Há exactamente 75 anos, um submarino alemão foi afundado a sul da ilha do Pico, apesar de se encontrar em águas portuguesas neutrais. O destroço foi localizado a mais de oitocentos metros de profundidade.
Texto Gonçalo Pereira Rosa
Com capacidade para mergulhar até mil metros, o submersível tripulado Lula1000, da Fundação Rebikoff-Niggeler, detectou em Setembro passado o destroço de um submarino alemão afundado em 1942. Fotografia Fundação Rebikoff-Niggeler.
O Verão estava quase no fim. Kirsten e Joachim Jakobsen, dois engenhosos alemães radicados na ilha do Faial há quase duas décadas, continuavam a mergulhar no Atlântico profundo a bordo do Lula1000. Bem abaixo da superfície, as estações do ano e as oscilações do clima são imperceptíveis, e os dois Lulas – o nome carinhoso que muitos açorianos utilizam para descrever este casal que se apaixonou pelo arquipélago dos Açores e aqui conduz pesquisas oceanográficas e filmagens de profundidade – mantinham a crença de que, mais cedo ou mais tarde, o objecto da sua investigação apareceria.
13 de Setembro, terça-feira. Kirsten e Joachim preparam o seu submarino tripulado para novo mergulho a sul da ilha do Pico.
Para trás, ficaram meses de trabalho de campo incansável, com um levantamento batimétrico multifeixe e varrimentos de sonar, procurando detectar irregularidades no fundo do mar.
O Lula1000 regista melhoramentos consideráveis relativamente à versão anterior, o Lula500. Tem capacidade para mergulhar a maiores profundidades e está agora articulado com um catamaran de superfície, equipado com um guincho que reboca um sonar de varrimento lateral. Para trás, ficaram meses de trabalho de campo incansável, com um levantamento batimétrico multifeixe e varrimentos de sonar, procurando detectar irregularidades no fundo do mar a sul do Pico. “Na área de pesquisa, existia uma zona montanhosa… que nos quebrava a cabeça”, lembra Kirsten. A estrutura tinha quase dois quilómetros de extensão e 120 metros de parede vertical, impedindo a utilização do sonar, pois a devolução rápida da onda acústica de volta para o equipamento arriscava-se a danificá-lo. “O Verão estava a acabar e decidimos fazer alguns mergulhos com o Lula1000 perto do sopé dessa formação”, acrescenta Joachim.
Numa manhã de nevoeiro - Nesta reconstituição dos eventos da madrugada de 1 para 2 de Fevereiro de 1942, o HMS Westcott lança as primeiras cargas de profundidade, cuja onda de impacte provocará fissuras estruturais no U-581. Impossibilitado de fugir para as profundezas e à mercê de nova ronda de explosivos, o comandante subirá à superfície e mandará afundar o submarino, depois de todos os tripulantes o abandonarem. Ilustração Anyforms.
Com vasta experiência em filmagens de profundidade, esta equipa da Fundação Rebikoff-Niggeler acumulara, no passado, várias observações singulares: captara em filme criaturas de grande profundidade, mal conhecidas ainda pelos biólogos marinhos; encontrara um enorme recife de coral frio em Agosto de 2013, a sul da ilha do Faial; anos antes, na baía de Angra do Heroísmo, ajudara a identificar os destroços do Angra G, no âmbito da Carta Arqueológica local. Agora, porém, perseguia um fantasma esquivo – um submarino perdido na Segunda Guerra Mundial.
O sonar instalado no submersível tem capacidade para produzir imagens acústicas a curta distância.
“A uma distância de cem metros, consegue captar um pneu depositado no fundo, mesmo que a água esteja completamente turva”, explica Joachim. Neste dia 13, os dois pioneiros decidiram… não ter agenda. Mergulharam apenas em busca de fauna de profundezas que ainda não tivessem filmado – “a partir dos 300 ou 400 metros, os peixes são completamente diferentes e sabe-se ainda tão pouco sobre eles”, acrescenta Kirsten.
Representação do insecto pintado na torre do U-581.
Um peixe aproximou-se dos focos HMI do Lula1000, obviamente fascinado com os quase dez mil watts de iluminação por ele produzidos. Era como um véu de luz intrometendo-se no mar escuro. “Seguimo-lo. A 800 metros de profundidade, vimos outro, igualmente novo para nós.” Assustado com a incursão, o animal fugiu para águas mais fundas, perseguido pelo estranho intruso amarelo metalizado. “Foi então que apareceu no sonar uma linha comprida. Parecia um charuto no ecrã”, conta Joachim. “Entreolhámo-nos.” Poderia ser?
Uma das raras fotografias da tripulação do U-581. O submarino era do tipo mais recente produzido pelos estaleiros de Hamburgo e fora lançado à água em 1941. Arquivo Dr. Wolfgang Pohl.
O Lula1000 navegava agora a 870 metros de profundidade. Aproximou-se do ponto indicado pelo sonar e viu uma estrutura invulgar e longilínea. “A seis metros de distância, percebemos que era construída pelo homem. E foi então que olhámos para os corais que cresciam em cima da arma. Foi muito emocionante. Comoveu-nos o coração, a alma, o cérebro.” Há quase 20 anos que tinham escutado pela primeira vez a saga deste naufrágio contada pela população do Pico e do Faial. A longa busca pelo U-581 terminara.
Inverno de 1942. A Batalha do Atlântico está no auge. As Marinhas de Guerra britânica e alemã medem forças em todo o globo, infligindo danos devastadores em qualquer embarcação desprotegida susceptível de afundamento. Nem os navios neutrais eram poupados, o que gerava pânico generalizado. Tirando partido da neutralidade portuguesa e pela sua posição estratégica no meio de um oceano em guerra, os Açores desempenharam um importante, mas ainda pouco estudado, papel no salvamento de muitos náufragos. O LLangibby Castle é um deles.
Na imagem, os hedgehogs o novo engenho explosivo transportado pelo HMS Westcott. Fotografia Museu Imperial da Guerra.
No dia 19 de Janeiro de 1942, aporta à Horta este transporte britânico, avariado e sem leme, depois de ter sido atacado no Atlântico por submarinos alemães. Sobreviveu apenas “porque o mau tempo e o denso nevoeiro fizeram desaparecer o barco inglês”, contará 25 anos mais tarde o sobrevivente alemão Wolfgang Pohl ao jornalista Rogério Gonçalves de O Telégrafo do Faial. Este aspirante tinha 19 anos em 1942 e regressou aos Açores em Setembro de 1967 para apurar se os seus camaradas de armas tinham sido sepultados no cemitério da Horta.
Da Grã-Bretanha, chegam um rebocador e três contratorpedeiros com o objectivo de escoltar o Llangibby Castle até Gibraltar.
O Llangibby Castle não é um petroleiro, nem transporta munições – transporta técnicos e material para Singapura, mas o destino conspirou para que fosse mais um alvo dos U-Boats. Nos dias seguintes, o navio britânico é reparado e certamente detectado pelos muitos agentes dissimulados que, trabalhando para cada uma das facções beligerantes, têm capacidade de avisar o respectivo Almirantado da situação. Da Grã-Bretanha, chegam um rebocador e três contratorpedeiros com o objectivo de escoltar o Llangibby Castle até Gibraltar. Estão armados com a mais moderna tecnologia de explosivos – “os hedgehogs, dispositivos extraordinários que condicionarão o rumo da guerra naval, pois explodem apenas por contacto com um submarino ou com o fundo do mar”, explica o historiador Jorge Russo, do Cinav (Centro de Investigação Naval).
No gráfico comparam-se as duas "máquinas" de guerra. Ilustração Anyforms.
Segundo o historiador Clay Blair (autor de “Hitler’s U-Boat War”), do lado alemão, há dois submarinos incumbidos pelo próprio almirante Karl Dönitz de completar a tarefa, mal o comboio naval saia da Horta: o U-402 e o U-581. “São submarinos do tipo mais comum (o tipo VII) e da série mais comum (a C)”, explica Jorge Russo. “São o último grito tecnológico da Alemanha, lançados à água há pouco mais de um ano.” O comandante Siegfried von Forstner posiciona o U-402 na saída norte do canal do Pico-Faial e o comandante Werner Pfeifer dispõe o U-581 a sul.
A escassa profundidade, o U-581 penetra mesmo na baía da Horta, em claro desrespeito pela neutralidade portuguesa. “A cidade da Horta (…), mesmo observada apenas pelo meu periscópio, parecia-me tão pacífica”, dirá Pohl em 1967. Pondera um ataque, mas acaba por abdicar de um acto bélico que seria extraordinariamente visível e controverso e recua para a sua posição à saída da toca, não adivinhando que, em breve, tornar-se-á uma presa.
Com capacidade para transportar dois a três tripulantes, o Lula1000 é o instrumento perfeito para investigação a elevadas profundidades. Mais maleável do que um ROV não tripulado, permite levar o olhar humano até à escuridão das profundezas. “Faz toda a diferença estar lá, manejá-lo, aproximá-lo dos pormenores. Não seria a mesma coisa observar o destroço através de um ecrã”, diz Joachim Jakobsen. Esta ferramenta de observação submarina tem uma vigia de plexiglas, que mede 1,40m de diâmetro e 14cm de espessura. Fotografia Dave Mothershaw.
Na noite de 1 para 2 de Fevereiro, aproveitando a Lua cheia, a escolta britânica começa a saída. Dois contratorpedeiros, o Westcott e o Croome, saem na direcção do U-581; o restante, o Exmoor, encaminha--se para o U-402. Pfeifer, com a ousadia dos seus 29 anos, dispara um torpedo contra os britânicos, mas falha os alvos. Procura submergir, mas uma avaria na válvula de exaustão do combustível ocorre no pior momento, inundando a sala das máquinas e arrastando a popa perigosamente na direcção do fundo. Pfeifer reage rapidamente, rebentando os tanques de lastro, de forma a recuperar controlo sobre o submarino. Toda esta actividade ruidosa é escutada pelos sonares dos dois contratorpedeiros ingleses.
O caçador é surpreendido. São cinco horas da manhã.
O último grito dos estaleiros de Hamburgo afunda-se.
Com as baterias quase esgotadas, o U-581 está perto da superfície. Tenta submergir, mas é um alvo fácil a escassa profundidade. O Westcott projecta várias cargas de profundidade, que rebentam perto, provocando danos estruturais insanáveis no U-581. Numa rápida avaliação dos estragos, Pfeifer decide evacuar o submarino e manda abrir todas as válvulas. O Westcott muda o rumo e investe agora como um touro na arena sobre o predador imobilizado. Os alemães saltam para a água segundos antes de o contratorpedeiro inglês irromper pelo casco do submarino. O último grito dos estaleiros de Hamburgo afunda-se.
Dos 47 tripulantes a bordo, 42 saltam para a água e são aprisionados. Quatro morrem por acção das explosões ou dos tiros de metralhadora. E um, Walter Sittek, antigo capitão de um barco de pesca do mar do Norte, protagoniza um acto incrível de destreza física e resistência: praticamente despido para poder nadar melhor, mantendo apenas uma arma presa à cintura, foge aos captores e nada quatro milhas em cerca de três horas, chegando a Porto do Guindaste, onde é socorrido por dois picarotos e levado para segurança. Será depois interrogado pelas autoridades portuguesas e conseguirá viajar de regresso à Alemanha, onde lhe será atribuído novo submarino.
O U-581 dirige-se velozmente até ao fundo e ali permanece sem ser visto durante 74 anos.
O U-581 dirige-se velozmente até ao fundo e ali permanece sem ser visto durante 74 anos.
O incidente não faz correr tinta. A Censura veta notícias na imprensa portuguesa sobre o assunto, com excepção de duas curtas “breves” nos jornais do Pico e do Faial. O representante diplomático alemão protesta, alegando que o ataque teve lugar dentro do limite das três milhas de águas territoriais portuguesas, constituindo portanto um acto ilegal. “Esquece-se de mencionar que o seu submarino tinha penetrado no próprio porto da Horta”, comenta Augusto Salgado, investigador do Cinav. “Os ingleses também não devem ter agido porque tinham noção do ponto onde ocorrera o ataque.”
No dia 16 de Fevereiro, o primeiro-tenente António Morgado Belo, capitão do porto da Horta, envia um relatório à Majoria General da Armada, com a descrição dos eventos. No relato minucioso, Belo afirma estar “plenamente convencido, não só pelas declarações do oficial alemão como pelas investigações feitas no mar e no local de desembarque, (…) que o submarino foi afundado fora das águas territoriais.” É uma flagrante imprecisão: Kirsten Jakobsen confirma que o destroço se encontra a 2,1 milhas da costa e seria impossível uma deriva que o levasse para mais perto da costa. Porque teria o capitão de porto sugerido tal distorção num relatório confidencial?
"Lisboa estava satisfeita com a sua neutralidade e não alimentou controvérsias. Mas estou convencido de que o capitão de porto sabia perfeitamente que o combate se travara nas águas territoriais.”
“Só posso especular”, diz Augusto Salgado. “Mas não interessava ao governo português, num momento decisivo da guerra, alimentar um conflito diplomático com qualquer uma das partes. Lisboa estava satisfeita com a sua neutralidade e não alimentou controvérsias. Mas estou convencido de que o capitão de porto sabia perfeitamente que o combate se travara nas águas territoriais.”
Para além da resolução deste conflito diplomático… 75 anos depois, a descoberta tem outras implicações. “Durante o meu primeiro mergulho no Lula, fui-me preparando ao longo dos 40 minutos da descida”, conta Catarina Garcia, arqueóloga do Centro de História d’Aquém e d’Além-Mar (CHAM) e coordenadora científica desta investigação que apresentou à tutela um pedido de autorização para um projecto de investigação programada que contaria, nesta primeira fase, com a monitorização de uma área de pesquisa em busca da identificação do destroço.
No seu acompanhamento do trabalho dos dois investigadores da Fundação Rebikoff-Niggeler na monitorização da área e da descoberta de Setembro, a arqueóloga visitou o local com desconfiança metódica. A bordo do Lula1000, observou o submarino de todos os ângulos possíveis – não é exequível circulá-lo por completo, pois ele encosta praticamente à parede vertical que, durante décadas, lhe serviu de almofada. Constatou a compatibilidade de todas as características visíveis com o que se conhece do submarino alemão. Avistou as duas partes, separadas por cerca de 25 metros, resultantes de uma fractura que tanto pode ter ocorrido logo à superfície, com a acção do Westcott, ou durante a descida para o fundo. “Tudo o que vimos, incluindo a posição do destroço relativamente perto das coordenadas indicadas por portugueses, ingleses e alemães em 1942, é compatível com o U-581. Mas estamos apenas no início…”
Diagrama Anyforms. Fontes: “Relatório do capitão do porto da Horta para a majoria general da armada” (1942); “Hitler’s U-Boat War”, Clay Blair.
Fazendo o papel de advogado do diabo, sentado em Lisboa e tendo apenas observado algumas fotografias e escassos segundos de vídeo recolhidos pelo Lula1000, Augusto Salgado aponta algumas variáveis a identificar: “Todos estes submarinos tinham números de série na hélice. Esses números retirariam qualquer dúvida. As estruturas visíveis são compatíveis com um submarino alemão de 1942, mas construíram-se mais de setecentos quase iguais. E alguns perderam-se no mar sem deixar rasto. Diria que há 75% de hipóteses de este ser o U-581.”
Há ainda a questão… do insecto. Muitos submarinos alemães pintavam emblemas não oficiais na torre, escolhendo silhuetas com um simbolismo próprio. “Não tinha qualquer papel táctico ou de outro tipo, era só simbólico”, diz Augusto Salgado. E o U-581 tinha um piolho-caranguejo pintado que talvez possa ser identificado na torre, por baixo da camada de corrosão, de concreções e de colonizações biológicas. Catarina Garcia crê que são visíveis alguns pormenores desse registo nas fotografias da torre.
O U-581 tinha um piolho-caranguejo pintado que talvez possa ser identificado na torre, por baixo da camada de corrosão, de concreções e de colonizações biológicas.
A casa das máquinas desta investigação está agora a ser ligada. “Falta tudo”, resume Joachim Jakobsen. “Queremos filmar todo o submarino para construir um fotomosaico em 3D e recolher o máximo de informação. Estamos a concluir a instalação de braços com holofotes, capazes de iluminar áreas ainda maiores. Mas não tenho dúvidas de que é o U-581 – não há mais nenhum indicado para esta região.”
Catarina Garcia vê na descoberta um campo quase interminável de possibilidades científicas. “Está ali um submarino muito importante para a história dos Açores – um testemunho de uma época de conflito mundial, que testou os limites da neutralidade portuguesa. Essa história foi integrada pelas famílias do Pico e do Faial na sua própria identidade.” Embora quase não restem sobreviventes entre as testemunhas da época, Manuel Paulino Costa, em “U-Boats nos Mares dos Açores”, conduziu várias entrevistas preciosas até 2011. Esses testemunhos orais serão agora estudados.
Ao mesmo tempo, o U-581 é um laboratório vivo, um relógio exacto de um processo de colonização biológica no mar profundo. “Estudando-o, os biólogos poderão perceber melhor como se processa essa colonização e usá-la como padrão de comparação com outros destroços dos quais se saiba menos”, diz Catarina Garcia. Os processos de corrosão e as razões que permitiram que certas tintas estejam hoje incólumes enquanto outras foram cobertas de concreções também suscitam curiosidade.
Esta é por fim uma oportunidade perfeita para estudar um recife de coral artificial a grande profundidade e a uma escala temporal alargada.
Tombado no fundo há 75 anos, o submarino mantém as estruturas metálicas intactas – apenas a madeira desapareceu. Algumas áreas da torre mostram amplos processos de colonização biológica por corais de profundidade e esponjas. Fotografia Fundação Rebikoff-Niggeler.
“É uma oportunidade científica sem par, “ diz Kirsten Jakobsen. “Os corais de águas frias são ecossistemas vulneráveis devido ao seu esqueleto calcário. Sítios de abundância têm elevado interesse ecológico. O grau da vulnerabilidade tem muito que ver com a taxa de crescimento, sendo que algumas espécies são de crescimento extremamente lento. Conhecendo-se neste caso o ‘ponto zero’ da colonização (Fevereiro de 1942), este sítio é um tesouro quanto à informação sobre corais de águas frias e outras espécies que colonizaram o casco.”
“Acima de tudo” – conclui Catarina Garcia – “o destroço é uma memória de dor e sofrimento, onde se perderam vidas. É um processo histórico que se encerrou ali. Não podemos em qualquer circunstância esquecer que não está ali apenas património cultural.”
Leia a nossa entrevista ao último sobrevivente do U-581 aqui.