barco romano

Construída para comércio fluvial no século I d.C., uma embarcação romana com 31 metros de comprimento foi retirada em 2011 do rio Ródano, na cidade francesa de Arles. Imagem compósita, Museu Departamental de Arles Antiga.

Texto: Robert Kunzig
Fotografias: Rémi Bénali

Os romanos tinham um grave problema de resíduos, embora, pela nossa bitola, o lixo da Antiguidade tenha bom aspecto. O problema deles eram as ânforas.

Precisavam de milhões destas vasilhas curvilíneas para enviar vinho, azeite e molho de peixe para todo o império e frequentemente a tara não era recuperável. Por vezes, nem sequer se davam ao trabalho de retirar a rolha: era mais rápido golpear o gargalo, ou o fundo, esvaziar o conteúdo e deitar fora o vasilhame.

Em Roma, existe uma colina de dois hectares, com cinquenta metros de altura, composta exclusivamente por ânforas fragmentadas. Eram atiradas para as traseiras dos armazéns ao longo do rio Tibre. Os arqueólogos espanhóis que têm escavado esta lixeira crêem que ela começou a crescer provavelmente no século I depois de Cristo, quando o próprio império caminhava para o seu apogeu.

Aproximadamente na mesma época, no rio Ródano, perto de Arles, no Sul da actual França, os estivadores agiam de maneira um pouco diferente: arremessavam o vasilhame vazio para o rio. No século I, Arles era uma próspera porta de entrada na Gália Romana. Mercadorias provenientes de todas as regiões do Mediterrâneo eram ali transferidas para barcaças fluviais e destinadas a abastecer os confins setentrionais do império. “A cidade ficava na encruzilhada de todos os caminhos, recebendo produtos de todo o lado”, diz o arqueólogo David Djaoui, do museu de antiguidades local.

Júlio César concedera a cidadania romana ao povo de Arles, como recompensa pelo seu apoio militar. Actualmente, no centro da cidade, na margem esquerda do Ródano, ainda é possível visitar o anfiteatro com capacidade para 20 mil espectadores onde decorriam combates de gladiadores. Contudo, do porto que financiava a actividade, estendendo-se aproximadamente pela margem direita do rio, pouco resta: apenas uma sombra no leito do rio, com a forma de uma risca grossa, feita de lixo romano.

ânforas

Na lixeira, abundavam as ânforas. “Às apalpadelas no labirinto”, como diz a arqueóloga Sabrina Marlier, os mergulhadores recuperaram milhares de ânforas. Este exemplar ibérico continha molho de peixe.

Lixo para eles, mas não para nós. No Verão de 2004, um mergulhador que procurava riquezas arqueológicas reparou num volume de madeira que sobressaía do lodo, a quatro metros de profundidade. Tratava-se, como veio a descobrir-se, da alheta de bombordo do casco de uma embarcação com 31 metros. Estava quase intacta, encontrando-se na sua maior parte ainda enterrada sob as camadas de lodo e ânforas que a tinham protegido durante quase dois mil anos. Retivera no seu interior o último carregamento transportado e, até, alguns objectos pessoais deixados pelos tripulantes. E, graças a mais uma série de pequenos milagres, emergiu do lixo – desta vez segura, numa ala recém-inaugurada do Museu Departamental de Arles Antiga.

Em Junho de 2013, quando os peritos de restauro se apressavam a aprontar a embarcação para a sua apresentação ao público, estive uma semana numa pequena casa de pedra de Arles, com vista para o Ródano. O mistral soprava sem cessar. De noite, acordava com o barulho das persianas a bater e com o ruído oco de uma garrafa de plástico a rolar pela pedra do cais.

Do alto do terraço, no telhado, o olhar espraiava-se até ao outro lado do rio onde, na margem direita, eu e o fotógrafo Rémi Bénali tínhamos descoberto numa visita anterior dois grandes pregos ferrugentos, forjados à mão – pequenas tachas, talvez seja uma descrição mais adequada. Então, como agora, a doca apresentava-se vazia, à excepção de um grande contentor de transporte. Em 2011, porém, aquele contentor funcionara durante sete meses como colmeia dentro da qual mergulhadores e arqueólogos entravam e saíam, de e para o rio, todos os dias, aspirando o lodo que cobria a embarcação romana, serrando-a à mão em dez segmentos, e içando-os um a um para fora de água com uma grua. As tachas tinham-se soltado de uma das madeiras encharcadas, o que significa que eram contemporâneas dos pregos que tinham cravado Jesus na cruz.

Barco Romano

Olhando de cima o Ródano, cinzento, de ar doente e agitado por redemoinhos velozes, tentei imaginar-me a querer mergulhar neste rio, o mais poderoso de França. Não fui capaz. Luc Long também não, a princípio. Este arqueólogo pertence à equipa que descobriu a embarcação. Há décadas que mergulha no Ródano, mas a primeira vez ainda lhe causa pesadelos.

Aos 61 anos, Luc trabalha na DRASSM, o organismo da administração pública francesa incumbido de proteger o património subaquático. O arqueólogo já trabalhara em destroços de navios por todo o Mediterrâneo, mas, em 1986, o seu amigo, mergulhador e caçador de destroços Albert Illouze lançou-lhe o desafio de mergulhar no seu rio natal. Há séculos que os habitantes de Arles viraram as costas ao Ródano, explicou-me. Isso sucedeu ainda antes de as estradas e o caminho-de-ferro reduzirem o comércio por via fluvial. Habituaram-se a olhá-lo como fonte de inundações e doença e Luc foi educado nessa tradição. “Não tinha vontade de mergulhar no Ródano”, contou.

Luc e Albert entraram no rio numa manhã de sábado, em Novembro, no ponto oposto à actual localização do museu de antiguidades. A água estava a 9 graus e tinha espuma e mau cheiro, fruto das saídas de esgoto nas proximidades. Luc não conseguia ver mais de um metro à sua frente. A corrente forte batia-lhe e assustava-o. A aproximadamente seis metros de profundidade, segurou-se à capota de um camião. Lentamente, foi percorrendo às apalpadelas o habitáculo até chegar ao lado do condutor. Pousada sobre o banco, viu uma ânfora romana. De seguida, ele e Albert nadaram sobre um vasto campo de ânforas. Luc nunca vira tantos exemplares intactos e desde então nunca mais parou de cartografar a lixeira romana. Mas o Ródano nunca se tornou um sítio agradável para trabalhar. Luc e os seus mergulhadores tiveram de habituar-se ao ambiente lúgubre, aos poluentes e aos patogénios. No meio dos carrinhos de compras e destroços de automóveis, registavam-se encontros raros, mas inquietantes, com siluros gigantes. Atingindo 2,5 metros de comprimento, as feras estavam à espreita no lodo do fundo e mordiam a barbatana aos mergulhadores. “Quando somos puxados por uma barbatana, vivemos momentos de grande solidão”, disse. “São segundos que nunca mais esquecemos.”

barco romano

O fundo chato era composto por tábuas de carvalho e os costados feitos a partir de duas metades de um tronco de abeto. Cerca de mil e setecentos pregos foram utilizados para uni-los. Apenas uma parcela da ré fora arrancada pelo rio.

Durante os primeiros 20 anos do seu trabalho, ninguém prestou muita atenção ao que fazia. Em 2004, quando a sua equipa descobriu a embarcação Arles-Rhône 3, não fazia ideia de que alguma vez pudesse haver dinheiro disponível para retirá-la do rio. Ele e um colega serraram um pedaço da parte exposta, que foi minuciosamente examinada. Em 2007, três arqueólogos mais jovens, Sabrina Marlier, David Djaoui e Sandra Greck, começaram a estudar o Arles-Rhône 3. Enquanto davam início aos mergulhos no navio, Luc examinava o resto da lixeira, cerca de cinquenta metros a montante. Do outro lado do rio, mesmo em frente ao que hoje é o centro de Arles, começou a descobrir fragmentos da cidade antiga: blocos monumentais de pedra, incluindo o capitel de uma coluna coríntia, sobre os quais conseguiu descortinar rastos de desgaste provocados pelo mistral. Começou igualmente a encontrar estátuas: uma Vénus aqui, um gaulês cativo acolá. As notícias começaram a propagar-se. A polícia aduaneira francesa alertou Luc para a possibilidade de os ladrões de antiguidades o terem sob vigilância. Quando os mergulhadores descobriram uma estátua em tamanho real de Neptuno, deus dos mares e protector dos marinheiros, retiraram-na do rio a coberto da noite.

Antes de terminar a campanha, o mesmo mergulhador que encontrara a Arles-Rhône 3, Pierre Giustiniani, descobriu a estátua que haveria de celebrizar a embarcação: um busto de mármore com a aparência de Júlio César. Os retratos de César são surpreendentemente raros. Este talvez tenha sido o único sobrevivente dos esculpidos em vida de César – possivelmente depois de ele conceder a Arles o estatuto de colónia romana, abrindo caminho a muitos séculos de prosperidade. É preciso compreender, disse Claude Sintes, director do museu de antiguidades: Arles é uma cidade pequena, senão mesmo uma cidade pobre. A oficina de locomotivas encerrou em 1984, a fábrica de arroz e a fábrica de papel na última década. Resta apenas o turismo. Os turistas acorrem à cidade em parte por causa de Van Gogh, que aqui pintou durante algum tempo. Mas a urbe localiza-se sobre jazidas significativas de ocupação romana. É quase impossível cavar no jardim sem levantar uma pedra ou um ladrilho romanos. A exposição organizada em torno do busto de César mostrou que o tema tinha qualidade comercial. “O êxito da exposição foi assombroso”, conta. “Quando uma cidade como a nossa consegue atrair 400 mil turistas, os políticos compreendem o retorno económico.”

No Outono de 2010, perto do fim da exposição de César, esses políticos procuravam… mais cultura onde investir: a União Europeia atribuíra à Provença o estatuto de Capital Europeia da Cultura. Arles aderiu a essa acção promocional. De repente, nove milhões de euros ficaram disponíveis para construir uma nova ala no Museu e para lá pôr a embarcação romana. Só havia uma condição: o projecto teria de ser finalizado até 2013.

O prazo seria suficiente para quem nada soubesse sobre madeira antiga, nem sobre o Ródano. O lodo protegera a madeira da decomposição microbiana, mas a água dissolvera a celulose e preenchera as células da madeira, deixando o navio mole e esponjoso. “A madeira só se aguentava devido à água”, afirmou Francis Bertrand, director do ARC-Nucléart, um gabinete de restauro e conservação. “Se a água evaporasse, toda a estrutura se desagregaria.” A solução encontrada consistiu em manter a madeira imersa em polietileno glicol durante meses e depois congelá-la a seco, infundindo-a gradualmente com o polímero antes de retirar a água. No entanto, a embarcação teria de ser cortada em segmentos de dimensão suficientemente reduzida para as câmaras de liofilização. E o processo demoraria quase dois anos.

Por outras palavras, a ideia deixava apenas disponível a temporada de campo de 2011 para extrair o navio do Ródano. “O projecto estava condenado ao fracasso”, afirmou Benoît Poinard, o responsável pelo sítio arqueológico. Em princípio, pode-se mergulhar com segurança no Ródano entre finais de Junho e Outubro: no resto do ano, a corrente é demasiadamente forte. Três ou quatro meses não bastariam para concretizar a escavação.

Chegou-se então a 2011. Nesse Inverno, nevara pouco nos Alpes e na Primavera choveu pouco. A corrente do Ródano apresentava-se tão calma que a equipa de Sabrina Marlier entrou na água no início de Maio. A visibilidade atingiu uns quase inéditos 1,5 metros. Sabrina, que até então nunca se tinha afastado da embarcação, reparou pela primeira vez que andara quatro anos a trabalhar ao lado de um carro abandonado. A sua equipa trabalhou sem parar até Novembro, perdendo apenas uma semana devido a más condições meteorológicas. A tarefa foi cumprida. “Duas horas depois de acabarmos, o Ródano ficou impraticável para o mergulho durante todo o Inverno”, contou Benoît.

No final da temporada de campo, quando os especialistas em restauro da ARC-Nucléart desmontavam a proa do navio sobre a doca, descobriram um denário de prata do tamanho de uma moeda de dez cêntimos. O construtor do navio selara a moeda entre duas tábuas para lhe dar sorte. O que obteve... dois mil anos mais tarde. Quando a Arles-Rhône 3 naufragou, transportava 30 toneladas de pedra para construção – lajes planas e irregulares de calcário, oriundas de uma pedreira em Saint Gabriel, a norte de Arles. Destinavam-se provavelmente a um local de construção na margem direita do rio, num terreno agrícola pantanoso a sul de Arles.

O navio jazia apontando para montante, contudo, e não para jusante, mostrando que estivera amarrado ao cais quando se afundou. Quando a cheia abrandou, a nuvem de sedimentos provocada pela turbulência voltou a assentar no fundo, envolvendo a embarcação numa camada fina de argila com não mais do que 20 centímetros de espessura.

Foi nessa argila que Sabrina e a sua equipa encontraram os objectos pessoais dos tripulantes. Um podão para cortar lenha da fogueira de cozinha. Um dolium, ou grande pote de barro, cortado a meio para servir de grelhador. Um prato e um jarro cinzento. “É isso que torna este navio excepcional”, afirmou Sabrina Marlier. “Falta-nos o capitão ao leme. Fora isso, porém, temos tudo.” O mastro, com vestígios do desgaste provocado pelos cabos de reboque, é para ela o achado mais precioso. A este instantâneo do navio, os quase novecentos metros cúbicos de lodo e lixo romano que acabaram por enterrá-lo acrescentam uma imagem acelerada da vida comercial de Arles.

No depósito do museu, eu e David Djaoui caminhámos ao longo de extensas filas de ânforas. “Vai ser preciso estudar tudo isto”, afirmou. Os arqueólogos já tinham devolvido 120 toneladas de fragmentos de cerâmica ao leito do rio, colocando-as no buraco aberto pela retirada do navio. Interroguei David sobre o destino das pedras para construção. Eram excessivamente pesadas para o navio restaurado, pelo que foram criadas réplicas. David conduziu-me às traseiras do museu. As pedras lá estavam, junto a um caixote de lixo, aguardando a ocasião para serem devolvidas ao rio.

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