Após uma guerra civil de 52 anos, um país destroçado mas esperançoso procura a paz e novas oportunidades em toda a sua área rural.
Texto: Alma Guillermoprieto
Fotografias: Juan Arredondo
“Corre!”, gritou o irmão de Maria Magdalena Padilla à mãe. “Foge imediatamente!” Maria Magdalena, de 10 anos, conhecida como Mayito, conseguia avistar o fumo negro que se erguia do sopé do monte, enquanto os paramilitares, criminosos com uma tendência ideológica de direita, avançavam contra a povoação de El Salado, ateando fogo às casas dos vizinhos à medida que se aproximavam. A mãe de Mayito saltou para a garupa do burro da família com Mayito, enquanto os dois irmãos mais velhos seguiam a pé. Permaneceram escondidos durante uma semana, com pouca água e quase nenhuma comida, nas barracas que as famílias camponesas constroem nos campos desta região. “Lembro-me que nós, crianças, ficámos em silêncio durante todo esse tempo”, conta agora. “Nem os bebés pareciam chorar.”
À distância, a família aterrorizada jamais poderia ter adivinhado toda a dimensão dos acontecimentos que se desenrolavam em El Salado, uma próspera vila segundo os padrões rurais, localizada no centro de um território disputado pelos guerrilheiros de esquerda e os seus adversários paramilitares. O ataque deu origem a um dos mais horríveis episódios das cinco décadas de brutal guerra ideológica na Colômbia.
Os aldeãos que não tiveram tempo para escapar foram agrupados em frente da igreja. Com os familiares obrigados a assistir, as vítimas, acusadas de simpatia com a causa guerrilheira, foram conduzidas ao centro do campo, uma a uma, e torturadas, humilhadas, esfaqueadas e, finalmente, estranguladas ou abatidas a tiro. Os paramilitares espancaram quem chorasse perante o que via. Violaram as mulheres jovens antes de as matarem. Invadiram o centro comunitário e, nesta região do Norte da Colômbia onde a música e a dança são um elemento central da existência, pegaram nos instrumentos da banda local e celebraram cada assassínio com música tocada em decibéis elevados.











O massacre de El Salado e das povoações vizinhas durou seis dias, entre 16 e 21 de Fevereiro de 2000. No final, 66 pessoas jaziam mortas. Ao regressar, a pequena Mayito recuou para não ver as casas carbonizadas e não sentir o cheiro da morte que ali pairava. Desta vez, nenhum familiar próximo se contava entre os mortos, mas a família já fora traumatizada anos antes, quando o pai de Mayito foi assassinado, sob acusação de simpatizar com os guerrilheiros. A mãe empacotou os bens da família, enquanto outros sobreviventes enterravam à pressa os seus parentes em sepulturas colectivas. Passada uma semana, os quatro mil moradores de El Salado tinham fugido, juntando-se a mais dois milhões de deslocados internamente que, nessa época, se viram privados das famílias, dos seus lares e modos de vida.
Aquilo que torna esta história diferente é que a população de El Salado voltou. Num regresso teimoso a esta terra que nada tem de prometida, os saladeros recuperaram-na dois anos após as matanças, desbastando as trepadeiras tropicais, e voltaram a plantar os campos de tabaco que tinham proporcionado rendimentos suficientes num passado pouco distante. Não havia escola para as crianças, mas Mayito Padilla, então com 12 anos, decidiu fundar uma sozinha, incluindo exercícios de alfabetização e tabelas de multiplicação, bem como um curso de história em que os seus 37 alunos passaram em revista as suas próprias histórias, para não se esquecerem dos terríveis acontecimentos do passado recente.
Hoje em dia, El Salado e a Colômbia estão a transformar o seu legado sombrio. A rapariga agora conhecida como “Menina Mayito” estudou duramente para obter uma licenciatura em educação infantil e tornou-se responsável pelas relações comunitárias da sua vila natal. E passado meio século, durante o qual a guerra se repetiu de maneira cíclica na cidade, após quatro anos de morosas negociações, o grupo de guerrilheiros mais antigo do país, as Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia (ou FARC, o acrónimo castelhano) entregaram as suas últimas armas em Junho de 2017 a uma força da Organização das Nações Unidas. Agora vai ser preciso conquistar uma paz duradoura, centímetro a centímetro. Com a sua iniciativa adiantada de reconstrução, El Salado deu às pessoas esperança de que também o país conseguirá sarar.
Nos dois séculos volvidos desde que se tornou independente de Espanha, a Colômbia raramente viveu sem conflitos violentos. Na opinião de algumas pessoas, o mais recente ciclo sangrento começou no dia 9 de Abril de 1948, com o homicídio do popular líder do Partido Liberal, Jorge Eliécer Gaitán. O assassínio desencadeou motins terríveis e uma vaga de dez anos de matanças partidárias conhecida como La Violencia.
Em 1957, foi celebrado um acordo para pôr termo à violência, que deu origem a cerca de uma década de paz relativa. Nas cidades, poucos repararam que algumas dezenas de famílias camponesas do Partido Liberal tinham sido radicalizadas por um agressivo organizador comunista. O exército, porém, notou, tal como o presidente em funções. Em 1964, uma operação militar integrando milhares de soldados arrasou as pequenas e precárias posições do grupo liberal nas faldas dos Andes. Ainda mais radicalizados devido aos bombardeamentos, os camponeses adoptaram o nome FARC, empenhando-se numa guerrilha contra o Estado que durou 52 anos.
O pequeno bando de camponeses radicais, sem armamento digno de nota nem formação militar propriamente dita, foi pouco a pouco recrutando os vizinhos e aldeãos das redondezas, até que o seu número de efectivos ultrapassou as expectativas mais fantasiosas. Na década de 1980, as FARC voltaram a crescer, graças à guerra contra a droga iniciada nos EUA e, em grande medida, travada no México e nos países andinos, onde a coca é cultivada. As folhas do arbusto folhoso da coca são medicinais e sagradas para as populações nativas dos Andes. São também o ingrediente principal da cocaína, um composto químico desenvolvido pela primeira vez na Alemanha de meados do século XIX. Quando o cultivo da coca foi classificado como actividade criminosa, mais de cem anos depois, os camponeses andinos limitaram-se a transferir aquela que era, de longe, a sua cultura mais lucrativa para regiões cada vez mais distantes do vastíssimo território interior da Colômbia. Havia sempre alguém sedento de sangue e disposto a pagar um preço elevadíssimo pela planta.
Devido à incessante procura de drogas recreativas de Nova Iorque a Xangai, a guerra contra as drogas teve como consequência um crescimento gigantesco dos preços. As FARC pressentiram a oportunidade e entraram no jogo. A troco de protecção dada aos camponeses contra os traficantes implacáveis e garantindo preços normalizados pelas folhas de coca por eles colhidas, as FARC lançaram uma taxa de exportação sobre cada quilograma de pasta de cocaína transformada que saía dos territórios sob seu controlo.
Em breve as tropas das FARC possuíam uniformes, botas padronizadas e armamento de combate moderno. Os seus efectivos subiram para um número estimado em vinte mil homens. Os guerrilheiros nadavam em dinheiro e os seus líderes, como é inevitável, tornaram-se corruptos, malévolos e gananciosos. Dedicaram-se à extorsão, ao rapto e à actividade bombista. Atraindo sobre si a atenção dos grupos paramilitares nascidos para combatê-los, os guerrilheiros das FARC causaram grande sofrimento aos próprios camponeses. Os assassinos paramilitares em El Salado acusaram os aldeãos de simpatia pela causa das FARC e foram as FARC que, uma vez militarmente encurraladas num recanto territorial, finalmente assinaram um acordo de paz com o governo da Colômbia no dia 24 de Novembro de 2016, entregando armas em Junho do ano passado.
Desde o deserto peninsular de Guajira aos altos páramos andinos, onde é possível andar literalmente com a cabeça nas nuvens; desde as planícies tropicais junto do Atlântico às profundas florestas verdejantes do Pacífico, este é um país deslumbrante, com apenas 48 milhões de habitantes a ocuparem um território quase duas vezes maior do que França. Na Colômbia, existem mais variedades de colibris, borboletas, orquídeas, rãs e quaisquer outros seres vivos tropicais imagináveis do que em qualquer outro lugar do planeta.
Aqui, muita gente vive em pobreza escandalosa, particularmente notória quando saímos das cidades modernas e nos deslocamos, por exemplo, à região de Chocó, no Pacífico, cujas populações índias e afro-colombianas ainda percorrem muitos rios de canoa, por existirem escassas estradas. Aos visitantes da cidade turística de Cartagena raramente é contado que existe ali um bairro periférico com o nome de Nelson Mandela, onde cerca de 40 mil pessoas, na sua maioria fugidas à violência em lugares como Chocó e El Salado, vivem em condições vergonhosas. Quando se sobrevoa o país verde-esmeralda, avistam-se, por todo o lado, rios refulgentes, vales profundos cobertos por um mosaico de explorações cafeeiras e pastagens luxuriantes que se estendem como mantos de veludo na direcção da Amazónia. Mas não se conseguem ver as minas terrestres.
Após o fracasso de uma ronda de negociações de paz, no início da década de 2000, a maré da guerra virou-se contra as FARC. Em resposta, estas intensificaram o recurso às minas (dispositivos explosivos tecnicamente improvisados, por serem artesanais) para criarem obstáculos à feroz perseguição movida pelo exército. As minas são recordações amargas do combate de guerrilha e a sua erradicação é uma tarefa decisiva que o governo enfrenta. Com demasiada frequência, elas são deflagradas acidentalmente, deixando uma criança cega pelos estilhaços ou um agricultor sem uma perna ou um braço e portanto incapaz de sustentar a família.
Segundo o Fundo HALO, uma organização mundial de desminagem, a Colômbia tem ocupado constantemente o segundo lugar, logo atrás do Afeganistão, como o país do mundo com o maior número de vítimas causadas por minas: as minas mataram ou feriram mais de 11.400 colombianos desde 1990.
“As minas foram mais prejudiciais para os camponeses do que para o exército”, disse-me Álvaro Jiménez, perito em minas. Álvaro é, ele próprio, um antigo guerrilheiro (a organização a que pertencia, o M-19, entregou as armas ao governo em 1990). Há 18 anos, tornou-se o responsável pela Campanha Colombiana Contra as Minas, na qual desenvolve e patrocina programas de redução dos prejuízos em zonas minadas pelos guerrilheiros. “As minas geram medo”, afirmou. “O medo de se sair de casa de noite em busca de um médico para assistir um doente ou de levar os filhos à escola. Por norma, os camponeses vivem numa relação harmoniosa com a paisagem que os rodeia. As minas destruíram essa relação.”
Álvaro Jiménez sugere-me que viaje até à região de Nariño, um território de colinas ondulantes, cobertas por uma manta de retalhos de campos verde-claros, e, de seguida, que mergulhe nos trópicos selvagens da orla costeira do Pacífico. Na longínqua cidade de Ricaurte, fui apresentado a Cristian Marín, membro da nação indígena dos awá, que vivem numa reserva florestal situada a pouca distância. Pequeno, pele cor de canela, Cristian é um dos mais jovens líderes eleitos pelos awá para a resolução de conflitos e relacionamento com o mundo exterior.
Fala em voz sussurrada e utiliza eufemismos: por isso, sinto dificuldade em obter uma noção do sofrimento suportado pela sua comunidade sem recorrer a perguntas deselegantes. E foi só ao responder a este tipo de perguntas que ele referiu um confronto entre o exército e os guerrilheiros, desencadeado perto do complexo familiar da sua família, no decurso do qual, como de costume, nenhum dos contendores saiu vitorioso.
“Como de costume, ao retirarem, os guerrilheiros minaram o terreno”, disse Cristian. “Por isso, as pessoas decidiram não sair mais de casa. Ficaram com medo.” Tolhidas pelo medo, incapazes de trabalhar nos campos ou de irem ao mercado para se abastecerem de víveres, durante vários meses não se aventuraram fora dos seus quintais. Cristian Marín não me contou que ele próprio perdera quatro familiares devido ao rebentamento de minas. Pareceu-me tão incapaz de optimismo como uma árvore de voar.
Conversámos à sombra de uma figueira folhosa, numa praça pública rodeada por edifícios municipais incaracterísticos. Cristian trabalhava em Ricaurte como representante dos awá, recrutado para receber formação em direitos humanos. “É um trabalho político que eles querem fazer”, disse, encolhendo os ombros. “Há orçamento para isso, pois os noruegueses estão a dar-nos dinheiro.” No entanto, reconheceu, o esforço estava a ajudar os cidadãos awá a obterem documentos legais e a apresentarem queixas contra violações dos direitos humanos. Como parte integrante do acordo assinado entre o governo e as FARC, um programa conjunto do exército e dos guerrilheiros desmobilizados está a inicar o lento e perigoso processo de erradicação das minas. Os novos tempos, já livres de combates, também constituem uma grande vantagem, afirmou: agora é mais fácil para as crianças awá beneficiarem, pelo menos, da escolarização de baixo nível que lhes é disponibilizada. “Quando andei na escola, ficava sempre atrasado nos estudos por passar demasiado tempo a fugir aos combates, escondido debaixo de um colchão”, contou Cristian.
Nas cidades em crescimento acelerado, com sofisticados restaurantes e galerias de arte e edifícios projectados por arquitectos, os colombianos conseguiam esquecer-se de que havia guerra. Mesmo agora, que o investimento estrangeiro deixou de entrar a conta-gotas e passou a jorrar abundantemente, é difícil lembrar que esta é uma economia modesta, com um governo que gere um orçamento dolorosamente inadequado.
Em Bogotá, conversei com um famoso senador colombiano, Antonio Navarro Wolff, num gabinete acanhado com uma sala de espera sobrelotada, cujo espaço mal dava para um eremita, e um sistema telefónico que parecia ter sido instalado na década de 1980. Navarro Wolff, outrora governador de Nariño, é uma espécie de perito em pos-conflicto, pois foi chefe da antiga organização de guerrilha M-19. O seu grupo desmobilizou-se com sucesso e ele participou em muitas negociações de paz que tiveram lugar posteriormente.
Pergunto-lhe qual a tarefa pós-conflito que o governo deveria realizar de imediato, tendo em conta as restrições de orçamento e de recursos humanos: restituição das terras aos camponeses, despejados das suas propriedades pelos paramilitares? Educação e ressocialização dos cerca de sete mil guerrilheiros desmobilizados? Exumação e identificação das dezenas de milhares de “desaparecidos” da Colômbia? Desminagem?
“A questão principal, e a mais urgente, é apenas uma”, respondeu Navarro Wolff. “Quem vai ocupar as terras abandonadas pelas FARC? O governo ou os novos bandos de criminosos?”
Os guerrilheiros e os paramilitares combateram pelo controlo dos territórios isolados, ideais para o cultivo da coca e do tipo de papoila utilizada no fabrico da heroína. “Os guerrilheiros podem ter partido, mas a terra ficou”, continuou Navarro Wolff. Como também ficou o comércio ilegal de drogas. “Agora, precisamos de polícia: na fase pós-conflito, a tarefa já não é matar criminosos, mas garantir que não persistam novos criminosos. Para isso, precisamos de forças de segurança, mas só existem dez mil polícias (na melhor das estimativas)” nas zonas rurais, explicou.
Por enorme ironia, nesta guerra complexa, as FARC talvez acabem por ser o mais barato de dois males, comparado com o custo associado ao controlo das selváticas novas quadrilhas de traficantes de droga que entretanto se assenhorearam dos territórios por cuja posse guerrilheiros e paramilitares outrora combateram. Segundo estimativa do governo, 5% das forças de guerrilha recusaram-se a depor as armas e poderão acabar por se integrar nas fileiras das chamadas bacrim (abreviatura para bandas criminales). Estas quadrilhas dedicam-se actualmente ao tráfico de droga, mas estão lentamente a envolver-se nos antigos negócios marginais dos guerrilheiros e dos paramilitares: extorsão, rapto e tráfico de seres humanos.
E, como me contara Cristian Marín na praceta de Ricaurte, “com os guerrilheiros, pelo menos existia um comando central com o qual podíamos negociar” o horário de recolher, por exemplo. Isso não acontece com os bandos de criminosos. “Eles limitam-se a impor ‘plata o plomo’ [prata ou chumbo, significando subornos ou balas]”, afirmou Navarro. “Qualquer pessoa acabará por preferir prata porque o chumbo é… demasiado pesado.”
Luis Torres tem um sonho: uma escola tcnica na sua vila natal de El Salado, uma escola que dê formação aos midos que andam agora de moto, de um lado para o outro, sem um propsito, e que lhes proporcione algo melhor do que uma vida de pobreza extrema.
Como irão viver os 23% de colombianos das regiões rurais? Ao longo de meio século, mais de sete milhões de pessoas abandonaram as suas casas nas zonas rurais mais afectadas pela violência. Os esforços de reconstrução e reparação desenvolvidos pelo governo concentram-se nestas regiões. El Salado é um bom sítio para avaliar os primeiros resultados.
Localizada a duas ou três horas de distância da orla costeira caribenha, a vila ainda não tem um aspecto impressionante: uma ravina atravessa o centro da povoação e um aqueduto a precisar de reparações tornava o abastecimento de água problemático quando a visitei. Mesmo assim, para um conjunto de moradores no exílio, a saudade da terra natal foi suficientemente forte para se juntarem, num grupo com duas mil pessoas e reivindicarem a sua terra.
Há 17 anos, Luis Torres liderou a campanha de regresso e, quando os primeiros 130 habitantes concordaram em voltar a El Salado, ele angariou os fundos necessários para alugar as camionetas que os trouxeram para casa. De 71 anos, raciocínio ágil, rosto desgastado e uma vivacidade surpreendente, aquando da minha visita era o principal intermediário entre a comunidade e a Fundação Semana, a qual, durante muitos anos, coordenou os esforços de ressurreição de El Salado.
A princípio, Luis viu-se obrigado a negociar a licença de reinstalação dos moradores com um destacamento das FARC que então controlava a região. Posteriormente esteve encarcerado na prisão durante três meses, acusado de “rebelião”, partindo então para um longo exílio na Holanda, na Suíça e na Espanha, antes de sentir que era seguro regressar. Agora, irradiava felicidade, enquanto me mostrava os lugares da sua povoação: uma torre de comunicações móveis, um estabelecimento de ensino pré-escolar, uma centena de habitações novas para as famílias mais pobres da comunidade, dois ou três supermercados, uma igreja evangélica, uma rua novamente cheia de vida, com crianças a corrererem e vizinhos a darem os bons-dias. “Nos primeiros tempos após o regresso, os medos estavam bem despertos”, recorda Luis. Só recentemente é que as pessoas começaram a deixar a porta aberta.”
Tanto é possível constatar sucessos heróicos contra todas as probabilidades, como descrever uma recuperação modesta apesar dos milhões de euros recebidos dos doadores, sem que muitos dos problemas mais elementares da localidade tenham sido resolvidos. E El Salado é apenas uma entre milhares de outras pequenas vilas com dificuldades semelhantes. Foi apenas há dois anos que El Salado conquistou o seu melhoramento mais importante: um troço de estrada asfaltada com 19 quilómetros, que reduziu a 30 minutos o trajecto até à mais importante cidade das redondezas e à auto-estrada (antes, poderia demorar quatro horas). Talvez a transformação de El Salado tenha simplesmente gerado mais uma comunidade sem condições adequadas de abastecimento de água, esgotos, educação e serviços de cuidados de saúde e onde um número demasiado elevado de camponeses não possui títulos de propriedade das terras que possivelmente ocupa há várias gerações.
Em contrapartida, Luis Torres tem um grande sonho: vê-se no meio da multidão, aplaudindo, enquanto é cortada a fita de inauguração de uma escola técnica na sua vila natal, uma escola que dê formação aos miúdos que andam agora de moto, de um lado para o outro, sem um propósito, e lhes proporcione algo melhor do que uma vida de pobreza extrema. “Quando vir essa fita ser cortada, morrerei em paz”, afirmou.
No centro da nova Colômbia, os antigos guerrilheiros que desempenharam um papel tão importante na criação da velha Colômbia têm sonhos grandiosos. “Quero contribuir para criar igualdade, não só para nós, mas também para todos os colombianos”, afirmou um jovem cujo antigo nome de guerra era Alex. Estamos sentados num miradouro, contemplando toda a extensão do vale, os campos verdejantes e a luz dourada. Atrás de nós, fica a cozinha comunitária, de estrutura elementar, e, à nossa volta, um complexo habitacional novo (um dos 26 construídos do zero nos últimos seis meses) concebido para alojar cerca de trezentos guerrilheiros desmobilizados. Os complexos habitacionais fazem parte do acordo de 297 páginas laboriosamente negociado entre os chefes da guerrilha e o governo. Irão supostamente contribuir para que cerca de sete mil combatentes façam uma transição suave para a sociedade de consumo contemporânea, agora que depuseram as suas armas.
Apesar da qualidade improvisada dos dormitórios, Alex mostrava-se verdadeiramente satisfeito com as novas instalações. Apenas com 25 anos, dolorosamente tímido à frente de estrangeiros e completamente desconhecedor dos ardis do capitalismo, parecia e comportava-se como um adolescente, como se a sua vida real tivesse parado quando fugiu da família para se juntar às FARC, com 15 anos. “Sem dinheiro, sem trabalho, sem oportunidades de estudar, a minha família era pobre”, explicou. Durante os dez anos vividos como guerrilheiro, nunca dormiu sob um tecto, nunca viu a família, nunca teve dinheiro. “Olhando para trás, esses anos foram de sofrimento e de dificuldades”, afirmou. Dormindo a maior parte das vezes numa rede, protegido da chuva por um pedaço de plástico, todos iam dormir às seis da tarde, não fosse qualquer conversa, risada ou cigarro aceso denunciar a localização do grupo. Não era permitido ouvir rádio, porque qualquer agente infiltrado poderia facilmente instalar um microchip localizador num deles. Cruzando permanentemente o país com mochilas de 50 quilogramas às costas. No primeiro dia de formação, o seu grupo armou uma emboscada a um posto militar e ele viu morrer três dos seus jovens camaradas.
“Hoje sentimos a mudança sobretudo na tranquilidad”, afirmou. E depois há os dormitórios: “Agora cada um de nós tem a oportunidade de organizar o seu quartinho como quer. Os horários de dormir mudaram, porque alguns de nós querem ver a telenovela, outros um jogo de futebol.” Mostrou-se preocupado pelo facto de o subsídio mensal do Estado, de cerca de 245 euros por combatente desmobilizado, ser difícil de administrar adequadamente. “Agora que somos civis, temos de aprender a gerir as nossas vidas e sabemos que, na vida real, as pessoas precisam de dinheiro para tudo”, resumiu.
Se o governo tivesse sido mais ousado, ou mais rico, ou menos limitado pelos obstáculos da oposição ao acordo de paz, no Congresso e entre os colombianos em geral, cada antigo combatente teria recebido um montante maior. O subsídio mensal terminará em Julho de 2019, tal como os territórios de desmobilização, onde a missão de verificação das Nações Unidas e a polícia nacional garantem a segurança e a protecção. Quase me pareceu injusto perguntar a Alex, ainda a adaptar--se às realidades básicas da sua nova vida, como via ele o futuro após o período de transição, mas o assunto era evidentemente algo que ele e os companheiros discutiam constantemente.
“Aquilo que mais me preocupa é a segurança”, respondeu de imediato. Em meados da década de 1980, as negociações fracassadas com as FARC incluíram tréguas, uma amnistia e a oportunidade de criar um partido político, que se chamou Unión Patriótica. Ainda nessa década, mais de mil militantes do partido foram assassinados. Agora, as FARC vão transformar-se num novo partido, o qual, supostamente, irá orientar os ex-combatentes, ganhar eleições e conduzir a Colômbia ao mundo novo que, no entender de Alex, os seus anos de luta tornaram possível. Quando se exprime naquilo a que poderíamos chamar a sua voz heróica, Alex fala ponderadamente sobre um futuro de esforço colectivo e alegria colectiva, mas, quando apanhado desprevenido, sonha alto com a quintinha que, assim o espera, os chefes das FARC lhe vão arranjar. Também gostaria de estudar, concluir o ensino primário e obter o diploma do secundário. A vida é complexa e incerta para todos nos dias que correm, mas quem sabe? Pode ser que no fim tudo acabe por dar certo.