No Novo Museu de Berlim, o busto de Akhenaton exibe cicatrizes de maleitas sofridas em tempos antigos e contemporâneos. Quebrado pelos sucessores do faraó no século XIV a.C., foi igualmente danificado aquando da sua deslocação na Segunda Guerra Mundial.

O pai de Tutankhamon revolucionou a religião, a arte  e a política do Antigo Egipto. Depois, o seu legado foi sepultado por uma rebelião. Akhenaton constitui, ainda hoje, um símbolo de mudança.

Texto: Peter Hessler
Fotografia: Rena Effendi

Por vezes, o comentário mais poderoso sobre um rei é produzido por aqueles que permanecem em silêncio.
Certa manhã, em Amarna, no Alto Egipto, um conjunto de ossos delicados foi disposto sobre uma mesa de madeira. “Aqui está a clavícula e o braço, as costelas e parte inferior das pernas”, explicou a arqueóloga norte-americana Ashley Shidner. “Tinha entre 1 ano e meio e 2 anos.”
O esqueleto era de uma criança que viveu em Amarna há mais de 3.300 anos, quando este povoado era a capital do Egipto. A cidade foi fundada por Akhenaton, um faraó que, juntamente com a mulher, Nefertiti, e o filho, Tutankhamon, têm arrebatado a imaginação contemporânea. Este esqueleto anónimo provém de uma sepultura não identificada. Os ossos demonstram evidências de subnutrição, um problema que Ashley Shidner e outros já observaram nos restos mortais de dezenas de crianças de Amarna.
“O atraso no desenvolvimento começa perto dos 7 meses e meio”, explicou a especialista. “É quando se inicia a transição do leite materno para os alimentos sólidos.” Em Amarna, esta transição parece ter sido adiada em muitas crianças. “Possivelmente, a mãe ponderou se existiria alimento suficiente.”

Os sucessores de Akhenaton foram, na sua maioria, críticos violentos do seu reinado.

Até há pouco tempo, os súbditos de Akhenaton pareciam ser os únicos seres humanos que não se tinham pronunciado sobre o seu legado. Muitos têm falado sobre o faraó que governou de 1353 a.C. a 1336 a.C. e tentou transformar a religião, a arte e a governação do Egipto. Os sucessores de Akhenaton foram, na sua maioria, críticos violentos do seu reinado. Até Tutankhamon promulgou um decreto criticando as condições de vida do tempo do seu pai: “A terra estava em agonia; os deuses tinham abandonado a região.” Na dinastia seguinte, Akhenaton foi referido como “o criminoso” e “o rebelde” e os faraós que lhe sucederam destruíram as suas estátuas e iconografia, tentando apagá-lo por completo da história.
As opiniões mudaram para o extremo oposto na época contemporânea, a partir do momento em que os arqueólogos e os historiadores redescobriram Akhenaton. Em 1905, o egiptólogo James Henry Breasted descreveu o rei como “o primeiro indivíduo da história da humanidade”. Para ele e muitos colegas, Akhenaton foi um revolucionário cujas ideias, sobretudo o conceito de monoteísmo, pareciam muito avançadas para a sua época. 
Segundo o especialista Dominic Montserrat, é frequente manusearmos provas dispersas de tempos antigos e organizarmo-las em narrativas que produzam sentido no nosso mundo. Fazemo-lo, escreveu, “para que o passado possa reflectir o presente, como um espelho”.

Um vendedor do Cairo vende máscaras de Abdel Fattah el-Sisi durante as eleições presidenciais de 2014. Após a deposição do seu antecessor, o general foi eleito com 97% dos votos. Quando tomou posse, anunciou a construção de uma nova capital no deserto a leste do Cairo – um projecto de 276 mil milhões de euros, reminiscente da capital desértica de Akhenaton, em Amarna. “Era assim naquela altura e é assim agora”, diz a arqueóloga Anna Stevens. “Todos apoiam Sisi porque ele é um homem forte.”

 Esse espelho contemporâneo de Akhenaton reflectiu quase todas as identidades imagináveis. O rei já foi apresentado como protocristão, ambientalista, defensor da paz, homossexual orgulhosamente assumido e ditador totalitário. A sua imagem foi recebida com igual entusiasmo pelos nazis e pelo movimento africanista. Thomas Mann, Naguib Mahfouz e Frida Kahlo incorporaram o faraó na sua arte. Quando Philip Glass escreveu três óperas sobre pensadores visionários, a sua trindade foi formada por Albert Einstein, Mahatma Gandhi e Akhenaton. Sigmund Freud desmaiou durante uma discussão acesa com o psiquiatra suíço Carl Jung sobre a possibilidade de o rei egípcio ter sido afectado por um amor excessivo da sua mãe. O diagnóstico de Freud: Akhenaton tinha personalidade edipiana, quase mil anos antes de Édipo. 
Os arqueólogos sempre tentaram resistir a estas interpretações, mas faltavam peças essenciais. Muitos estudos sobre Amarna concentravam-se na cultura da elite: escultura e arquitectura régias e inscrições dos túmulos de altos funcionários. Durante anos, os académicos esperaram pela oportunidade de estudar as sepulturas do povo, reconhecendo que a breve existência de Amarna – 17 anos – transformava a sua necrópole numa rara representação do quotidiano. Foi preciso esperar até aos primeiros anos do século XXI para que um estudo pormenorizado do deserto conseguisse localizar provas de quatro necrópoles.

Nas sepulturas onde a idade de morte do falecido era conhecida, 70% dos indivíduos teriam morrido antes dos 35 anos e apenas nove pareciam ter vivido para além dos 50.

Após a descoberta, os arqueólogos passaram quase uma década a escavar e analisar a maior dessas necrópoles. Reuniram uma amostra de esqueletos de pelo menos 432 indivíduos. Nas sepulturas onde a idade de morte do falecido era conhecida, 70% dos indivíduos teriam morrido antes dos 35 anos e apenas nove pareciam ter vivido para além dos 50. Mais de um terço morrera antes de completar 15 anos. Os padrões de crescimento das crianças estavam dois anos atrasados. Muitos adultos acusavam danos na coluna vertebral – na opinião dos antropólogos, era uma evidência de as pessoas trabalharem excessivamente, possivelmente para construir a nova capital.
Em 2015, a equipa científica passou a outro cemitério, a norte de Amarna, onde escavou vestígios de mais 135 indivíduos. Anna Stevens, a arqueóloga australiana responsável pelo trabalho de campo no cemitério, disse-me que os escavadores rapidamente descobriram que havia algo diferente nestas sepulturas. Muitos dos corpos pareciam ter sido enterrados à pressa, em sepulturas quase sem bens ou objectos. Não há sinais de morte violenta, mas os grupos familiares pareciam desagregados: em vários casos, parecia que duas ou três pessoas sem qualquer parentesco tinham sido atiradas para uma sepultura. Eram novos – 92% dos indivíduos desta necrópole não tinham mais de 25 anos. Mais de metade morrera com 7 a 15 anos.

 

Um guarda armado patrulha os antigos silos de cereais em Amarna, onde as ruínas intactas oferecem uma rara oportunidade de estudar uma cidade antiga num momento específico. Os palácios reais, templos e vias principais de Amarna foram cuidadosamente projectados, mas a maioria das construções foi descuidada. Bill Erickson, da Universidade de Westminster, crê que os padrões de alojamento em Amarna eram parecidos com os observáveis em bairros de lata contemporâneos. “Estes sítios podem ter três mil anos, mas são lições importantes sobre cidades modernas.”

“Esta curva de mortalidade não é normal”, resumiu Anna Stevens. “Não pode ser coincidência que as pedreiras de calcário do rei se localizassem aqui. Seria um grupo de trabalhadores recrutados no auge da juventude que trabalhou efectivamente até à morte?” Há, para já, uma conclusão: “Está afastada por completo qualquer noção prevalecente de Amarna ter sido um bom local para viver.”

Para Akhenaton, Amarna representava algo profundamente visionário.

Para Akhenaton, Amarna representava algo profundamente visionário. “Nenhum funcionário me aconselhou sobre ela”, escreveu orgulhosamente o faraó sobre a sua nova capital. Escolheu o local, uma vasta extensão desértica prístina, situada acima da margem oriental do Nilo, por não estar contaminada pelo culto de qualquer outro deus.
Akhenaton também poderá ter sido motivado pelo exemplo do pai, Amen-hotep III, um dos maiores construtores de monumentos, templos e palácios da história egípcia. Estes dois faraós integraram a XVIII dinastia, que subiu ao poder após derrotar os hicsos, um grupo étnico do Mediterrâneo Oriental que invadira o Norte do Egipto. Os antepassados da XVIII dinastia estavam sediados no Sul do Egipto e, para expulsar os hicsos, incorporaram inovações essenciais do seu inimigo, incluindo a biga puxada a cavalos e o arco composto. Os egípcios profissionalizaram as forças militares e, ao contrário de dinastias anteriores, a XVIII manteve um exército permanente. 

Uma estela de calcário, exposta no Novo Museu de Berlim, representa Akhenaton e Nefertiti com três das suas filhas sob o deus do Sol, Aton. Estelas semelhantes eram erigidas como santuários nas residências da elite de Amarna. Nenhuma imagem de Akhenaton, Nefertiti ou Aton foi encontrada nas necrópoles plebeias, sugerindo que a nova religião ainda não fora adoptada pelas massas. 

 Revelaram-se igualmente hábeis diplomatas e o império acabou por alargar-se do Sudão à Síria da actualidade. Os estrangeiros trouxeram novas riquezas e técnicas à corte egípcia, com repercussões profundas. No reinado de Amen-hotep III, que governou entre 1390 e 1353 a.C., o estilo da arte régia mudou para algo que hoje poderíamos classificar como mais naturalista.
Ao mesmo tempo que abraçava novas ideias, Amen-hotep III tinha também os olhos postos no passado distante. Estudou as pirâmides de reis que viveram mais de mil anos antes e incorporou elementos tradicionais em festivais, templos e palácios reais. Continuou a prestar culto a Amon, o deus patrono da cidade de Tebas, mas começou a enfatizar Aton, forma do deus do Sol Ré, retratado como disco solar – uma simbologia evocativa de padrões de culto mais antigos.

Actualmente, num parque temático do Cairo, alguns egípcios posam para fotografias que recriam o estilo artístico de Amarna.

 O filho deste faraó subiu ao trono como Amen-hotep IV, mas, no quinto ano do seu reinado, tomou duas decisões de extrema importância. Mudou o seu nome para Akhenaton (ou dedicado a Aton) e decidiu transferir a capital para o local actualmente conhecido como Amarna. O rei chamou à sua cidade Akhetaton, ou Horizonte do Disco Solar, e esta faixa de deserto vazio não tardou a albergar uma população de cerca de trinta mil pessoas. Palácios e templos com uma escala impressionante foram rapidamente construídos: o Grande Templo de Aton, o maior complexo ritual da cidade, tinha cerca de oitocentos metros de comprimento.
Entretanto, a arte egípcia também era revolucionada. Durante séculos, o tema, as proporções e as poses correctas das pinturas e das esculturas tinham sido definidos por tradições rígidas. No reinado de Akhenaton, os artesãos foram libertados destas directrizes. Criaram cenas realistas e fluidas do mundo natural e começaram a retratar Akhenaton e a sua rainha, Nefertiti, em poses invulgarmente naturais e íntimas. O casal real era frequentemente representado a beijar e a acariciar as filhas: uma cena até mostrava o rei e a rainha prestes a deitarem-se juntos. As feições de Akhenaton parecem ter sido concebidas para chocar: um queixo enorme, lábios proeminentes e olhos alongados com aspecto sobrenatural.

 

A nova capital de Akhenaton - As duas capitais principais do Egipto foram os centros estratégicos e religiosos de Mênfis e Tebas. Akhenaton construiu uma nova capital em Amarna, num local isolado no deserto, assinalando uma ruptura com o passado religioso e ideológico do país. Mapa: Matthew W. Chwastyk. 

Seguindo a perspectiva do faraó, a religião foi radicalmente simplificada. Os egípcios adoravam mais de mil deuses, mas Akhenaton era fiel a um só. Ele e Nefertiti eram os únicos intermediários ente o povo e Aton, assumindo o papel tradicional do clero. Nefertiti foi nomeada co-regente e, embora não seja claro se alguma vez deteve o poder político, o seu estatuto religioso e simbólico era bastante invulgar para uma rainha.
Tudo isto deve ter constituído uma ameaça para os sacerdotes da antiga ordem, que serviam Amon. Passados alguns anos em Amarna, o faraó ordenou a remoção das imagens de Amon dos templos do Egipto. Tratou-se de um acto incrivelmente ousado: foi a primeira vez na história que um rei atacou um deus. Porém, as revoluções têm tendência a virar-se contra os seus criadores e esta violência acabou por consumir as próprias criações de Akhenaton.

A madeira é rara no Egipto e a lei impõe restrições ao uso do precioso solo de aluvião para fabrico de tijolos: por isso, os blocos de calcário ainda são essenciais para uma construção acessível. Os templos e palácios de Akhenaton foram construídos com blocos conhecidos como talatat, que podiam ser içados por um único operário. Isto permitiu uma construção célere, mas também facilitou o desmantelamento da cidade pelos sucessores de Akhenaton. No Museu de Lucsor (em baixo), uma parede de talatat reconstruída inclui retratos do rei, banhados pelo sol, e cortesãos deferentes.

Cheguei ao local do Grande Templo de Aton num dia em que Barry Kemp encontrara um fragmento de uma estátua partida de Akhenaton. Barry é professor emérito da Universidade de Cambridge e dirige o Projecto Amarna, trabalhando aqui desde 1977. Já passou mais do triplo do tempo a escavar as ruínas da cidade do que Akhenaton passou a construí-la.
“Esta obra foi muito bem feita” comentou, segurando o fragmento de estatuária no qual apenas as pernas do rei eram visíveis. “E não ficou danificada por acidente.” Em Amarna, a arqueologia assume uma dimensão forense porque muitos dos artefactos foram deliberadamente destruídos após a morte súbita do rei, em 1336 a.C. O seu único filho e herdeiro foi Tutankhaton, que não tinha mais de 10 anos na altura e não tardou a substituir o “Aton” do seu nome pelo nome do deus que o seu pai detestara: Tutankhamon. Abandonou Amarna e retomou as tradições antigas. Tutankhamon morreu de forma inesperada e, pouco depois, o chefe do exército, Horemheb, declarou-se faraó, num dos primeiros golpes militares da história.
Horemheb e os seus sucessores, incluindo Ramsés, o Grande, desmantelaram os edifícios reais e os templos de Amarna. Destruíram estátuas de Akhenaton e Nefertiti e omitiram os nomes do rei herege e dos seus sucessores nas listas oficiais dos dirigentes egípcios. Este acto de damnatio memoriae é uma das razões para explicar o facto de o túmulo de Tutankhamon ter escapado a saques significativos. Nos tempos faraónicos, gerações sucessivas de salteadores vasculharam estes túmulos, mas o de Tutankhamon estava praticamente intacto. A cultura egípcia parecia ter-se esquecido de que ele existia.

Passados três milénios, o rosto de Akhenaton permanece icónico – em Mínia, um artista local decora a sua casa com esculturas de Akhenaton e Nefertiti (modelada a partir da estatueta de uma dama chamada Tuia).

Esqueceu-se igualmente da maioria dos pormenores sobre a vida em Amarna. As escavações mais recentes de Barry Kemp revelaram que o Grande Templo de Aton foi destruído e reconstruído por volta do 12.º ano do reinado de Akhenaton. O fragmento de estatuária que vi datava deste acontecimento – fora destruído por ordem do próprio rei e não dos seus sucessores.
“É um acto estranho, do nosso ponto de vista”, disse o arqueólogo, explicando que Akhenaton usou estes fragmentos nos alicerces de um templo novo e redesenhado. “A estátua já não era necessária, por isso reduziram-na a material de enchimento. Não há melhor explicação.”

As povoações antigas situavam-se geralmente no vale do Nilo, onde milénios de cheias e construção destruíram as estruturas originais.

No entanto, outras evidências encontram-se frequentemente num estado perfeito de conservação. As povoações antigas situavam-se geralmente no vale do Nilo, onde milénios de cheias e construção destruíram as estruturas originais. Em contrapartida, Amarna localiza-se no deserto, acima do rio, num local para onde era necessário transportar água potável. É essa a razão pela qual nunca foi habitado antes de Akhenaton e foi depois abandonado. Ainda hoje se vêem as paredes de adobe das casas de Amarna. É possível visitar o edifício com 3.300 anos onde o famoso busto pintado de Nefertiti foi escavado por uma equipa arqueológica alemã em 1912.
Barry Kemp contou-me que, a princípio, se sentiu atraído por Amarna devido ao facto de a cidade estar intacta e não pela figura de Akhenaton. Na sua opinião, foram atribuídas demasiadas características contemporâneas ao rei e até a palavra religião é “enganadora” quando aplicada ao Antigo Egipto. À semelhança da maioria dos especialistas da actualidade, ele não descreve Akhenaton como monoteísta. A palavra está demasiado matizada por tradições religiosas subsequentes e, durante o reinado de Akhenaton, a maioria dos egípcios continuou a prestar culto a outros deuses.

 

No Museu de Lucsor, as feições de Akhenaton figuram numa das poucas esculturas cujo rosto não foi destruído. Descoberto sob um templo em Karnak, parece ter sido sepultado por ordem do próprio rei, que alterou várias vezes o estilo dos seus retratos, descartando versões anteriores. 

Mesmo assim, Barry não resiste a conjecturar sobre a personalidade do rei. Sente-se impressionado com a volatilidade da mente de Akhenaton e com a sua capacidade para obrigar os operários a concretizar os seus caprichos. No Grande Templo de Aton, mostrou-me vestígios de grandes altares de oferendas em tijolos de adobe que em tempos teriam sido cobertos com alimentos e incenso para fins rituais. A quantidade de altares é impressionante – mais de 1.700. “Esclarecem muito sobre a mente deste homem, uma mente quase obsessiva”, disse. Barry Kemp escreveu em tempos: “O perigo de se ser um líder absoluto é que ninguém se atreve a dizer-nos que aquilo que acabámos de decretar não é boa ideia.”
Esta falta de responsabilização também pode ter inspirado a liberdade artística. Ray Johnson, que dirige a Chicago House, o centro de investigação da Universidade de Chicago em Lucsor, crê que Akhenaton deve ter sido “incrivelmente criativo”, apesar das suas tendências obsessivas e despóticas. “A representação artística mais tardia de Amarna é tão bela que dá vontade de chorar”, disse. “Eles rejeitaram o estilo maneirista e exagerado da arte tradicional egípcia em prol de um estilo mais suave. A representação da mulher, em particular, é extremamente sensual.” 

A sua cidade e práticas rituais foram rapidamente abandonadas, mas o estilo artístico de Amarna influenciou períodos subsequentes.

Ray Johnson reuniu recentemente fragmentos de relevos murais e estátuas pertencentes a colecções espalhadas pelo globo. A digitalização permite agilizar este tipo de trabalho. Mostrou-me depois uma “composição” virtual em que juntou a fotografia de um fragmento que se encontra em Copenhaga com a imagem de outro do Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque. “Estão a seis mil quilómetros de distância, mas apercebi-me de que se juntavam”, disse. A ligação revela uma cena surpreendente: Akhenaton celebra um ritual não com Nefertiti, mas com Kia, outra esposa que não detinha o estatuto de rainha.
Há um pequeno grupo de especialistas envolvidos neste trabalho e aqueles que conheço parecem ter uma opinião menos crítica de Akhenaton, talvez devido ao seu contacto íntimo com a arte. Esta acaba por ser o legado mais duradouro do faraó, pelo menos até à sua redescoberta na época contemporânea. A sua cidade e práticas rituais foram rapidamente abandonadas, mas o estilo artístico de Amarna influenciou períodos subsequentes. Marsha Hill, curadora do Museu Metropolitano de Arte, disse-me que a oportunidade de trabalhar com aqueles fragmentos de escultura de Amarna melhorara a sua percepção de Akhenaton.
“De certa forma, todos gostam de revolucionários”, resumiu. “Alguém com uma ideia boa e forte, capaz de transmitir a sensação de que pode melhorar uma crise. Não o vejo como destrutivo. Como é evidente, a sua acção não resultou. Normalmente, não resulta. O vapor acumula-se até se soltar e depois é preciso recomeçar do zero.”

 

A ERA DE AKHENATON - O faraó Akhenaton rompeu com séculos de tradição quando ascendeu ao poder em 1353 a.C. As alterações durante o seu reinado de 17 anos incluíram novos estilos de arte e arquitectura e comemorações do deus do Sol, Aton, em detrimento dos deuses antigos. Gráfico: Fernando G. Baptista, Oscar Santamarina e Eve Conant; Patricia Healy. Arte: Rocío Espín; Jose Daniel Cabrera Peña. Fontes: Peter F. Dorman, Universidade Americana de Beirute; Brett McClain, Universidade de Chicago; Barry Kemp, Projecto Amarna.

A revolução contemporânea do Egipto tornou ainda mais difícil para os arqueólogos a tarefa de estudar as evidências dispersas e fragmentadas do reinado de Akhenaton. Em Fevereiro de 2011, manifestantes na Praça Tahrir, no Cairo, obrigaram o presidente Hosni Mubarak a demitir-se, após uma governação de quase três décadas. Em 2012, o Egipto realizou as suas primeiras eleições democráticas, que elegeram Mohamed Morsi, líder do Partido da Irmandade Muçulmana. Um ano depois, Morsi foi deposto por um golpe militar. No rescaldo deste acontecimento, as forças de segurança massacraram centenas de apoiantes de Morsi no Cairo. Os manifestantes fizeram-se ouvir em todo o país, incluindo em Mallawi, uma cidade situada em frente de Amarna, do outro lado do Nilo. Em Agosto de 2013, um grupo local de apoiantes de Morsi atacou uma igreja cristã copta, um edifício governamental e o Museu de Mallawi. Neste ataque violento, o funcionário responsável pela verificação dos bilhetes na entrada do museu foi assassinado e todos os artefactos portáteis foram roubados – mais de mil, no total. Desde então, a polícia recuperou a maioria das peças, mas o museu demorou três anos a reabrir.

 

No antigo sítio de Amarna, a elite ergueu túmulos requintados, esculpidos nos penhascos a leste da cidade. Os plebeus eram sepultados no solo do deserto, onde foi descoberto pouco espólio funerário. As tranças elaboradas de um crânio reflectem os cuidados que os residentes dispensavam à aparência, apesar das condições difíceis em que viviam. Fotografia Escavação do Pprojecto Amarna, Anna Stevens.

Em Amarna, o avanço da agricultura representa uma ameaça ainda maior do que os saques. Agora que bombas a gasóleo puxam a água do rio, os agricultores conquistam solo ao deserto, incluindo sectores da cidade antiga ainda por escavar. Oficialmente, o sítio está protegido, mas a aplicação da lei tem sido muito enfraquecida pela revolução. Mohammed Khallaf, então director do Gabinete de Antiguidades de Mínia, a capital regional, disse-me que os aldeãos residentes em redor de Amarna estavam legalmente limitados a cerca de 300 feddan (126 hectares) de terra cultivada. “Já conquistaram mais trezentos à custa de ilegalidades”, disse. “Oitenta por cento do avanço da agricultura registou-se desde a revolução.” 

A revolução também travou a construção do Museu de Aton, o mais impressionante edifício de Mínia.

A revolução também travou a construção do Museu de Aton, o mais impressionante edifício de Mínia. A estrutura modernista ergue-se 50 metros ao lado do Nilo, com uma forma reminiscente de uma pirâmide. Em todo o Egipto, Akhenaton é o único faraó ainda homenageado por arquitectura monumental! É um testemunho do facto de os líderes muçulmanos terem abraçado a identidade popular de Akhenaton como monoteísta, mas apesar disso o seu legado não consegue escapar à agitação política. Cerca de nove milhões de euros foram investidos no museu antes de o financiamento acabar de forma abrupta, vítima da derrocada económica pós-Tahrir.
Certo dia, visitei o local e encontrei onze funcionários sentados num gabinete escuro com o ar condicionado desligado. Mohammed Shaben apresentou-se como gestor de tecnologia e apresentou desculpas pelo calor – não existia electricidade disponível. Perguntei-lhe o que um gestor de tecnologia fazia sem electricidade.
“Não tenho nada para fazer”, respondeu. “Estamos todos à espera.”

Junto da cidade de Mínia, os egípcios contemporâneos ainda prestam homenagem aos seus mortos construindo estruturas permanentes – como um cemitério de telhados abobadados e paredes de arenito. 

Ele tinha 26 anos e a maioria dos outros funcionários era ainda mais nova. Todos tinham formação superior: curadores, peritos em decoração de interiores e em restauro. No Egipto, cerca de 60% da população tem menos de 30 anos e os protestos de Tahrir foram dominados pelos jovens. Desde o golpe, houve uma repressão brutal da dissidência e as prisões egípcias alojam dezenas de milhares de prisioneiros políticos. Quase um terço da juventude do país está desempregada. Mohammed Shaben disse-me que ele e outros funcionários públicos têm de comparecer nos seus postos de trabalho e lá permanecer durante o dia sem fazerem nada, apesar de a construção do museu ter sido interrompida.
Fez-me uma visita guiada ao museu, que tem cinco pisos, 14 salas de exposição e um teatro: está tudo exposto aos elementos. O local está repleto de ladrilhos, varões e condutas de ar condicionado enferrujadas. “Cuidado com os morcegos”, disse Mohammed, ao entrar no teatro. Disse-me que, um dia, terá capacidade para 800 pessoas.
Um jovem inspector de antiguidades chamado Ahmed Gaafar acompanhava-nos, queixando-se de que a agitação política travara a sua carreira como curador. Este padrão parece eterno: em todos os tempos e em todos os locais, as revoluções devoram os jovens. Ahmed mencionou as recentes eleições presidenciais do Egipto, vencidas por Abdel Fattah el-Sisi, o general que liderou o golpe que depôs Morsi, o líder islâmico. Ahmed via uma ligação entre este golpe e o tempo de Akhenaton.

Esse sentimento de preparação do Egipto para a grandeza é muito mais velho do que Sisi ou mesmo Akhenaton.

“Algumas pessoas dizem que Morsi é como Akhenaton e Sisi é como Horemheb”, disse. “Horemheb libertou o Egipto de um estado teocrático cada vez mais fraco.” Prosseguiu depois com esperança: “E pavimentou o caminho para o período ramséssida, o melhor da história egípcia. Passa-se o mesmo com Sisi – ele está a preparar o Egipto para ser grande novamente.”
Esse sentimento de preparação do Egipto para a grandeza é muito mais velho do que Sisi ou mesmo Akhenaton. No Antigo Egipto, após períodos de fraqueza ou desunião, os líderes declaravam frequentemente um uhem-mesut, literalmente “a repetição do nascimento”. Recorriam a símbolos antigos, usando glórias passadas para prometer sucessos futuros. Tutankhamon declarou um uhem-mesut e Horemheb também pode tê-lo feito. 
A revolução adquire legitimidade quando associada ao passado e é por essa razão que as palavras de ordem gritadas em Tahrir eram frequentemente acompanhadas por imagens de Gamal Abdel Nasser e Anwar Sadat. É igualmente essa a razão pela qual grupos marginalizados de todo o mundo se sentiram atraídos pela figura de Akhenaton.
Quando Morsi e a Irmandade Muçulmana subiram ao poder, em 2012, aprovaram uma constituição que citava o “monoteísmo” de Akhenaton e chamaram Nahda, “renascimento”, em árabe, ao seu programa político. 

 

O antigo faraó continua a ser tema de arte monumental, como nesta escultura na Universidade de Mínia.

No Egipto sempre existiu a tentação de reflectir o passado distante no presente, recriando o mundo faraónico à nossa imagem, mas é igualmente verdade que os antigos egípcios desenvolveram tácticas políticas sofisticadas. A arte de Amarna foi frequentemente usada como propaganda, mostrando Akhenaton atribuindo prémios a sicofantas e desfilando pela cidade acompanhado por guarda-costas reverentes. Barry Kemp escreveu que estas cenas fornecem “uma caricatura involuntária de todos os líderes contemporâneos que se enfeitam com os adornos do poder carismático”.
No sítio do Grande Templo de Aton, perguntei a Barry se estes padrões de pensamento e comportamento seriam universais. “Somos todos da mesma espécie”, disse. “De certa forma, estamos programados para pensar e comportar-nos da mesma maneira. As tradições de longa duração moderam as sociedades individuais. É essa a responsabilidade – encontrar o equilíbrio entre padrões universais e padrões distintivamente culturais.”

É igualmente verdade que os antigos egípcios desenvolveram tácticas políticas sofisticadas.

O Projecto Amarna, que organiza a investigação no sítio arqueológico, tem um gabinete no Cairo num edifício junto da Praça Tahrir. Anna Stevens diz que este ambiente lhe deu uma nova perspectiva do passado. “Viver neste tempo fez-me pensar muito mais em Akhenaton e no impacte das revoluções”, comentou, referindo-se à ascensão de Sisi. “Impressiona-me este interesse num líder masculino forte.” Em Amarna, os túmulos dos altos funcionários mostram Aton e a família real, mas até à data nenhuma destas imagens foi encontrada em necrópoles populares. “Não há referências a Akhenaton ou Nefertiti”, disse Anna. “É como se não lhes coubesse fazê-lo.”
A especialista observou uma dinâmica semelhante no elitismo da política actual. “Podemos ter mudanças muito radicais no topo, mas cá em baixo nada muda”, afirmou. “Podemos mudar uma cidade inteira para outra parte do Egipto, podemos mudar um grupo inteiro de pessoas para a Praça Tahrir, mas nada muda.” 

Mamduh Abu Kelwa navega na sua faluca junto do Museu de Aton, em Mínia, ainda em fase de conclusão. Akhenaton precisou de apenas cinco anos para construir uma nova capital. O complexo museológico de 10,5 hectares demorou mais do dobro desse tempo devido à instabilidade política e económica. Desde que o projecto foi iniciado, o Egipto sofreu uma revolução e um golpe de Estado e dois antigos presidentes foram julgados em tribunal. 

Para ela, uma revolução é uma história selectiva. “Akhenaton está a compor uma narrativa”, disse um dia no seu gabinete. E apontou para uma fotografia de esqueletos de um cemitério popular. “Esta narrativa, porém, não é para aquelas pessoas.” As suas histórias nunca serão inteiramente conhecidas, da mesma forma que as vidas da maioria dos egípcios contemporâneos são ignoradas quando nos concentramos nas figuras dominantes da política nacional. Se é difícil para nós apreendermos o alcance total das experiências revolucionárias dos últimos anos, quais as probabilidades de compreender a política do século XIV a.C.? “A vida é mesmo assim”, resumiu Anna. 
Estava sentada seis pisos acima da Praça Tahrir, rodeada por uma amálgama de dados provenientes das escavações de Amarna, mas parecia sentir-se à vontade perante a incerteza fundamental de Akhenaton: os mistérios da sua fé, as mensagens ocultas nos ossos dos seus súbditos e todos os fragmentos que nunca voltarão a juntar-se. Sorriu e disse: “Não existe uma narrativa clara.” 

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