Dois paleontólogos portugueses parcialmente financiados pela National Geographic Society escavaram em Moçambique para descrever a história dos antepassados dos mamíferos.
Texto Rui Castanhinha e Ricardo Araújo ilustração Fernando Correia
Com base nas descobertas de campo e na reconstituição da paisagem, recriámos uma cena do Pérmico, durante a qual uma fêmea de sinapsídeo protege a sua cria (em baixo). Outros animais vagueiam pela paisagem de coníferas e Glossopteris. Ilustração Fernando Correia (Universidade de Aveiro).
Os espíritos estão inquietos, é preciso ter cuidado!” Ao cair da noite, depois de regressarmos à aldeia, algo derrubou os fósseis que ficaram no campo envolvidos em casacos de gesso. Voltámos à província de Niassa para estudar fósseis com mais de 250 milhões de anos, mas primeiro há que acalmar os nossos antepassados. Não podemos revolver a terra sem prestar tributo a quem já partiu. Esse respeito obriga a uma cerimónia em sua honra.
Numa sociedade matriarcal, é a rainha local que nos explica: “Temos culpa por não termos feito ainda a cerimónia, os espíritos estão sempre atentos.” Nessa mesma noite, juntamo-nos em sua casa para que algumas galinhas pudessem ser sacrificadas e comidas pela comunidade. Toda a aldeia é convidada. Os olhos dos mais velhos reflectem as chamas do lume ali perto. Parte em português, parte em jáua, as frases são híbridas mas, mais importante do que dominar a gramática da língua local, sentimos agora que estamos entre iguais. Um prato com xima e ussipa é objecto de comunhão. Fomos aceites. Amanhã será um novo dia. Está em curso o Projecto PalNiassa, uma expedição paleontológica.
É na província mais remota de Moçambique, no Niassa, que surgem terrenos do Pérmico repletos de fósseis.
Os fósseis afloram à superfície em plena savana africana e são meticulosamente escavados, cuidados e acondicionados. É na província mais remota de Moçambique, no Niassa, que surgem terrenos do Pérmico repletos de fósseis. Um punhado de outros países contíguos como a África do Sul, a Tanzânia, o Malawi e a Zâmbia partilham os mesmos fósseis. No seu conjunto, a este tipo de terrenos chama-se karoo. As rochas do karoo encerram em si provavelmente aquele que foi o capítulo mais dramático e misterioso da história da vida na Terra. Nos estratos sedimentares datados de há 250 milhões de anos (correspondentes ao final do Pérmico), encontramos algo extraordinário. Cerca de 95% de todas as espécies fósseis desaparecem subitamente do registo geológico por razões ainda não claras. Esta extinção em massa foi bem mais extensa do que a de há 65,5 milhões de anos que provocou o fim de quase todos os dinossauros. No Niassa, estão os sedimentos que preservaram os animais que viveram imediatamente antes da extinção pérmica. Nos estratos imediatamente acima, portanto mais recentes, não há quase nada. O significado é evidente: poucas espécies sobreviveram.
As fronteiras de Moçambique foram traçadas em torno de um turbilhão de formações geológicas onde se cruzam períodos muito distintas, contendo diferentes fósseis de vertebrados. Esses animais viveram em alturas críticas para o estudo da evolução da vida na Terra e aqueles que foram recolhidos até à data são sinapsídeos.
Este grupo de animais esteve à beira da extinção várias vezes, mas sobreviveu e actualmente é representado pela ordem da qual fazemos parte: os Mammalia.
Este grupo de animais esteve à beira da extinção várias vezes, mas sobreviveu e actualmente é representado pela ordem da qual fazemos parte: os Mammalia. Desde o maior animal da Terra, a baleia-azul, passando pelo minúsculo rato-do-campo, até ao morcego que se alimenta de insectos, somos todos mamíferos. De igual forma, tanto quem escreveu este texto como quem o está a ler, pertence a um grupo de animais cuja origem remonta ao Pérmico. Por outras palavras, partilhamos ancestrais comuns com os sinapsídeos moçambicanos que voltam agora à vida. Os fósseis de Moçambique são portanto primos de todos os mamíferos vivos.
Com o objectivo de clarificar esta árvore genealógica dos mamíferos, a expedição PalNiassa iniciou-se em 2009 com uma campanha de prospecção inicial durante a qual se recolheram os primeiros fósseis.
Depois da exploração no calor tórrido de Tete, rumámos ao Niassa para junto do grande lago de azul profundo. Aqui, como em muitas paisagens de vegetação luxuriante, a identificação de fósseis é mais difícil do que encontrar uma agulha no palheiro. Se não soubermos o que procurar e que indícios devemos ter em conta, a sorte raramente sorri. Apoiados nos mapas, nas cartas topográficas e nos estudos científicos anteriores, batemos o vale do rio de uma ponta a outra. Dia após dia a frustração aumentava. A equipa estava desmoralizada. Já ninguém acreditava. À noite, o frio do vale só era disfarçado pelo calor da fogueira enquanto ouvíamos os rituais de tambores e cânticos do nhago jáua. Em desespero de causa, voltámo-nos para o velho guia da expedição.
Fotografado em Portugal, este fóssil é património moçambicano. O projecto PalNiassa tem permitido a identificação de novos fósseis do Pérmico na região. Fotografia Alexandre Vaz.
– O que fazemos? Faça-nos uma oração.
Bambo, o nosso guia, o velho régulo Luís Macuango, ex-combatente que se refugiou na Tanzânia durante a guerra, proferiu palavras simples:
– Amanhã vamos andar bem.
Aquela fase, proferida por um rosto sulcado por mil rugas, estarreceu-nos pela sua simplicidade. No dia seguinte, fizemos as malas, comemos o mata-bicho, e continuámos a caminhar, tal como já fazíamos há tantos dias. Aparentemente, pouco diferia da véspera. Mas, a certa altura, ouvimos um grito proveniente do capim:
Ali estava. Um crânio completo de um sinapsídeo brilhando na palma das nossas mãos.
Foi o primeiro de vários crânios descobertos desde então. Passado um ano, em 2010, a equipa foi reforçada em pessoas, tempo e material.
Foi o primeiro de vários crânios descobertos desde então. Passado um ano, em 2010, a equipa foi reforçada em pessoas, tempo e material. Foram recolhidos mais vertebrados fósseis com ajuda de estudantes e técnicos moçambicanos e finalmente, em 2011, meia tonelada de fósseis foi despachada da capital do Niassa, Lichinga, em direcção a Portugal para que pudessem ser preparados e estudados no Museu da Lourinhã, parceiro do projecto desde a primeira hora.
Com os fósseis, aterrou também em Lisboa um técnico moçambicano: Salimo Murrula. Desde essa altura que tem vindo, com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e do governo moçambicano a formar-se como o primeiro técnico em preparação e curadoria de fósseis de Moçambique. É o primeiro de vários que se seguirão, pois um dos objectivos do Projecto PalNiassa passa por formar cientistas para que os fósseis, muito em breve, possam ser preparados e estudados no país de origem. Desde o início, todo o património descoberto no âmbito do Projecto PalNiassa pertence a Moçambique e alguns fósseis já se encontram em exposição no Museu Nacional de Geologia, em Maputo.
Durante o Pérmico, o planeta era bastante diferente. Gráfico NG Maps. Fonte: Cchristopher P. Scotese; Projecto Paleomap; Relevo: Tibór Tóth. Arte: Ralph Scotese.
Mais do que estudar e valorizar o seu património, Moçambique está a dar passos na educação dos seus futuros investigadores. “Queremos que estes fósseis possam ser preparados e expostos em Moçambique. Isto só poderá acontecer se formarmos especialistas que o saibam fazer”, resume Luís Costa Júnior, director do Museu Nacional de Geologia de Moçambique e um dos líderes do projecto PalNiassa.
Os fósseis que Salimo prepara passam por um longo e rigoroso processo de remoção de rocha, isolando somente os ossos delicados destes seres bizarros
Os fósseis que Salimo prepara passam por um longo e rigoroso processo de remoção de rocha, isolando somente os ossos delicados destes seres bizarros. Concentração do ácido fórmico, micromartelos pneumáticos, supercolas e adesivos passaram a ser ferramentas que Salimo utiliza com destreza no Museu da Lourinhã. Enquanto vai aprendendo técnicas de preparação química e mecânica, para poder aplicá-las em Moçambique quando finalizar a sua formação, vai desvendando mais particularidades destes sinapsídeos.
Um dos espécimes que passou pelas suas mãos foi o primeiro vertebrado fóssil descoberto em 2009. Esse espécime compreende um crânio e mandíbula completos, com uma sequência de 19 vértebras e costelas articuladas, bem como a cintura pélvica completa e uma boa parte do fémur (em cima). Todos os elementos anatómicos ficaram preservados, incluindo os canais e perfurações por onde passavam as veias e nervos, ou sistemas sensoriais como o ouvido interno.
Uma imagem gerada por tomografia axial computorizada permitiu recolher, com impressionante rigor, pormenores anatómicos deste sinapsídeo encontrado em 2009. Fotografia Rui Castanhinha e Gabriel G. Martins.
Para analisar o interior do crânio, foi necessário fazer uma tomografia axial computorizada. Viajámos até Hamburgo, onde nos aguardava um aparelho que permitiu ver por entre a rocha e isolar somente a anatomia do crânio. Encontrámos assim vários dentes, um resultado surpreendente, uma vez que todos os dicinodontes relacionados com esta espécie não os têm. Os dentes são minúsculos e, não fosse o sincrotrão de Hamburgo e a experiência técnica de Rui Martins (do Instituto Tecnológico e Nuclear) e Gabriel Martins (Universidade de Lisboa), estes pormenores permaneceriam ocultos. Provavelmente será uma nova espécie. A confirmar-se, será a primeira espécie autóctone de um vertebrado fóssil de Moçambique.
Provavelmente será uma nova espécie. A confirmar-se, será a primeira espécie autóctone de um vertebrado fóssil de Moçambique.
De entre todos os tetrápodes que existiram no planeta durante o Pérmico, os sinapsídeos foram os mais diversificados e numerosos. Desde a sua origem, ocuparam praticamente todos os habitats do planeta, foram dizimados pela maior extinção em massa de que o registo geológico dá conta e alguns sobreviventes deram origem à nossa linhagem. Das profundezas da savana moçambicana, desenterrámos assim o que resta do nosso passado, na esperança de compreendermos um pouco mais de nós próprios e de como chegámos até aqui. Moçambique contém uma chave, talvez a que permite compreender mais sobre as nossas origens e a razão de estarmos todos ainda aqui.