Pensa-se que Mona Lisa de Leonardo retrata Lisa Gherardini, mulher de Francesco del Giocondo, um mercador de seda florentino. Todos os anos, milhões de visitantes acotovelam-se para a ver no Museu do Louvre, em Paris. O quadro, protegido por uma espessa camada de vidro que tem de ser limpa com regularidade, nunca foi restaurado.
Quinhentos anos após a sua morte, a criatividade assombrosa e a inovação de Leonardo da Vinci na ciência, nas artes e na engenharia continuam a maravilhar-nos.
Texto: Claudia Kalb
Fotografias: Paolo Woods e Gabriele Galimberti
Num instante, os séculos colidem. É um momento em nada comparável às experiências que já vivi. Vim ao Castelo de Windsor visitar a colecção de desenhos de Leonardo da Vinci pertencente à rainha.
Do lado de fora das muralhas altas, os turistas tiram selfies e inspeccionam as bugigangas expostas nas lojas de lembranças. No interior, uma vez transposto o portal em arco e decorado com gárgulas, Leonardo conduz-me de regresso ao Renascimento.
Quase consigo ouvir os sussurros do artista, ao contemplar um álbum de cabedal, encadernado em finais do século XVI, na majestosa sala das gravuras do castelo. Decorações de ouro adornam a lombada do volume, com seis centímetros e meio de largura. Na capa, manchada e desgastada pelas dedadas imperceptíveis de gerações sucessivas, lê-se: Disegni di Leonardo da Vinci Restaurati da Pompeo Leoni (desenhos de Leonardo da Vinci, restaurados por Pompeo Leoni).
Ninguém sabe ao certo em que circunstâncias este álbum chegou a Inglaterra, mas a sua proveniência é inequívoca: o escultor italiano Leoni adquiriu os desenhos de Leonardo ao filho de Francesco Melzi, aluno dedicado do artista, e encadernou-os em, pelo menos, dois volumes. Em 1690, a Encadernação Leoni, como é conhecida, foi incorporada na Royal Collection, com os seus 234 fólios mostrando as divagações da mente curiosa de Leonardo.
À medida que Martin Clayton, responsável pelas gravuras e desenhos da Royal Collection Trust, vai dispondo diante de nós uma selecção das páginas – actualmente separadas em 60 caixas – o âmbito da temática abrangida por Leonardo desdobra-se de forma grandiosa: botânica, geologia, hidráulica, arquitectura, engenharia militar, design de vestuário, geometria, cartografia, óptica, anatomia. O artista desenhava esboços para compreender fenómenos desconhecidos, explorando os enigmas do universo a tinta, giz e ponta de prata.













Os desenhos são arrebatadores pela sua lucidez. O mais pequeno, um fragmento menor do que um polegar, apresenta um tronco feminino, em poucos traços subtis. O mais icónico, ternamente traçado a sanguínea e hachura, representa um feto enrolado sobre si no interior do útero.
Tudo é posto à prova com precisão visual: um estudo de panejamentos para Nossa Senhora; morteiros bombardeando uma fortaleza; a umbra e a penumbra de uma sombra; crânio, o coração, um pé e as variantes do rosto humano – desde a beleza radiosa de Leda às feições desgastadas de um velho.
“O aspecto mais evidente dos desenhos de Leonardo, em algumas das suas folhas, é a maneira totalmente livre de saltar de um tópico para outro”, afirma Martin Clayton. “É fascinante ver uma mente trabalhar desta forma extraordinariamente abrangente.”
Leonardo procurava vorazmente o conhecimento. As suas listas de tarefas incluíam entradas como “fazer óculos para ver a Lua maior” e “descrever a causa do riso”, ao mesmo tempo que tentava encontrar respostas para perguntas como: qual a distância entre a sobrancelha e o ponto de junção do lábio com o queixo? Por que razão são as estrelas visíveis durante a noite e não durante o dia? O que separa a água do ar? Onde se localiza a alma? O que são o espirro, o bocejo, a fome, a sede e a luxúria?
Leonardo encontrava inspiração na natureza. As suas observações de aves e morcegos contribuíram para aperfeiçoar máquinas voadoras – umas mais bem-sucedidas do que outras. A sua demanda para concretizar o voo tripulado manteve-o ocupado durante quase duas décadas.
A riqueza dos manuscritos e desenhos de Leonardo põem a nu as engrenagens internas do seu génio. A sua mente fértil é evocada em cada uma das sete mil folhas conservadas em Windsor, em bibliotecas de Paris, Londres, Madrid, Turim e Milão, e na colecção particular de Bill Gates.
A propósito do 500.º aniversário da morte de Leonardo, que se celebra este ano, regista-se um renascimento próprio dos cadernos de apontamentos do artista. Vários museus organizam exposições dos esboços e peritos publicam novas análises, aprofundando a amplitude das suas criações.
Algumas páginas dos cadernos de apontamentos de Leonardo estão a ser estudadas por especialistas dos próprios domínios técnicos, desde a medicina à engenharia mecânica, passando pela música. Recuando séculos no tempo, estão a colher novos conhecimentos, analisando a obra de Leonardo para melhor documentarem o seu próprio trabalho. Nesta época em que a ciência, a medicina e a tecnologia rompem as barreiras daquilo que podemos fazer e da maneira como podemos fazê-lo, os cadernos de apontamentos de Leonardo revelam muito que ainda precisamos de aprender.
Citando as palavras de Martin Kemp, historiador da arte e especialista em Leonardo, “não houve um único dos seus antecessores ou contemporâneos que tivesse produzido algo semelhante em âmbito, fulgor especulativo e intensidade visual. E não conhecemos nada verdadeiramente comparável nos séculos que se seguiram.”























Os pais de leonardo não eram casados quando ele nasceu no dia 15 de Abril de 1452, perto de Vinci, uma vila situada numa colina da zona rural da Toscana, entre Florença e Pisa. Na opinião de muitos, a sua mãe foi Caterina di Meo Lippi, uma camponesa local. O pai, Ser Piero da Vinci, beneficiava do elevado estatuto de notário, uma carreira profissional potencialmente previsível para Leonardo, não fosse a circunstância de o nascimento ter ocorrido fora do casamento.
A vila de Vinci funcionou como pano de fundo inspirador para este rapaz dotado de ampla visão. Do alto de uma açoteia do castelo da aldeia, datado do século XII, a paisagem da Toscana revela-se hoje como teria sido na juventude de Leonardo: olivais, colinas sombrias e uma serrania ao largo da costa ocidental de Itália.
Leonardo não assinava os seus quadros. A colaboração era uma prática comum no seu tempo e hoje dificulta a identificação dos autores. No entanto, as 24 obras que mostramos aqui são associadas, pelo menos parcialmente, ao mestre. Duas delas, a Mona Lisa e A Última Ceia contam-se entre as mais famosas do mundo.
Em Vinci, este panorama é conhecido como orizzonti geniali, ou “horizontes de génio”, afirma Stefania Marvogli, do Museu Leonardiano. É uma duradoura alusão a Leonardo. Manta de retalhos de tipos diversos de solo reúnem-se para formar um todo coerente. A paisagem reflecte as ligações que Leonardo procurava na natureza: padrões de unificação do universo.
Algures durante a adolescência, é provável que o pai reconhecesse os seus dotes artísticos e mostrasse os seus desenhos a um cliente, o artista Andrea del Verrocchio, que aceitou receber Leonardo como aprendiz na sua oficina de Florença.
Leonardo suplantou os seus pares desde o início e não tardou a suplantar o próprio mestre. A mais antiga das obras conhecidas de Leonardo, uma paisagem desenhada a pena do vale do Arno, data de 1473 e foi produzida quando o pintor tinha 21 anos. Passados alguns anos, já recebia as primeiras encomendas: um retábulo para uma capela no Palazzo della Signoria e a pintura A Adoração dos Magos para um grupo de monges agostinhos.
Leonardo deixou-nos poucas memórias da sua vida, mas conseguimos vislumbrar o homem. Era quase certamente homossexual: os seus companheiros de toda a vida eram do sexo masculino e foi duas vezes acusado de sodomia. Amigo dos animais, comprava aves engaioladas no mercado para depois as libertar. Canhoto e bonito, era admirado pela sua generosidade de espírito e requinte social. Seria certamente divertido tê-lo como convidado num jantar, conjectura Gary Radke, professor emérito de história da arte. “Não era um desses génios imperscrutáveis, meditabundos e resmungões.”
Após um restauro de cinco anos, a Adoração dos Magos revela pinceladas, cores e imagens há muito escondidas sob a sujidade e o verniz escurecido. O quadro inacabado, encomendado a Leonardo em 1481, também fornece provas do processo de raciocínio do artista, incluindo modificações produzidas à medida que ia trabalhando. O quadro está exposto numa sala dos Ofícios reservada a Leonardo.
Ao longo da sua carreira de 46 anos, passada sobretudo em Florença e Milão, Leonardo sentiu-se seduzido pelo conhecimento, movido por um olhar permanentemente curioso e determinado a segui-lo. Estudou latim, coleccionou poesia e leu Euclides e Arquimedes. Enquanto os outros se entregavam ao perceptível, ele esquadrinhava minudências – ângulos geométricos, a dilatação da pupila – saltando de uma disciplina para a outra e procurando ligações entre elas. Desenhava esboços de flores e máquinas voadoras, projectava equipamentos de guerra para o duque Ludovico Sforza, seu patrono, construía ornamentos teatrais com penas de pavão e elaborou um plano para desviar o Arno entre Florença e Pisa.
Milhares de esboços, observações e dúvidas (anotadas numa distinta escrita invertida) mostram a interminável busca de conhecimento de Leonardo. Muitas das páginas originais perderam-se. As que restam, muitas das quais compiladas em cadernos, revelam uma interacção fluida entre os seus estudos científicos meticulosos e a sua arte monumental.
Leonardo documentava tudo com um espantoso nível de pormenor, no verso e no canto dos papéis, com apontamentos minúsculos escritos à mão para serem lidos com um espelho, da direita para a esquerda. Algumas destas páginas existem hoje como folhas avulsas. Outras foram encadernadas nos volumes actualmente conhecidos como cadernos de apontamentos ou códices. Não existe uma ordem evidente, nem mesmo em cada página individualizada, e temas semelhantes figuram frequentemente em folhas diferentes, completadas anos depois. Tudo isto torna difícil, até para os especialistas, acompanhar o ritmo acelerado da sua mente, confessa Paolo Galluzzi enquanto folheia, maravilhado, reproduções de cadernos de apontamentos de Leonardo. Sempre que fazia uma observação, surgia-lhe na mente uma pergunta, que invariavelmente conduzia a outra, diz o director do Museu Galileu, em Florença.
É difícil abarcar a ímpar capacidade de Leonardo para superar o trabalho dos seus antecessores: fê-lo questionando os seus temas e invalidando os seus próprios veredictos. No Codex Leicester, Leonardo investiga a maneira como a água chega ao topo das montanhas, acabando por rejeitar a sua convicção inicial de que o calor a atraía para cima. Em vez disso, percebeu que a água circula através da evaporação, das nuvens e da chuva. “Mais importante do que descobrir a forma como os riachos da montanha funcionam, era descobrir como… se poderia descobri-lo”, afirma o biógrafo Walter Isaacson. “Ele contribuiu para a invenção do método científico.”
Para Leonardo, os preceitos da ciência (observação, hipótese e experimentação) eram fundamentais para a arte. Deslocava-se fluidamente entre os dois reinos, retirando lições de um para informar o outro, diz Francesca Fiorani, directora associada de artes e humanidades na Universidade de Virgínia. O seu maior talento era a capacidade de tornar o conhecimento visível”, acrescenta. “É aí que reside o seu poder.”
É no estudo da anatomia que esse talento mais se evidencia. Dissecou cadáveres humanos, separando a musculatura subjacente em três dimensões, para ver com os próprios olhos de que maneira uma perna ou um braço flectiam. Os contemporâneos de Leonardo, incluindo o seu rival Miguel Ângelo, estudaram músculos e ossos para melhorar a sua representação artística do corpo humano. “Leonardo foi para além disso”, diz o historiador de ciência Domenico Laurenza, radicado em Roma. “A sua abordagem à anatomia era a de um verdadeiro anatomista.”
Os dados científicos reunidos por Leonardo nos seus cadernos de apontamentos estão subjacentes a cada traço do seu pincel. Os estudos anatómicos desmontaram a biologia das expressões faciais. Quais os nervos que levam a “franzir as sobrancelhas”, ou a “fazer beicinho, ou um sorriso, ou uma expressão de espanto?”, interrogava-se nos seus apontamentos.
A sua análise da luz e da sombra permitiu-lhe iluminar contornos com uma subtileza inigualável.
Leonardo eliminou os contornos tradicionais, optando por suavizar os contornos de figuras e objectos com uma técnica conhecida como sfumato. A óptica e a geometria resultaram num sofisticado sistema de perspectiva, exemplificada em A Última Ceia. Observações minuciosas permitiram-lhe retratar profundidade emocional nos sujeitos que pintava, que parecem sensíveis em vez de rígidos.
A inventividade de Leonardo, porém, tinha um preço. Aborrecia os seus clientes com constantes atrasos e muitas obras ficaram por acabar, incluindo A Adoração dos Magos. Os especialistas atribuíram esse facto ao seu entusiasmo por novos temas e ao perfeccionismo: o desafio de fazer algo superava a expectativa de o terminar. Para Leonardo, o que importa verdadeiramente é o processo, diz Carmen Bambach, curadora de desenhos e gravuras do Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque. “Não é, de todo, o resultado final.”
Com efeito, quanto mais conhecimento adquiria através dos estudos apontados nos seus cadernos, mais difícil se tornava para Leonardo descobrir a meta final na sua arte. “À medida que pintava, sem parar, percebia que era possível criar gradações infinitesimais de tom e transição, entre a luz mais clara e intensa e a sombra mais profunda”, explica a especialista. Exames de raios X ao trabalho de Leonardo revelam alterações abundantes, conhecidas como pentimenti. O infinito transformou-se num conceito muito real, com implicações práticas: havia sempre mais para aprender. “Em muitos aspectos, é um processo intelectual interminável”, comenta.
O trabalho de engenharia desta bola de cobre dourada, concluída durante a aprendizagem com o artista Andrea del Verrocchio em Florença, deixou um impacte duradouro em Leonardo da Vinci. Examinando-a em busca de danos causados por raios, Sandro Schievenin emerge da esfera, instalada no topo da Catedral de Santa Maria del Fiore.
Isto pode ajudar a explicar o motivo pelo qual Leonardo nunca publicou os seus cadernos de apontamentos. Ele tencionava completar tratados sobre muitos temas, incluindo geologia e anatomia. Em vez disso, a organização dos seus esboços e manuscritos ficou ao cuidado do seu fiel companheiro Melzi. Nas décadas seguintes à morte de Leonardo, dois terços a três quartos das suas páginas originais foram provavelmente roubadas ou perderam-se. A maioria das páginas sobreviventes começou a ser publicada apenas no final do século XVIII, mais de duzentos anos após a sua morte. Por essa razão, diz Domenico Laurenza, “sabemos pouco sobre o legado de Leonardo como cientista”.
As investigações, teses e descobertas de Leonardo foram confiadas aos que se seguiram. Séculos mais tarde, ainda estamos a tentar acompanhá-lo.
O legado dos cadernos de apontamentos de Leonardo é palpável hoje em dia. J. Calvin Coffey, chefe de cirurgia na Graduate Entry Medical School da Universidade de Limerick, na Irlanda, estava a desenvolver uma investigação há alguns anos quando fez uma descoberta espantosa: uma observação feita por Leonardo, por volta de 1508, confirmava uma teoria que ele tentava validar. Calvin Coffey estuda o mesentério, uma estrutura em forma de leque que liga os intestinos delgado e grosso à parede traseira do abdómen. Desde a publicação de Gray’s Anatomy, em 1858 (na altura intitulado Anatomy: Descriptive and Surgical), que os alunos aprendiam que o mesentério era formado por várias estruturas separadas. Todavia, ao realizar um número crescente de cirurgias colo-rectais, Calvin Coffey começou a suspeitar que o mesentério era um órgão contínuo.
Enquanto ele e os colegas examinavam a anatomia da estrutura para provar esta hipótese, o médico descobriu um desenho de Leonardo representando o mesentério como uma estrutura ininterrupta. O momento constituiu um instante de clareza. A princípio, olhou para ele e desviou o olhar. Depois olhou novamente.
“Fiquei boquiaberto com o que vi”, afirma. “Correlacionava-se exactamente com o que observávamos. É simplesmente uma obra-prima.”
No resumo das conclusões da sua equipa, publicado em 2015, Calvin Coffey incluiu os desenhos de Leonardo e atribuiu-lhe os créditos no texto: “Sabemos agora que a interpretação de Da Vinci estava correcta.”
O médico mostra um diapositivo do desenho de Leonardo nas suas apresentações científicas, maravilhando-se com a sua capacidade para dissecar o órgão na sua totalidade: uma proeza complicada devido à complexa estratificação da estrutura. “Ele foi sério na sua interpretação da natureza e da biologia”, diz Coffey. “Ainda hoje, há cirurgiões que não conseguem reproduzir o que ele fez.”
A acuidade visual de Leonardo foi motivada pela sua fé inabalável nos desígnios da natureza, fosse a raiz de uma árvore ou um hipopótamo.
O engenho humano, escreveu, “nunca criará invenções mais belas, nem mais simples, nem mais objectivas do que as da natureza, porque nas suas invenções nada falta e nada é supérfluo”. Cada artéria, cada tecido, cada órgão existia com um objectivo, uma revelação que mudou o rumo da carreira de Francis Charles Wells.
Em 1977, Wells, cirurgião cardiovascular sénior no Hospital Real de Papworth, em Cambridge (Inglaterra), visitou acidentalmente uma exposição dos desenhos anatómicos de Leonardo na Academia Real de Artes, no bairro londrino de Piccadilly. O bilhete de entrada custava uma libra e a recompensa revelou-se incomensurável. “Foi arrebatador”, diz.
Após dissecar o corpo de um homem de 100 anos, Leonardo apresentou a primeira descrição da aterosclerose da história da medicina. “Este revestimento dos vasos funciona no homem como nas laranjas, cuja pele engrossa para que a polpa diminua à medida que envelhecem”, escreveu.
A sua investigação sobre válvulas cardíacas, a especialidade de Francis Wells, foi igualmente presciente. Para perceber como funcionavam, Leonardo desenhou um modelo de vidro da válvula aórtica, cheio de água e sementes de erva, o que lhe permitiu conceptualizar os padrões da circulação sanguínea e a forma como as válvulas se abrem e fecham. Esses pormenores foram definitivamente confirmados na década de 1960.
Nas famosas pedreiras de Carrara, no Noroeste de Itália — o local visitado por Miguel Ângelo, há cinco séculos, para escolher mármore para estátuas — encontra-se uma escultura de Leonardo. A figura, feita pela Torart, uma empresa italiana especializada em escultura robótica, é uma réplica de uma estátua do século XIX que vigia o pórtico da Galeria dos Ofícios. Os artesãos utilizam esquemas gerados por computador, bisturis robóticos, jactos de água a alta pressão e o seu próprio talento manual para fabricar reproduções e peças originais.
Acima de tudo, os desenhos de Leonardo abriram os olhos do cirurgião para a requintada lógica da estrutura e da mecânica do coração. Numa manhã de Outono, Francis Wells estava debruçado sobre o peito aberto de um paciente na sala de operações de Papworth e chamou-me para perto dele.
“Está a ver? É fabuloso”, disse, apontando para a válvula mitral. “Imagine a complexidade necessária para o organismo fabricar esta válvula.” A abordagem cirúrgica de Wells é guiada pela máxima que aprendeu com Leonardo: cada parte da complexa composição da válvula (os seus folículos, cordas e músculos papilares) tem o seu papel e foi concebida para suster as forças por ela suportadas.
Isso moldou essencialmente a forma como Francis Wells remenda válvulas lesionadas. “Vê esta peça pequenina no meu fórceps? É a corda partida”, afirma. “É a origem do problema.”
O cirurgião poderia optar por remover a válvula inteira e substituí-la por um modelo artificial, uma abordagem preferida por muitos cirurgiões. Em vez disso, vejo-o meticulosamente substituir cada corda com suturas de gore-tex, preservando o máximo possível da estrutura. Leonardo não poderia prever uma abordagem cirúrgica, mas ensinou Francis Wells a observar cuidadosamente, a parar e pensar, e a compreender a habilidade inerente da válvula para fazer este trabalho, uma capacidade que o cirurgião procura conservar em cada intervenção cardíaca que realiza. “Essa foi a mudança de paradigma”, diz Wells, que compilou os seus conhecimentos num livro de 256 páginas: “The Heart of Leonardo” [sem tradução portuguesa].
A um continente de distância, o Codex de Leonardo sobre o Voo das Aves impregnou na totalidade o Laboratório de Investigação e Design Bio-Inspirados (BIRD) da Universidade de Stanford, dirigido pelo biólogo e engenheiro mecânico David Lentink. Quando o visito, David dá-me uma folha com questões exploradas por Leonardo que ele e os seus dez alunos de pós--graduação ainda estão a tentar responder: de que modo o movimento das asas no ar gera propulsão? Como controlam os músculos das aves o batimento das asas? Como planam as aves? “Todas as suas perguntas ainda são relevantes”, diz o investigador.
David Lentink e a sua equipa têm acesso a ferramentas de tecnologia avançada. Os sensores e a fotografia de alta velocidade permitem-lhes medir a força de sustentação gerada pelas aves no voo. Uma secção de um túnel de vento com quase dois metros, com condições personalizadas, simula uma atmosfera serena ou uma atmosfera de turbulência, fornecendo pistas sobre como as asas das aves mudam de forma.
Um dos projectos mais importantes do laboratório é uma ave mecânica chamada PigeonBot, que tem asas com penas elaboradas por Laura Matloff e um sistema de controlo de rádio dirigido pelo bolseiro de pós-graduação Eric Chang. Laura utilizou um microscópio com raios X, para determinar as características das penas. O esqueleto e os conectores, que fixam as penas, foram fabricados numa impressora 3D. O PigeonBot está equipado com acelerómetro, giroscópio, barómetro, sensor de velocidade aérea, GPS, bússolas e radiotransmissores que passam informação sobre o voo a um computador.
Encontrei-me com os dois para um teste de voo. Quando Eric Chang diz: “Pronto!”, Laura Matloff lança o robot ao ar. Vemo-lo voar cerca de dez metros num segundo até Eric o fazer aterrar. O PigeonBot não é só um engenho para dar nas vistas. O processo de retroengenharia de uma ave permite aos cientistas estudar a mecânica de voo passo a passo e compreender melhor a função de cada parte do corpo, tarefa que Leonardo não seria capaz de concluir. A engenharia contemporânea poderá, um dia, recompensar a curiosidade fervorosa de Leonardo respondendo aos mistérios que o fascinaram. “Acho que vamos lá chegar”, diz David Lentink.
Os cadernos de apontamentos de Leonardo incluem pensamentos especulativos com potencial. Desenhos contidos no Codex Atlanticus e em vários cadernos de apontamentos mais pequenos levaram o pianista polaco Sławomir Zubrzycki a investigar. Ele ansiava por ouvir a música de Leonardo.
Entre muitos interesses, Leonardo improvisava melodias na lira da braccio, um instrumento de cordas do Renascimento, e estudava a complexidade da acústica e das composições musicais nos seus cadernos. Em 2009, Sławomir Zubrzycki deu por si hipnotizado pelos esboços de uma viola organista, um instrumento de teclas com cordas arqueadas. Cativado pela possibilidade de um instrumento fundir duas famílias musicais, o pianista decidiu construí-lo.
Em nenhum dos desenhos Leonardo fornecia uma matriz pormenorizada. Durante quatro anos, Sławomir passou cinco horas por dia a investigar e a formular o seu design. Testou amostras de madeira, decidiu que precisaria de 61 teclas e desvendou o enigma de como construir quatro arcos circulares revestidos a crina de cavalo, com capacidade para friccionar as cordas e gerar música. Para dar vida ao instrumento, baseou-se na mesma força vital que motivara Leonardo: a imaginação.
O resultado é espectacular. A graciosa viola organista de Zubrzycki alia a capacidade polifónica de um teclado – permitindo tocar várias melodias em simultâneo – ao leque de emoções dos instrumentos de cordas.
Numa noite de Verão, Sławomir Zubrzycki senta-se para dar um concerto de música do Renascimento no Castelo de Kalmar, na costa meridional da Suécia. Embora a sua viola organista pareça um piano de cauda bebé, comporta-se como um conjunto completo de cordas.
Em Florença, Leonardo tornou-se conhecido pelo seu talento prodigioso e recebeu as primeiras encomendas. Era “um ornamento, um símbolo de poder”, diz o estudioso Paolo Galluzzi. Nesta imagem, o artista de rua Valter Conti personifica o estatuto de celebridade de Leonardo ao passear pela Galeria dos Ofícios para posar em fotografias com os turistas.
Para Leonardo, só a pintura suplantava a música e esta estava mesmo acima da escultura: ele descrevia-a como figurazione delle cose invisibili, a modelação das coisas invisíveis. Para a centena de espectadores no recital de Sławomir Zubrzycki, este momento de exaltação ocorreu enquanto o Sol se punha sobre o mar Báltico, ao mesmo tempo que alguns rabiscos do caderno de apontamentos de Leonardo se transformavam em música.
A ultima incursão de leonardo, no Outono de 1516, levou-o a Amboise, em França, onde o rei Francisco I, um grande admirador, lhe ofereceu um estipêndio e a liberdade para criar o que quisesse. Aos 64 anos, Leonardo mudou-se para um château modesto, hoje conhecido como Clos Lucé, com muitos dos seus desenhos e os três quadros dos quais nunca se separava – São João Baptista, A Virgem e o Menino com Santa Ana e Mona Lisa.
Durante os seus anos em Clos Lucé, concebeu projectos hidráulicos para o reino, planos para uma nova residência real e encenou alegres festividades para o rei. No meio de tudo isto, saboreava os prazeres simples da vida.
Antes de morrer, no dia 2 de Maio de 1519, aos 67 anos, Leonardo concluiu vários desenhos sobre o dilúvio, representando vagalhões cataclísmicos de água e vento. No final, Leonardo virou o seu olhar, como sempre, para a natureza.
Actualmente, Clos Lucé é um monumento vivo a Leonardo, no meio de um enorme parque cheio de sálvia e outras plantas. As crianças brincam numa ponte parabólica oscilante e num tanque blindado semelhante à carapaça de uma tartaruga, inspirados nos cadernos de Leonardo. Caminhando no local num dia soalheiro, François Saint Bris, o director de Clos Lucé, afirma ter esperanças de que o local onde Leonardo passou os seus últimos anos inspire as próximas gerações.
É um objectivo partilhado por muitos. Novas investigações estão a descobrir material para alimentar os especialistas do futuro. Domenica Laurenza e Martin Kemp colaboraram numa nova análise do Codex Leicester e o seu estudo revela que este talvez influenciasse o nascimento da geologia contemporânea. Ao fim de mais de duas décadas de investigação meticulosa sobre a vida e a obra de Leonardo, o Met’s Bambach vai publicar uma série de quatro volumes intitulada “Leonardo da Vinci Rediscovered” [A Redescoberta de Leonardo Da Vinci].
Os cadernos de apontamentos de Leonardo começam agora a chegar ao grande público. Paolo Galluzzi é o responsável por uma elegante base de dados com motor de busca do Codex Atlanticus, o maior dos cadernos. Walter Isaacson imagina um dia em que todos serão totalmente traduzidos e digitalizados por um único consórcio internacional. “Então veremos Leonardo em toda a sua glória”, afirma.
Da mesma forma que Leonardo não via um fim para a sua busca de conhecimento, os seus cadernos de apontamentos parecem estar preparados para a redescoberta e a posteridade. “Estou sempre a pensar que já fiz tudo o que tinha a fazer com Leonardo”, diz Martin Kemp, que escreve sobre este tópico há cinco décadas. “Mas ele regressa sempre.”