No Mosteiro do Salvador de Paço de Sousa, em Penafiel, conserva-se o túmulo de Egas Moniz. É um dos monumentos mais singulares da arquitectura e escultura românicas. Fotografia Vítor Ribeiro.
Doze concelhos do Norte de Portugal uniram esforços para preservar um tesouro que vem desde os alvores da nacionalidade. Este tesouro é de pedra. Pedra que conta histórias.
Texto Paulo Rolão
O rio Douro está coberto por uma neblina que se adensa à medida que a chuva miudinha de Maio cai de um céu forrado de cinzentos. Alheia às indecisões do clima, emerge a Igreja de São Martinho de Mouros, no concelho de Resende, com a sua imponente torre-fachada que imprime um ar medievo a tudo o que a rodeia. Dona Dulce é a zeladora do templo, a guardiã dos segredos medievais. O padre Excelso Carlos Ferreira aguarda-nos junto à capela-mor. No interior, escondido de todas as marcas do presente, longe dos postes telefónicos, dos automóveis ou do asfalto, o relógio do tempo começa a recuar.








De súbito, irrompe pela porta semiaberta um grupo de crianças que, tolhidas pela surpresa de ver visitas, refreiam o entusiasmo por segundos. Com bonomia, o padre sorri e explica que são jovens das redondezas que ali vão à catequese. Elsa Marques da Silva, historiadora de arte e membro do Serviço Educativo da Rota do Românico, aborda um dos jovens que se detém diante das pinturas já carcomidas pela idade num dos recantos da nave central: “Sabes quantos anos tem esta igreja?”, pergunta desta vez, como fará muitas mais vezes ao longo da visita às igrejas, castelos, mosteiros, torres ou ermidas.
Ouço o rapaz balbuciar, a medo: “Muitos.” Elsa confirma com infinita paciência: “Sim, muitos. Quase oitocentos anos.” O jovem mostra-se surpreso, quando é confrontado por nova pergunta da minha guia: “E sabes quem foi o primeiro rei de Portugal?” A resposta sai de chofre: “Foi Dom Afonso Henriques!” O padre continuava a sorrir e Dona Dulce mantinha os adolescentes debaixo de olho, enquanto compunha os ramos de flores nos altares laterais. Pela mente dos adolescentes passa talvez a figura do rei caminhando entre aquelas quatro paredes. A pedra, já verão, tem esse poder: evoca histórias.Damos outro salto no tempo e no espaço. Recuamos cerca de um século e avançamos 75 quilómetros até ao Mosteiro do Salvador de Paço de Sousa, no concelho de Penafiel. Como outros territórios em redor, Paço de Sousa encarna a génese da fundação da nacionalidade. O templo é, juntamente com os mosteiros de Pombeiro e de Travanca, um dos maiores representantes da arquitectura românica da região e é com respeito que se desfila pela igreja de três naves e com admiração que se repara na bela rosácea acima do pórtico. Todavia, é num canto mais esconso que se encontra o foco de atracção dos visitantes que acorrem aqui: um túmulo funerário ricamente trabalhado em pedra. É um documentário perene, finamente burilado. O guião, aliás, é identificado pela maioria dos visitantes, pois aquelas figuras são sucessivamente reproduzidas nos manuais de História de Portugal. A lenda, essa, é conhecida de cor.
O Mosteiro do Salvador de Paço de Sousa encarna a génese da fundação da nacionalidade.
Dom Afonso Henriques, conde de Portucale, tinha como tutor Egas Moniz, um homem cuja linhagem se perfilava entre as mais importantes famílias da região do Entre-Douro-e-Minho, então dependente do reino de Leão. Quando Dom Afonso VII cercou Guimarães e exigiu que o jovem rebelde lhe prestasse vassalagem, Egas Moniz dirigiu-se ao rei leonês e prometeu-lhe a submissão de Afonso Henriques.
O futuro rei, porém, invadiu a Galiza e venceu a batalha de Cerneja. Fiel à sua palavra, Egas Moniz dirigiu-se com a família à presença de Dom Afonso VII, descalços e com cordas ao pescoço, dispondo as suas vidas pelo incumprimento da promessa. O rei leonês comoveu-se, perdoou-o e ordenou-lhe que regressasse em paz. Como todas as lendas, a realidade foi construída com sucessivas camadas ideológicas, mas a história… ficou para a História. E cruza-se hoje, indelevelmente, com a Rota do Românico.
Capitéis e arquivolta na Igreja de Santa Maria Maior de Tarouquela, no concelho de Cinfães. Fotografia Digisfera/Rota do Românico.
Egas Moniz era membro da família dos Ribadouro, uma das cinco mais importantes da região, e foi com os contributos dessas famílias que se construíram os alicerces do reino emergente na Península Ibérica. O Mosteiro de Paço de Sousa, que influenciou a maior parte dos monumentos da região, foi custeado por Egas Moniz de Ribadouro com o intuito de ali ser sepultado. Naquele canto obscuro, o seu túmulo narra essa história, com figuras de pedra.
Na mesma linha dos Ribadouro, outras famílias instaladas no Entre-Douro-e-Minho detinham poder económico e influência, como os Sousas (ou Sousões), os Baiões e os senhores da Maia e de Bragança. Foram estes fidalgos que ajudaram a consolidar os alicerces da portugalidade. Durante anos, além dos bispos e monges, granjearam prestígio e privilégios, erguendo igrejas, mosteiros, capelas, ermidas, castelos, torres, pontes, paços e solares um pouco por todo o território do Tâmega e Sousa – verdadeiros símbolos de poder, fortuna e crença.
O estilo românico, de beleza quase crua, inspirado arquitectonica e espiritualmente na Abadia de Cluny, em França, implantou-se sobretudo em terras nortenhas e, hoje, os concelhos limítrofes do Porto são livros de história construídos em pedra. É aqui, no Entre-Douro-e-Minho, que estão assinalados os caminhos principais da arte românica. Do Mosteiro de Pombeiro à Torre de Vilar, do Marmoiral do Sobrado à Igreja de Tarouquela, do Mosteiro de Travanca ao Castelo de Arnoia, um novo estilo consolidou-se na arte e verteu-se no arrojo de técnicas, nas fachadas, nos pórticos, nas abóbadas, nos arcos de volta perfeita ou nos capitéis das colunas. O românico, aqui, emana dos poros do granito. Respira e está vivo. A Idade Média não tem de ser a longa noite de mil anos.
Em história, raramente há coincidências. Não foi por acaso que a Rota do Românico assentou arraiais nesta região, pois o estilo expressa o enquadramento geográfico e social que lhe esteve na génese. “O axioma da história da arte parece aqui verosímil: através da forma, temos de certo modo acesso ao modelo de sociedade”, diz Rosário Machado, a directora da Rota.
A Idade Média em Portugal, apesar das diferenças relativamente aos outros reinos europeus, obedeceu à tradicional relação feudal, em que os senhores da nobreza, que possuíam grandes latifúndios, ofereciam protecção à população e, em troca, recebiam o trabalho na terra e parte da produção. Numa região de montanhas e vales, sulcada por rios vigorosos, estavam criadas as condições para que os terrenos férteis atraíssem o assentamento de população.
Os núcleos populacionais estabeleciam-se em redor de uma igreja e, como forma de registar o seu poderio, as famílias nobres recrutaram mestres-de-obras, escultores, artesãos e canteiros para que estes executassem um templo religioso que, rapidamente, congregasse a população local.
Infografia Anyforms
O fervor religioso era uma das bases fundamentais da cultura. Com as igrejas, vieram os mosteiros e, com eles, as ordens monásticas, que chegaram a rivalizar com a nobreza. É o caso de um dos mais emblemáticos monumentos da região, o Mosteiro de Santa Maria de Pombeiro, encomendado pela família dos Sousões para que, além de panteão familiar, albergasse monges beneditinos. Ao mesmo tempo, emitia uma poderosa mensagem política: indicava que a extensão das terras da família ia até Vila Real.
É por estes montes e vales que pululam os mais diversos elementos da arte românica. Alguns são singelos, meros testemunhos da vontade de um encomendante não muito abastado, mas cioso de deixar uma marca no território; outros são exuberantes, consagrando na pedra aquilo que hoje chamaríamos os sinais de riqueza de quem os ordenou. Perante a sua exuberância e diversidade, começou a formar-se no final do século XX a ideia da criação de uma entidade que zelasse pelo património. “O início foi árduo. Havia que inventariar e fazer uma catalogação do que existia e apontar para os casos mais urgentes que necessitavam de obras de restauro”, refere Elsa Marques da Silva, também ela especialista em conservação e restauro. “Houve casos, mesmo, em que tivemos de retirá-los da densa vegetação que os cobria e criar um espaço que permitisse visitas.”
Na realidade, tudo começou no fim da década de 1990 quando decorreu, no território do vale do Sousa, um projecto de desenvolvimento que apostou no românico como mecanismo de divulgação da região. “O primeiro passo foi chamar o Instituto Português do Património Arquitectónico (IPPAR) e a Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), para uma sondagem”, conta Rosário Machado. O segundo passo foi identificar os monumentos mais importantes e aqueles que necessitavam de intervenção urgente. Rosário Machado aponta que “no terceiro quadro comunitário, a Rota estava no topo das prioridades. Surgiram verbas orçamentais, foram assinados protocolos e houve o apoio de autarcas que, em alguns casos, não chegaram a ver o trabalho desenvolvido, pois já tinham concluído o mandato”.
A ideia da Rota do Românico arrancou em 1998 e ganhou corpo em 2006.
A ideia da Rota do Românico arrancou em 1998 e ganhou corpo em 2006, inicialmente como um projecto de seis municípios do Vale do Sousa. Em 2010, a expansão alargou-se aos vales do Douro e do Tâmega, com a entrada de mais seis concelhos. Rosário Machado não tem dúvida em afirmar que “somos reconhecidos local e internacionalmente. O caminho foi estruturado e criámos raízes profundas que passaram pela integração da comunidade e pela divulgação pedagógica”. O caminho futuro continua claro para a directora da Rota: “Criar condições para o alargamento da Rota do Românico a toda a região Norte e manter, preservar e recuperar os monumentos que já a integram.”
E há ainda a questão da identidade. Em muitos concelhos, a igreja local foi a força motriz do povoamento e criou laços identitários inquebráveis. Há alguns anos, nas imediações da Igreja de São Pedro de Abragão, em Penafiel, em várias construções detectou-se um conjunto considerável de materiais provenientes da igreja original. A oportunidade de investigação era evidente: ali podia perceber-se in loco como se reutilizavam pedras com inscrições ou ornamentos escultóricos. Era preciso remover os materiais e estudá-los. Foi chamada a população para discutir o assunto e assinado um protocolo que garante o regresso ao concelho das pedras de Abragão, com a construção do Centro de Interpretação da Escultura Românica, cujo projecto está já a ser desenvolvido. A solução foi negociada. Não foi imposta. Em nome das pedras com história e das pessoas que por elas se definem.