diferente das condições de dia 6, quando esta fotografia foi captada.
Avançamos no tempo. No Verão de 2015, a campanha M@rbis, de mapeamento da biodiversidade marinha portuguesa, ao abrigo da Estrutura de Missão de Extensão da Plataforma Continental Portuguesa, prepara alguns cruzeiros ao largo da costa de Cascais. Conhecendo a riqueza arqueológica da zona, uma vez que têm a seu cargo a carta arqueológica subaquática de Cascais (ProCasc), Jorge Freire e António Fialho integram os trabalhos. No primeiro mergulho, a uma profundidade entre 7 e 15 metros, ficam boquiabertos. “Vimos dois destroços quase completos no fundo”, conta Jorge Freire, investigador do Centro de História de Aquém e d’Além-Mar e bolseiro da National Geographic Society, cujo financiamento ajudou a custear os trabalhos. “Quando chegámos à superfície e discutimos o assunto com alguns pescadores locais, eles não só não estranharam, como referiram de imediato o nome Patrão Lopes”, conta.
Imagem do navio de salvação Patrão Lopes e do batelão Franz, no fundo junto do Bugio. A imagem foi obtida através do levantamento de sonar de multifeixe, pelo LARSyS-ISR/IST do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa, com coordenaçãod e António Pascoal, Luís Sebastião e João Quintas.
“Talvez porque esteve quase todo coberto pela areia, o navio encontra-se em excelente estado de conservação. Fizemos as medições básicas e verificámos que havia pouca dispersão dos materiais associados ao navio.”
Pouco depois, nos primeiros dias de Junho, com apoio da Câmara Municipal de Cascais e da Marina de Oeiras de onde largou a bordo de uma embarcação da Escola Naval, uma equipa de arqueólogos iniciou a descida aos destroços. “Teoricamente, este sítio é muito batido e desprotegido e esperávamos destroços mal conservados, como os que estão encostados à costa norte”, explica Augusto Salgado, investigador do CINAV, que deu de imediato início a um conjunto de acções de investigação por se tratar de um navio que pertenceu à Marinha Portuguesa. “Talvez porque esteve quase todo coberto pela areia, o navio encontra-se em excelente estado de conservação. Fizemos as medições básicas e verificámos que havia pouca dispersão dos materiais associados ao navio.” Pouco depois, o Laboratório de Robótica e Sistemas de Engenharia do Instituto Superior Técnico juntou-se ao projecto, permitindo o levantamento multifeixe de todo o fundo e a criação de um mapa digital dos destroços.
Faltava a identificação. Em arqueologia subaquática, é raro poder afirmar com certeza absoluta a identidade de um destroço. “Para isso, quase seria preciso encontrarmos a placa com o nome do navio”, brinca Augusto Salgado. Mas as pistas circunstanciais são consideráveis. “As medições básicas mostram que o navio principal é ligeiramente maior do que o Patrão Lopes, mas isso é normal porque ele está quebrado no fundo. Além disso, encontrámos os dois destroços associados um ao outro, o que é compatível com a narrativa de 1936. A localização a noroeste do baixio onde se eleva a Torre do Bugio é igualmente sugestiva”, prossegue o investigador.
Após 79 anos submerso, o navio tornou-se um importante ponto de biodiversidade marinha, encontrando-se actualmente coberto de mexilhões e anémonas, para além de fornecer protecção a diversas espécies.
Outros elementos contextuais fortalecem a interpretação: “Não encontrámos maquinaria no destroço, o que é absolutamente raro. Não me lembro de ter mergulhado em destroços do século XX sem encontrar máquinas ou caldeira. Aqui, não havia nada porque houvera tempo de remoção”, acrescenta Jorge Russo. E por fim as duas últimas evidências apresentadas por Jorge Freire: “A carga do batelão Franz seria pedra e o fundo está de facto repleto de paralelepípedos. E os seus mastros estão todos por baixo do navio rebocador. Se só tivéssemos um destroço, apresentaríamos o caso como uma hipótese, mas aqui temos quase certezas.”
O Patrão Lopes nem sempre se chamou assim e essa é a segunda narrativa extraordinária que este projecto, apoiado pela National Geographic Society, ajudou a revelar. Construído em Rostock (Alemanha) em 1880 pela Rostocker Act. Ges., o navio foi baptizado como Newa. Tinha 49 metros de comprimento e uma tripulação de 63 elementos. Deslocava 467 toneladas brutas. Em 1916, na véspera da declaração de guerra entre o governo português e as potências do Eixo Central, o navio é uma das 35 embarcações refugiadas em Lisboa. “Pela investigação das entradas no Porto de Lisboa, sabemos que nos primeiros dias de Agosto de 1914 recebera ordens para regressar com urgência de Gibraltar e refugiar-se em Lisboa. Aqui, ficou durante pouco mais de um ano”, diz Augusto Salgado.
O último capítulo da vida atribulada do Patrão Lopes será agora escrito.
Os submarinos da marinha imperial alemã eram cada vez mais eficazes e os navios apresados em portos nacionais (72 no total, 70 alemães e 2 austro-húngaros) eram meios desejados pelas nações aliadas. Um livro recente do historiador António Telo (“A Grande Guerra, Um Século Depois”) comprova que os políticos intervencionistas portugueses utilizaram-nos como forma de pressão junto do governo inglês para entrar no conflito que devastava a Europa há mais de um ano. O apresamento constitui o pretexto para a declaração alemã de guerra. Com efeito, em 24 de Fevereiro de 1916, o Newa é requisitado e ocupado pela Marinha Portuguesa. Ao contrário da maioria dos outros navios, é mantido na Armada portuguesa e rebaptizado como Patrão Joaquim Lopes, depois Patrão Lopes, em singela homenagem a um herói de muitos salvamentos na barra de Lisboa.
Durante a guerra, o Patrão Lopes integra missões bélicas, como o reboque da barca Portugal, do Porto até Bordéus, tendo no caminho disparado contra um submarino alemão. Após o fim do conflito, participa em numerosos salvamentos, distinguindo-se por ser, na feliz definição de Maurício de Oliveira, o “navio que saía quando os outros entravam”. Semanas antes, fora aliás o Patrão Lopes que valera ao Alviela e ao Aviz quase na mesma zona onde malogrou no último dia de Fevereiro de 1936.
À entrada do ano em que se comemora o centenário da participação portuguesa na Primeira Grande Guerra, quis o destino que o único sobrevivente do casus belli que levou à entrada formal do nosso país no conflito tenha aparecido mesmo a nossos pés, sepultado no areal que tão bem conheceu. O último capítulo da vida atribulada do Patrão Lopes será agora escrito.
A guarnição do Patrão Lopes, na altura sob o comando do primeiro-tenente Fernandio Amor Monteiro de Barros (sentado ao centro e de bigode), que comandou o navio atè à sua perda em 1936. Na fotografia também é possível ver o Nero, mascote do navio.