Mosaicos e colunas de grande beleza decoravam o peristilo da Casa de Leukaktios, uma elegante casa da cidade de Ptolemaida construída no século III d.C., durante o período de domínio romano. 

Virada para o Mediterrâneo, na costa oriental da Líbia, uma elegante casa romana da antiga cidade de Ptolemaida revela os seus segredos.

Texto: Alec Forssmann

Fotografias: Miron Bogacki

A Líbia, hoje o quarto maior país de África, é um imenso território quase inteiramente ocupado pelas areias do Saara. Apenas uma estreita faixa de terra a norte, banhada pelo Mediterrâneo e correndo paralelamente à costa, pode ser aproveitada para a agricultura. O tórrido clima desértico do interior e o clima mediterrâneo do litoral configuraram uma área geográfica que, ao longo da história, foi ocupada, de maneira temporária ou permanente, por um grande número de povos-tribos nómadas, comerciantes, colonizadores, impérios poderosos. Berberes, fenícios, gregos, persas, romanos, vândalos, bizantinos, árabes, espanhóis, otomanos e italianos deixaram, em maior ou menor medida, a sua marca neste ponto estratégico das rotas comerciais que uniam a África subsaariana ao Mediterrâneo.

Alexandre Magno conquistou o Egipto no século IV a.C. e, depois de fundar Alexandria, visitou o oráculo de Amon num oásis da antiga Líbia, chamado Siwa (hoje na região ocidental do Egipto). Quase quinhentos anos mais tarde, essas terras deram a Roma um grande imperador, Septímio Severo, nascido em Leptis Magna, cujas magníficas ruínas estão actualmente classificadas como Património da Humanidade. Os grupos nómadas acabaram por exercer controlo sobre o vasto deserto, enquanto fenícios, gregos e romanos se estabeleciam na costa e fundavam cidades prósperas como Sabratha, Oea (hoje Tripoli), Evesperides (hoje Bengasi), Cirene, a já referida Leptis Magna e Ptolemaida.

É nesta última urbe romana, localizada na região conhecida como Cirenaica, que uma equipa do Instituto de Arqueologia da Universidade de Varsóvia tem levado a cabo nas últimas duas décadas várias campanhas que puseram a descoberto uma luxuosa villa romana ocupada no século III d.C. Os trabalhos revelaram igualmente outros tesouros ocultos nesta insula situada na zona leste da cidade, próxima do famoso Palácio das Colunas, uma luxuosa domus escavada por uma equipa italiana antes da Segunda Guerra Mundial.

“A insula que estudamos é constituída por várias casas de tamanho médio que, embora ricamente decoradas, não eram domus romanas tão faustosas como o Palácio das Colunas ou a Villa das Quatro Estações, igualmente escavada em Ptolemaida pelo norte-americano Carl Herman Kraeling na década de 1950”, explica Jerzy Żelazowski, último director da missão polaca.

A equipa iniciou os trabalhos em 2001, sob direcção do arqueólogo Tomasz Mikocki. Após a morte deste em 2007, Jerzy Żelazowski tomou as rédeas da escavação até 2010, pouco antes do início da guerra civil líbia de 2011, que provocaria milhares de vítimas e levaria à captura e linchamento do ditador Muammar al-Khadafi.
“O sítio arqueológico não foi abandonado e ainda se encontra sob tutela do museu local de Tolmeita [pequena povoação moderna nas imediações das ruínas de Ptolemaida], com o qual nos mantemos em contacto”, afirma o coordenador polaco.
“As peças de arte e os objectos encontrados durante as escavações, incluindo estátuas e moedas, estão conservados no museu, mas os mosaicos permanecem in situ.

“Não podemos trabalhar na Líbia devido à falta de segurança, à difícil situação política vivida após a revolução e à infiltração do terrorismo e da sua ideologia. O actual desafio político consiste em unificar o país, dividido entre a Tripolitânia e a Cirenaica, e criar um território autónomo.”

Originalmente, Ptolemaida foi o porto de Barca, uma antiga colónia grega a cerca de trinta quilómetros da costa, no interior. O novo assentamento costeiro, fundado no século VI a.C., foi evoluindo e, na segunda metade do século III a.C., já deveria ser uma cidade importante, pois foi convidada a participar nos Jogos Pan-Helénicos, celebrados em Delfos. Após a sua integração no Egipto ptolemaico, foi conquistada no século I a.C. pelos exércitos romanos e incorporada no império juntamente com outras capitais da Cirenaica. “Chega-se então à cidade de Ptolemaida, não menor do que Mênfis e que também possui uma forma de governo inspirada na dos gregos”, escreveu Estrabão na sua Geografia.

Passemos agora ao século III da nossa era. Ptolemaida é uma próspera cidade portuária romana nas margens do Mediterrâneo. Em trezentos hectares, rodeados por muralhas defensivas, ergueram-se teatros, um anfiteatro e outros edifícios públicos. O abastecimento de água era essencial para a sobrevivência da urbe. Face à esporádica pluviosidade da região, os habitantes inventaram vários sistemas hidráulicos, desde aquedutos com vários quilómetros de comprimento a galerias subterrâneas e cisternas com capacidade para milhões de litros. Localizada na chamada Praça das Cisternas, a maior de todas (parcialmente talhada na rocha e nunca acabada) pode armazenar cinco milhões de litros de água da chuva ou proveniente das nascentes a mais de vinte quilómetros da cidade.

A água não é recolhida exclusivamente nesta cisterna. Numa insula da região oriental da cidade, ergue-se uma elegante casa romana de dois pisos, cuja arquitectura foi concebida para ser desfrutada pelos seus proprietários, mas também para aproveitamento das águas pluviais. O precioso líquido cai sobre o telhado e é depositado num pequeno peristilo (um pátio interior descoberto), formado por quatro colunas pintadas de branco e vermelho. O espaço central, decorado com um mosaico geométrico, contém uma dedicatória ao proprietário da casa, um homem chamado Leukaktios. A água alcança finalmente uma cisterna subterrânea, cujo ponto de captação se situa no pórtico norte que rodeia o peristilo.

Foi nesta moradia que os arqueólogos polacos centraram a sua investigação. “Este sector do sítio arqueológico apresentava grande concentração de mosaicos de cores vistosas, pinturas murais, estruturas arquitectónicas e cerâmica, tudo da época romana. Havia também grande acumulação de escombros, o que apontava para a presença de restos bem conservados de arquitectura doméstica”, informa Jerzy Żelazowski.

A Casa de Leukaktios, também conhecida como Villa da Boa Vista, epíteto atribuído pelo pioneiro Tomasz Mikocki, possuía um piso superior do qual provavelmente se avistava um panorama invejável. A história desta casa acompanha a da própria cidade. Segundo parece, esteve ocupada até ao século IV d.C. Desmoronou-se então na sequência de um dos frequentes sismos que assolaram a região em meados do século III d.C. (talvez o do ano 262) e, em especial, no ano de 365. Numerosos blocos arquitectónicos encontrados nas escavações, entre os quais os fragmentos de uma coluna quase completa que caiu na direcção do Norte, assim o testemunham. Da mesma maneira, em virtude dos sismos, uma parte das estruturas portuárias da cidade desapareceu no mar.

Cabeça de mármore de uma estátua de Dioniso, deus grego da vindima e do vinho, encontrada no interior de uma cisterna. 

Mesmo assim, Ptolemaida sobreviveu às catástrofes e a ocupação da cidade prolongou-se até ao século VII d.C. Entre os séculos IV e VI, a abundância de cisternas na insula facilitou uma segunda ocupação da estrutura, desta vez como oficina de cerâmica e metalurgia. Esta efémera segunda vida chegaria ao fim com os ataques dos vândalos em 428 e posteriormente dos árabes, em meados do século VII, época em que a cidade foi destruída e caiu definitivamente no esquecimento.

sabemos pouco sobre os proprietários e também sobre a sua proveniência. O restauro cuidadoso dos mosaicos permitiu comprovar que o nome Leukaktios foi acrescentado em dois mosaicos da casa numa data posterior, “alterações que sugerem mudança de proprietário e, por norma, um período de ocupação da casa consideravelmente longo”, afirma Jerzy Żelazowski.

Por outro lado, conhecemos alguns dos gostos dos donos da casa. Por exemplo, a sua predilecção por mosaicos, sobre os quais, além das dedicatórias a Leukaktios escritas em grego (uma num medalhão redondo existente no centro do peristilo e outra num painel rectangular sustentado por uma Vitória alada, no centro do triclinium), merecem destaque duas representações de grande beleza: uma delas, bem conservada, de Ariadne adormecida na ilha de Naxos surpreendida por Dioniso e pelo seu séquito, e outra cena que decorava um quarto no piso superior, representando o herói Aquiles na ilha de Esquiro, onde sua mãe, Tétis, o disfarçou de rapariga para evitar que partisse para a guerra. O quarto com o mosaico dionisíaco dispunha também de um requintado arco sírio com duas colunas espiraladas. Além dos mosaicos, as paredes da residência particular encontravam-se pintadas com frescos decorativos, incluindo aves, figuras humanas e imitações de revestimentos de mármore.

A escavação no extremo meridional da Casa de Leukaktios proporcionou em 2006 outro achado sensacional: um tesouro de mais de cinquenta moedas romanas, na sua maior parte sestércios, cuja circulação terminou em meados do século III d.C. durante o reinado do imperador Treboniano Galo.

“Tudo parece indicar que o dinheiro não foi escondido intencionalmente e que a acumulação de moedas se relacionaria com um dos terramotos”, defende Jerzy Żelazowski. “O proprietário das moedas não conseguiu recuperá-las e estas também não foram encontradas durante a segunda fase de ocupação da casa: alguns animais que cavaram a sua toca anteciparam-se aos arqueólogos e dispersaram uma dezena de moedas pelas redondezas.”

Os arqueólogos encontraram igualmente um forno de metalurgia, um dolium (recipiente de terracota para armazenar e transportar alimentos) e recipientes associados à produção de vinho, que mostram a reocupação de zonas da primeira moradia que tinham ficado parcialmente desmoronadas devido ao sismo.

“A actividade artesanal em casas urbanas era um fenómeno vulgar, como ficou demonstrado em Pompeia e também aqui”, observa o arqueólogo polaco. Outra descoberta notável teve lugar numa cisterna debaixo do pátio: encontraram-se fragmentos de mais de uma dezena de esculturas.

“As razões pelas quais estes fragmentos foram lançados para o interior da cisterna podem ser religiosas ou simplesmente práticas”, prossegue o especialista. Não foram encontradas matérias-primas, ferramentas, detritos de produção, nem produtos prontos para consumo, pelo que não deve ter existido uma produção regular, mas provavelmente de curto prazo. “De qualquer maneira, a actividade artesanal indica que provavelmente no século V esta parte da insula, além da zona em redor, perdeu o seu carácter residencial: uma vez em ruínas, as casas nunca voltaram a ser reconstruídas e as suas paredes de pedra foram desmontadas de forma sistemática”, diz.

Nos séculos posteriores ao abandono de Ptolemaida e com a expansão árabe pelo Norte de África, a Líbia e a Cirenaica passaram a ser lugares vedados ao Ocidente. Em 1510, Tripoli foi conquistada pelas tropas espanholas de Pedro Navarro e o domínio cristão durou até 1551, ano em que os turcos otomanos cercaram e tomaram a cidade. Para os viajantes europeus, a entrada na Líbia tornou-se cada vez mais difícil.

“Em teoria, o acesso era possível por mar e por terra, mas todas as rotas se encontravam repletas de perigos. A pirataria generalizada na região do Mediterrâneo levantava muitas dificuldades. Os navios caíam frequentemente nas mãos de piratas e, por isso, a ameaça de cativeiro era bem real. Numerosos viajantes sofreram esse destino”, explica Monika Rekowska, do Instituto de Arqueologia da Universidade de Varsóvia, no livro “Ptolemais in Cyrenaica” [sem tradução portuguesa].

Durante muitos anos, só os viajantes árabes puderam aceder ao território líbio: as cidades gregas e romanas da Cirenaica permaneceram praticamente desconhecidas até ao início do século XVIII, e a sua exploração arqueológica começou algum tempo depois de se ter iniciado noutros países do Mediterrâneo Oriental. Como observa Rekowska, “Cirenaica tinha má reputação, como lugar onde a ausência de uma verdadeira autoridade impedia a segurança dos visitantes”. No entanto, a abundância de ruínas na região excitava a imaginação dos diplomatas e investigadores europeus, em especial dos franceses e britânicos.

“O número de viajantes que atravessava a região só aumentou a partir do início do século XX, em parte devido à criação das principais sociedades geográficas que promoviam a exploração do Norte e Centro do continente africano”, acrescenta a arqueóloga. Já no século XIX, durante a ocupação italiana, foram descobertas as grandes cisternas subterrâneas sob a praça do mesmo nome, recentemente utilizadas como esconderijo pelas forças rebeldes que combatiam Khadafi. Actualmente, o legado deixado na Líbia pela Antiguidade Clássica é de novo terra incognita num país afundado no caos social, em lutas tribais e onde o Estado é quase inexistente. Ainda assim, a Casa de Leukaktios e toda a Ptolemaida são um exemplo imorredouro do engenho humano para sobreviver em ambiente hostil, de como aproveitar ao máximo um recurso escasso e fazê-lo com uma destreza técnica e artística que ainda nos causa assombro e admiração, 1800 anos após a sua criação.

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