A capital histórica nas margens do Mekong alberga um património único no Sudeste Asiático.

Texto Ana Puértolas

 

Wat Aham, 1818 - Gigantescas árvores bodhi (uma espécie de figueira, árvore sagrada do budismo) crescem entre as pequenas estupas que flanqueiam o templo de Wat Aham, ou “Mosteiro do Coração Aberto”, construído no início do século XIX. Fotografia Christophe Boisvieux / Hemis / Gtres.

Quando surgem os primeiros raios de sol, os monges saem dos mosteiros numa procissão muda e ordenada. Percorrem as ruas de Luang Prabang com taças penduradas ao ombro. Aqui e além, numa cidade ainda meio adormecida, pequenos grupos de fiéis aguardam-nos nas calçadas e nos passeios. Sentados com uma atitude reverente e com grandes panelas cheias de arroz glutinoso e alguns legumes, vão depositando os alimentos nas taças dos monges. A longa fila de homens de cabeça rapada e túnicas cor de açafrão vai-se diluindo à medida que o Sol se levanta. Os monges regressarão, com alimentação suficiente para o dia, às suas tarefas nos mosteiros.

Wat Xieng Thong, 1560 - O seu nome significa “Mosteiro da Cidade Dourada, ou da Árvore de Ouro” e, para muitos, é o templo mais belo de Luang Prabang. Construído na segunda metade do século XVI e famoso pelos seus mosaicos de vidro e painéis dourados, foi no passado o local da coroação dos reis do Laos. Fotografia Bruno Perousse / Hemis / Gtres.

O mundo já chegou ao terceiro milénio da nossa era e, no entanto, esta cerimónia repete-se todas as madrugadas, viva e praticamente intacta desde que, em 698 d.C., um príncipe tailandês fundou a povoação. Praticante fervoroso do budismo theravada (que permite aos homens alcançar o nirvana através de um processo de introspecção individual), favoreceu a presença de monges e a construção de mosteiros. A cidade foi adquirindo um carácter fortemente religioso e sagrado e, apesar de ter sido destruída e reconstruída em diferentes ocasiões ao longo dos séculos, sempre preservou uma aura de lugar abençoado pelos deuses.

Grutas de Pak Ou - A 25 quilómetros de Luang Prabang, subindo o curso do Mekong, dois jovens peregrinos oferecem incenso em Pak Ou, uma cavidade junto do rio formada por duas grutas (uma inferior, Tham Ting, e outra superior, Tham Phum), repletas de centenas de figuras de Buda veneradas há séculos. Fotografia Stéphane Lemaire / Hemis / Gtres.

A sua localização não é alheia a este facto: um vale arborizado e amplo, rodeado de colinas verdes, uma língua de terra encurralada entre o rio Mekong e um dos seus afluentes, o Nam Khan. Luang Prabang, com as suas duas grandes ruas flanqueadas por mosteiros de telhados curvos e fachadas douradas, com estupas em forma de sino e casas com varandas de madeira e telhados de duas águas cobertos de telhas a testemunhar 60 anos de colonização francesa, é uma cidade belíssima e singular. Tão prodigiosa que não parece real, antes produto de uma fantasia utópica. 

Wat Mai, 1796 - Um monge recita os textos sagrados em Wat Mai, um dos maiores templos de Luang Prabang e onde se guardava o Phra Bang, actualmente no Museu Nacional. Esta figura protectora da cidade representa Buda com a mão em posição Abhayamudra, um gesto “que consola, transmite segurança e dissipa o medo”. Fotografia Stéphane Lemaire / Hemis / Gtres.

Para entender a portentosa localização de Luang Prabang, o melhor é ganhar forças e subir os 328 degraus que nos elevam pelo monte Phu Si até uma altura de cem metros. Pelo caminho, entre a vegetação densa, vão surgindo santuários, pequenos altares com oferendas e imagens de budas. E no ponto mais alto, dominando o vale, encontra-se o Wat That Chom Si, com uma curiosa estupa rectangular coroada por sete para-sóis dourados e com as perspectivas mais cobiçadas: o curso sinuoso e fatigado do Nam Khan, a sua confluência no Mekong, e uma cidade calma e silenciosa, encaixada entre os dois caudais. Anunciado por uma gritaria que ali chega proveniente das colinas arborizadas em redor, o pôr do Sol é arrepiante se… a meteorologia ajudar. 

Monte Phu Si - As encostas deste monte sagrado estão repletas de altares, pavilhões e templos onde abundam representações de Buda. A posição reclinada alude à última etapa do Buda histórico e à sua doença, prestes a entrar no parinirvana, ou nirvana para além da morte. Fotografia Tuul e Bruno Morandi / Hemis / Gtres.

A tradição histórica assegura que Luang Prabang era conhecida como a cidade dos mil templos, mas trata-se de uma descrição difícil de verificar. É verdade, porém, que alguns deles são dos mais belos do Sudeste Asiático. Wat Xieng Thong é simplesmente espectacular. Plantado num espaço amplo e rodeado de árvores, é o centro de um conjunto de capelas, estupas, moradias para monges e outras dependências, um mundo isolado do resto. 

Wat Sop, 1481 - É hora da oração no pequeno templo de Wat Sop, que acolhe igualmente uma escola para monges. Os noviços são iniciados no estudo das escrituras, dos cânticos e da meditação, assim como no cuidado das hortas e nos trabalhos de limpeza. Fotografia Bruno Perousse / Hemis /Gtres.

Com os seus telhados curvos duplos e triplos, os seus muros caiados e os painéis de teca entalhados e revestidos a folha de ouro, os seus mosaicos de vidro multicoloridos e os interiores com colunas lacadas de vermelho e dourado, coroadas por budas áureos, o conjunto de Wat Xieng Thong é uma autêntica orgia cromática, realçada pelo leve murmúrio dos rios que o circundam e protegem. 

Wat Xieng Thong, 1560 - Segundo uma lenda antiga, dois eremitas colocaram a primeira pedra do templo junto de um mai thong, uma árvore de flores exuberantes representada na fachada posterior do sim, ou sala de ordenação (em cima). Além dos seus mosaicos, o templo é famoso pelos painéis de teca dourada com cenas do Ramayana (em baixo). Fotografia Alvaro Leiva/AGE Fotostock (em cima); Romain Cintract /Hemis /Gtres (em baixo).

 

Muito próximo, o Wat Wisunarat, uma construção de madeira do início do século XVI, foi incendiado quase quatrocentos anos mais tarde durante uma invasão de grupos rebeldes originários da China. Reconstruído em tijolo e estuque, ainda conserva a estupa original, sóbria e imponente, a mais antiga de Luang Prabang. Igualmente magnífico é o Wat Aham, no sopé do monte Phu Si. Ou o Wat Mai, fundado pelo rei Anurat em 1796, profusamente decorado e em cujas paredes se conta a história da vida e os milagres de Vessantara, a penúltima encarnação de Buda.

Construído na época do rei Wisunarat, é o templo mais antigo da cidade ainda em actividade. O edifício original, de madeira com telhado duplo, 12 pilares com 30 metros de altura e requintadamente decorado, era uma das estruturas mais impressionantes da antiga Luang Prabang. Foi incendiado em 1889 e posteriormente reconstruído (em cima, fotografia Christophe Boisvieux/Hemis/Gtres). Ainda aloja uma valiosa colecção de budas centenários (em baixo, fotografia Christophe Boisvieux/Hemis /Gtres). No seu recinto, conserva-se também o That Pathoum, ou “Estupa do Grande Lótus”, erguida entre 1514 e 1515, uma construção de influência cingalesa, pouco comum no Laos.

 

Uma cidade semeada de cinco dezenas de templos pintados a ouro e vermelhão merecia ser incluída na Lista do Património Mundial da UNESCO. A classificação foi decidida em 1995 “por ser um exemplo excepcional da fusão da arquitectura tradicional laociana com as estruturas urbanas criadas pelas autoridades coloniais europeias nos séculos XIX e XX; e pela sua extraordinária paisagem urbana, muito bem conservada, que ilustra uma etapa essencial da mistura das duas tradições culturais diferentes”. 

Numa cena habitual em Luang Prabang, uma comitiva de monges percorre as ruas ao amanhecer para receber dos fiéis a sua ração diária de arroz. Fotografia Bruno Perousse /Hemis /Gtres.

Na arquitectura civil, brilha com luz própria outra das maiores glórias de Luang Prabang – o Palácio real. A sua entrada régia abre-se para a estrada Sisavangvong, a magnífica avenida ladeada de palmeiras altas e estilizadas e sebes afrancesadas que ostentam o nome do monarca ao qual se deve a sua construção em 1904. O complexo palaciano que, após a extinção da monarquia em 1975, passou a funcionar como Museu Nacional, é composto por três edifícios principais e outras dependências mais modestas.

Na arquitectura civil, brilha com luz própria outra das maiores glórias de Luang Prabang – o Palácio real.

O primeiro, o palácio de tijolo, teca e caiado, mostra uma inequívoca influência francesa, sobretudo nos interiores, com belas decorações de estilo art déco. Rodeada de jardins, encontra-se a segunda construção, o Teatro real, que oferece representações e actuações de dança. A terceira é o Haw Pha Bang, um templo posicionado entre escadas e balaustradas, com uma impressionante fachada em tons de verde e ouro, concluído em 2006, há apenas nove anos. Originalmente foi projectado para albergar uma das estátuas de Buda mais antigas e veneradas do mundo, o Phra Bang, proveniente, reza a lenda, do Sri Lanka.

Palácio real, 1904-1909 - Colunas e frontões de corte clássico e motivos déco combinam-se com mísulas e telhados ao mais puro estilo laociano na arquitectura de fusão do Palácio real, uma síntese do trabalho de arquitectos franceses e artesãos indochineses, muitos dos quais provenientes do Vietname. Fotografia Romain Cintract /Hemis/Gtres.

Mosteiros, templos, pavilhões, mansões da antiga colónia, mercados ruidosos cheios de gente às primeiras horas da manhã: Luang Prabang observa-se a si mesma, reconhecendo-se hoje como em tempos passados, reflectida nas águas opalescentes, pausadas e densas do Mekong. Das suas margens, através de uma viagem de lancha e a alguns minutos de trajecto hipnótico pelo rio, entre montículos e bosques, chega-se às grutas de Pak Ou, uma gruta aberta na rocha onde há séculos se presta culto a centenas de budas subindo pela pedra, oferendas desta cidade cálida e consoladora, de beleza serena e bendita benevolência. 

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