A saga científica e administrativa deste icónico Monumento Nacional alentejano, que continua, 53 anos depois da sua descoberta, à espera do alinhamento astral que o liberte da filigrana burocrática.

Texto Gonçalo Pereira Rosa   Fotografia Luís Ferreira    Ilustração Anyforms

 

Visto de um drone, o cromeleque dos Almendres ganha enquadramento paisagístico num ponto elevado da paisagem de onde se teria certamente uma perspectiva desafogada. O físico Cândido Marciano da Silva sugeriu a implantação equinocial como leit motiv do monumento. Em baixo, quatro configurações do cromeleque desde o Neolítico Antigo, há cerca de cinco mil anos e a identificação de um menir onde se detectou a gravura de um báculo.

Fazia passagens de slides nas aldeias e vinha tudo, os gaiatos a correr (…), era preciso que eles vissem aquilo e depois aparecia um homem e dizia: ‘Ah, eu estive a trabalhar num olival (…) e havia uma quantidade de coisas como estas’. (…) Quando o senhor António Gadunhas veio indicar-me o que era um dólmen enterrado, e outra coisa que era o cromeleque dos Almendres, eu chorei, fiquei muito comovido.” Foi assim que o historiador Henrique Leonor Pina descreveu à revista “Cenáculo” a emoção da descoberta, em 1964, do cromeleque dos Almendres, nas imediações de Évora e Montemor-o-Novo.

O sítio das Pedras Talhas (o nome vernacular pelo qual era conhecido o cromeleque na antiga freguesia de Guadalupe) tem vivido ao sabor do tempo e de vários azares.

Monumento megalítico único na Península Ibérica, a sua identificação numa fase mais consolidada da arqueologia portuguesa de pré-história levaria a supor uma rápida concentração de esforços de investigação e conservação, mas o sítio das Pedras Talhas (o nome vernacular pelo qual era conhecido o cromeleque na antiga freguesia de Guadalupe) tem vivido ao sabor do tempo e de vários azares. 
Situado numa propriedade privada até à revolução de Abril de 1974, foi cenário de um confronto administrativo entre a Junta Distrital de Évora e o então proprietário. Tudo nos Almendres foi moroso e desgastante, incluindo o acesso ao local das primeiras equipas de investigação.

Proposta de configuração do cromeleque dos Almendres no Neolítico Final, um dos períodos em que comprovadamente teve ocupação humana. Ilustração: Anyforms. Consultores: António Carlos Silva e Manuel Carvalho.

Em 1975, o sítio foi finalmente classificado como Imóvel de Interesse Público e a reforma agrária, então em curso, teve um peculiar efeito indirecto: permitiu a investigação no cromeleque, então administrado pela Cooperativa de Guadalupe. Na década de 1980, a autarquia de Évora construiu a estrada que, entre solavancos e poeira, concede acesso ao local e o arqueólogo Mário Varela Gomes conduziu ali importantes trabalhos arqueológicos, procedendo ao levantamento dos menires tombados.


Reprivatizada a propriedade, não houve cuidado de acautelar a tutela dos sítios arqueológicos e respectivas vias de acesso. Como resultado, a estrada que ainda hoje dá acesso aos Almendres (bem como o parque de estacionamento, criado em 2012, com autorização dos novos proprietários) localiza-se em propriedade privada. É verdade que o estacionamento resolveu os casos mais gritantes de pressão sobre o monumento (chegaram a circular viaturas entre os próprios menires), mas persistem justificadas dúvidas sobre o papel que cabe ao Estado na criação de condições de visita, de segurança e de interpretação pedagógica do local quando todo o território onde se implanta permanece fora da sua jurisdição. 

Reprivatizada a propriedade, não houve cuidado de acautelar a tutela dos sítios arqueológicos e respectivas vias de acesso.

Nem a classificação do cromeleque como Monumento Nacional em 2015 desfez este nó górdio e uma proposta recente da União de Freguesias da Tourega e de Guadalupe, que previa a transferência das responsabilidades de gestão, conservação e manutenção do sítio arqueológico, foi igualmente rejeitada.
Aos poucos, apesar dos alçapões, a investigação avançou. A tese de mestrado do arqueólogo Pedro Alvim (falecido em 2015) produziu valiosas referências sobre o enquadramento paisagístico do monumento, valendo-se para tal de importantes entrevistas com os trabalhadores agrícolas que operavam na herdade na década de 1960 e que confirmaram que os primeiros levantamentos ad hoc dos menires colocaram-nos genericamente nos respectivos pontos de implantação. O trabalho de doutoramento de Alvim, que estava prestes a ser defendido e no qual o arqueólogo apresentaria resultados de sondagens de recolha de sedimentos para datar a época de implantação dos menires, foi bruscamente interrompido pelo seu falecimento. O arqueólogo Manuel Calado investigou igualmente os Almendres no seu trabalho de longo curso sobre o megalitismo do Alentejo.

Com pouca informação arqueológica directa, os esforços de datação do monumento são ainda provisórios. Da esquerda para a direita: Neolítico Antigo, Neolítico Médio, Neolítico Final e Actualidade. Diagrama: Anyforms, de acordo com proposta de datação de Mário Varela Gomes.

Visitado todos os dias do ano (e com evidências de visitas nocturnas extravagantes expressas em fogueiras e outras marcas new age), o cromeleque aguarda pelo alinhamento astral que favoreça a intervenção decisiva que lhe permita cumprir o desígnio de ser o muitas vezes apregoado “Stonehenge português”.
Em Novembro de 2016, uma curiosa iniciativa etnográfica levou os três trabalhadores agrícolas sobreviventes da década de 1960 ao local onde um dia Henrique Leonor Pina valorizou as pedras talhas que com eles conviviam diariamente. Ali gravaram, para memória futura, a emoção de participar numa descoberta histórica e na remontagem de um monumento pré-histórico.  Em versos improvisados, um deles, Joaquim Feliz Castinha, resumiu este novelo com mais de meio século: “O Cromeleque dos Almendres / Merecia uma sentinela / Foi restaurado plo Xico Serpa / E p’lo Doutor Mário Varela / Está uma obra muito bela / Foi feita por seres humanos / Diz que tem cinco mil anos / Respeitem-no bem, visitantes.”

Uma imagem pouco usual do cromeleque, aquando do nevão de 2006. Fotografia António Carlos Silva.

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