EUA: GUERREIRA CULINÁRIA. Estrela no mundo repleto de testosterona da restauração (é a única mulher dos EUA com três estrelas Michelin), a chefe Dominique Crenn, em São Francisco, fez aquilo que diz ter-lhe parecido a escolha óbvia depois de ter sido diagnosticada com cancro da mama, na Primavera passada: assumiu-o publicamente. “O meu coração está com todas as mulheres que já passaram por isto antes de mim e estão a passar por isto comigo”, escreveu aos seus 270 mil seguidores no Instagram. A força das respostas, carregadas de amor e apoio, ainda a motiva. “Eu sou forte. Nem tudo é felicidade, sabem? Mas sinto-me muito grata. Estar sob o olhar público nunca foi o mais importante para mim. O mais importante é travar o combate.”
Mulheres de todo o mundo fazem-se ouvir nos órgãos do Estado e nas suas comunidades, conseguindo aproximar muitas outras da igualdade de género.
Texto: Rania Abouzeid
Fototgrafias: Lynn Johnson
Theresa Kachindamoto lembra-se do primeiro casamento infantil a que pôs fim, poucos dias depois de se tornar a primeira líder suprema do povo ngoni, no Sul do Malawi. Estava no distrito de Dedza e passou por um grupo de rapazes e raparigas que jogavam futebol, um acontecimento comum. Viu então uma das raparigas afastar-se do jogo para amamentar um bebé.
“Fiquei chocada”, recorda. “Afligiu-me.” A mãe “tinha 12 anos, mas mentiu-me e disse que tinha 13.”
Theresa Kachindamoto relatou o caso da jovem mãe, uma rapariga chamada Cecília, aos anciãos que a tinham nomeado. “Eles disseram: ‘Sim, isso é comum em todo o lado, mas agora que és chefe, podes fazer o que quiseres’.”
E assim foi. Theresa Kachindamoto anulou o casamento e mandou a jovem mãe regressar à escola. Corria o ano de 2003.
A chefe pagou as propinas da rapariga até ela concluir o ensino secundário. Cecília é agora dona de uma mercearia. Quando a visita, “ela diz-me: ‘Obrigada, chefe. Obrigada’.”
Desde a anulação do casamento de Cecília, a líder Theresa Kachindamoto, agora com 60 anos, já pôs fim a um total de 2.549 uniões e enviou as raparigas para a escola. Também baniu um ritual de iniciação de raparigas adolescentes que implicava perderem a virgindade com estranhos.












A sua voz é uma entre muitas que promove os direitos das mulheres em todo o mundo. A voz de uma mulher é uma revolução, como os manifestantes egípcios entoaram, em tempos, na Praça Tahrir, no Cairo. Este lema fazia parte de uma campanha de 2013 contra as violações e os ataques sexuais. Foi um golpe contra o silêncio que costuma ser a norma – no Egipto e, como o movimento #MeToo revelou, em todo o mundo.
Nos últimos anos, as mulheres sentiram coragem para chamar a atenção para as transgressões dos homens, desencadeando uma conversa global sobre sexismo, misoginia e a dinâmica de poder a que as mulheres são sujeitas.
De muitas formas, o mundo continua a ser dos homens, mas as mulheres estão a operar a mudança nas suas comunidades, da política à arte. É uma missão com várias frentes: nas instituições do Estado, em casa e no local de trabalho, no activismo de rua e na capacidade de as mulheres contarem as suas próprias histórias e moldarem as suas sociedades.
Em países como o Ruanda e o Iraque, as quotas parlamentares asseguraram uma presença feminina significativa nos respectivos parlamentos. Desde 2003, o Ruanda mantém, proporcionalmente, a maior taxa mundial de representação feminina de deputados no Parlamento. No Malawi e noutros países africanos, onde não existe mandato parlamentar para ajudar as mulheres, a mudança está a acontecer no terreno, através de líderes femininas que libertam outras mulheres e raparigas.
A mudança raramente é fácil. O modelo patriarcal encontra-se profundamente enraizado, sobretudo nos Estados autoritários, onde qualquer pessoa que desafie o sistema paga um preço elevado. Até à data, nenhum país do mundo atingiu a paridade de género. Os países escandinavos, como a Islândia e a Noruega, vão mais à frente, ocupando a posição mais alta na lista anual do Índice Global das Disparidades de Género, do Fórum Económico Mundial. O índice com ponderação demográfica mede as disparidades de género em quatro áreas fundamentais: saúde, educação, economia e política. Nesta lista, a metade dos países com pior desempenho inclui o Malawi e a maioria da restante África subsaariana. No entanto, existem variações significativas em cada região e dois países subsaarianos também se encontram no top 10 da lista: o Ruanda (sexto) e a Namíbia (décimo). A posição elevada do Ruanda deve-se, em grande parte, a um conjunto de leis a favor das mulheres que se seguiu ao genocídio devastador de 1994.
O feminismo ocidental não funciona aqui… Em África, as mulheres já foram líderes e não o foram por intimidarem os homens, mas relacionando-se com eles e convencendo-os… Temos de olhar para as nossas próprias tradições e agir à nossa maneira. - JOYCE BANDA, ANTIGA PRESIDENTE DO MALAWI
A desigualdade de género não é determinada nem se limita a um local, a uma etnia ou a uma religião. O Canadá, por exemplo, ocupa a 16.ª posição no índice global, enquanto os EUA estão em 51.º lugar, arrastando para baixo a pontuação geral da América do Norte devido à estagnação do sub-índice da “capacitação política” e a uma diminuição da paridade de género nos altos cargos do Estado, bem como a uma perda de conquistas na área da educação.
JORDÂNIA: DEFENSORA DA ACESSIBILIDADE. Aya Aghabi morreu aos 28 anos, em Agosto de 2019. Dependente de uma cadeira de rodas após um acidente rodoviário que lhe lesionou a medula espinal, Aya Aghabi conseguiu licenciar-se em Berkeley, um dos primeiros sítios a apoiar os direitos dos deficientes. Descobriu então a independência que estava ao alcance das pessoas com cadeiras de rodas. Num país como a Jordânia onde tantos sítios são inacessíveis para os deficientes – como o Templo de Hércules, em Aman, aqui fotografado em Maio – ela tornou-se consultora de mobilidade a tempo inteiro e lançou o sítio “Jordânia Acessível” na Internet. O seu trabalho continua a fornecer guias online a jordanos e turistas com deficiência para os ajudar a explorar as ruas e o precioso património cultural do país.
As listas acrescentam textura à forma como vemos a influência das mulheres e os desafios existentes em todo o mundo, sobretudo no Médio Oriente e em África, duas amplas áreas geográficas frequentemente reduzidas a monólitos homogeneizados.
“Não existe um tipo único de mulher no Médio Oriente”, comenta a actriz e realizadora libanesa Nadine Labaki, a primeira cineasta árabe nomeada para um Óscar, por “Cafarnaum”, o seu doloroso drama sobre crianças de rua.
“Existem muitas mulheres diferentes, mas a maioria, mesmo nas circunstâncias mais difíceis, são fortes”, afirma. “As mulheres encontram força à sua própria maneira, seja junto das suas famílias ou, em maior escala, no seu trabalho. Elas têm tanto poder. Quando imagino uma mulher desta região, não a imagino submissa e fraca. Nunca.”
A deputada tunisina Bochra Belhaj Hamida, advogada especializada em direitos humanos e uma das fundadoras e antigas líderes da Associação Tunisina das Mulheres Democratas, diz que é uma marca de “colonialismo” pensar que uma mulher árabe aceitará menos direitos do que uma mulher ocidental. A sua forma de lutar por esses direitos é que pode diferir.
No Irão, as activistas continuam a pugnar corajosamente pela mudança através de acções individuais de protesto, nas redes sociais, e em casa, nomeadamente contestando a exigência de as mulheres usarem hijabs, imposta pela liderança da República Islâmica. Nos últimos anos, dezenas de mulheres frequentemente vestidas de branco têm arrancado, em público, os lenços que trazem sobre a cabeça, em vídeos que se tornaram virais com a hashtag #whitewednesdays. Em Março de 2019, Nasrin Sotoudeh, a advogada especializada em direitos humanos que representou muitas das mulheres detidas, foi condenada a 38,5 anos de prisão e 148 chicotadas.
No entanto, em Outubro de 2019, após uma campanha conduzida pelas activistas, a mesma liderança clerical que puniu as mulheres por retirarem os lenços da cabeça, decidiu deixar as mulheres iranianas transmitirem os seus direitos de cidadania a filhos com pais estrangeiros. É um direito que Estados mais progressistas do Médio Oriente – como o Líbano natal de Nadine Labaki, onde as mulheres podem usar pouca roupa se assim o entenderem – estão longe de adoptar, apesar das pressões continuadas.
A noção de progresso dos direitos das mulheres costuma ter menos que ver com o que cada mulher quer vestir e mais com o controlo de outros aspectos da sua vida, fazendo escolhas por elas.
Na Arábia Saudita, até há bem pouco tempo, as mulheres e as raparigas precisavam da autorização de um tutor do sexo masculino para viajarem, casarem-se ou frequentarem o ensino superior. Em Agosto deste ano, foram introduzidas novas leis para flexibilizar um sistema de tutoria que tratava as mulheres como menores. A mesma liderança saudita que, em 2018, levantou a proibição de as mulheres conduzirem, tinha aprisionado algumas das mais destacadas activistas que começaram a exigir esse direito. Muitas mulheres ainda estão nos cárceres e as suas famílias dizem que elas são sujeitas a espancamentos, tortura, assédio sexual e prisão em solitária. A mensagem é clara: na Arábia Saudita, os direitos das mulheres serão concedidos quando a liderança assim o entender e não conquistados a partir de iniciativas de base. As mulheres não têm escolha nesta matéria. Não peçam nem exijam e sejam gratas pelos direitos adicionais que receberem.
Nós, as mulheres activistas, tememos que a revolução fosse um retrocesso para as mulheres, mas aconteceu exactamente o contrário. - BOCHRA BELHAJ HAMIDA, DEPUTADA E ADVOGADA, TUNÍSIA
Como podem, então, as mulheres conquistar a igualdade de género? As experiências de vários Estados africanos e árabes realçam algumas das maneiras como as mulheres estão a revolucionar as suas sociedades.
a primeira mulher presidente do Malawi, apesar de não pertencer a uma família política e de o Malawi não ter quota para a representação parlamentar feminina. Aninhado entre a Zâmbia, a Tanzânia e Moçambique, o Malawi é a pátria de quase 18 milhões de pessoas. Tentativas consecutivas de introduzir uma quota para a representação parlamentar feminina, a mais recente das quais em Dezembro de 2017, fracassaram. No entanto, Banda conseguiu ser bem-sucedida, apesar de não contar com instituições de apoio, nem ligações familiares ou dinheiro que lhe abrissem o caminho.
O pai da antiga presidente pertencia à banda da polícia do Malawi. Ela lembra-se de, com 8 anos, um amigo da família, a quem chamava Tio John, dizer ao seu pai que via grande potencial na jovem Joyce. “Aquilo pegou. Ele plantou uma semente e eu tive sorte porque o meu pai estava sempre a recordar-me as palavras do Tio John”, diz. “Por isso, eu sempre soube que iria fazer algo.”
ÍNDIA: IRMÃS DESAFIADORAS. Os seus superiores continuam a pressioná-las para que se calem e parem de arranjar problemas, mas elas recusam-se. Quando uma freira de Kerala disse várias vezes a líderes da igreja que um bispo a violara repetidamente, nada aconteceu, por isso ela recorreu à polícia. Meses mais tarde, em Setembro de 2018, outras freiras juntaram-se num protesto de duas semanas à porta do Supremo Tribunal de Kerala. O bispo, que continua a afirmar-se inocente, acabou por ser detido. A partir da esquerda: as irmãs Alphy, Nina Rose, Ancitta, Anupama e Josephine. Em vez de apoiar as freiras, a Igreja cortou-lhes o subsídio de subsistência mensal.
Joyce Banda foi ministra do Género, Acção Social Infantil e Serviços Comunitários e ministra dos Negócios Estrangeiros do Malawi antes de ser eleita vice-presidente em 2009. Tornou-se presidente após a morte súbita do seu predecessor e ocupou o cargo entre 2012 e 2014.
Em África, já houve várias mulheres presidentes “e… os Estados Unidos ainda estão a tentar”, provoca Banda. “Devemos estar a fazer algo bem.” Ela atribui os créditos do progresso de África à memória da sua história pré-colonial de líderes femininas, com sistemas de poder matrilineares que foram relegados para segundo plano pelas sociedades colonizadoras patriarcais do Ocidente, e a uma abordagem conciliadora ao feminismo.
“O dito feminismo ocidental não funciona aqui”, diz Banda, descrevendo-o como conflituoso. “Não vamos alcançar a igualdade de género utilizando modelos vindos de outros lugares. Aqui, em África, as mulheres já foram líderes e não o foram por intimidarem os homens, mas relacionando-se com eles e convencendo-os a criar espaço para elas.” Ela continua: “Temos de olhar para as nossas próprias tradições e agir à nossa maneira.”
A vida de Banda moldou o seu combate pelos direitos das mulheres, primeiro ao nível do desenvolvimento das comunidades e, mais tarde, na política. Lembrando-se de que a sua melhor amiga, Chrissie Zamaere, foi obrigada a desistir dos estudos após o primeiro ciclo porque os pais não podiam pagar a propina de cinco euros da escola pública, Joyce Banda criou a Fundação Joyce Banda, que, entre outras façanhas, já formou 6.500 raparigas em escolas de acesso gratuito. A sobrevivência a um casamento abusivo durante uma década inspirou Banda a fundar a Associação Nacional de Mulheres Empresárias, um grupo que empresta dinheiro para iniciar negócios de pequena escala porque, nas suas palavras, a independência financeira dá opções às mulheres.
Em 2006, como ministra do Género, Banda propôs uma lei contra a violência doméstica e, durante o seu mandato como presidente, o Malawi promulgou a Lei para a Igualdade de Género, em 2013. Durante dois anos no cargo, registou-se uma diminuição da taxa de mortalidade materna, uma questão há muito sublinhada por Banda, desde que sofreu uma hemorragia pós-parto aquando do nascimento do seu quarto filho. Mobilizou a ajuda de chefes masculinos, convencendo-os a incentivar os partos com supervisão médica em clínicas em detrimento dos nascimentos tradicionais em casa. Na sua opinião, isto é um exemplo de feminismo que efectivamente funciona numa cultura, com apoio masculino para alterar as normas sociais.
A população maioritariamente rural do Malawi é profundamente conservadora e, embora algumas comunidades pratiquem a sucessão matrilinear ou incluam as mulheres na selecção de um chefe homem, “três quartos dos chefes deste país são homens e são machistas”, afirma Joyce Banda, projectando a palavra com emoção. “São tão tradicionalmente patriarcais que parecem inverosímeis! Oitenta e cinco por cento do nosso povo é rural e vive sob o domínio destes chefes. Temos de os envolver e transformá-los em companheiros de luta e foi isso que fiz.”
É uma “ingenuidade”, diz Banda, que os grupos internacionais “venham a África com a esperança de resolverem os nossos problemas. Podem estar aqui 20 anos e vão-se embora” tendo feito pouco porque “alguns dos assuntos que querem abordar estão de tal forma enraizados na tradição que não conseguem aceder-lhes”. É mais eficaz mudar uma cultura a partir de dentro, recrutando decisores influentes, argumenta Joyce Banda. Quando esses chefes são mulheres, o impacte pode ser enorme.
Algumas mulheres subiram ao poder por herança ou legado: no caso da chefe Theresa Kachindamoto, ela assumiu o lugar do seu falecido pai. A sua jurisdição abrange 551 aldeias e 1,1 milhões de pessoas. Ela diz que o seu primeiro dever é ser “guardiã do futuro”, mas desde que se tornou chefe, em 2003, trabalha para alterar algumas práticas culturais da sua tribo, incluindo o rito de iniciação que obrigava as jovens púberes a perderem a virgindade com estranhos.
Enfrentou alguma resistência, recebendo até ameaças de morte, de líderes de aldeias sob o seu domínio e de outros chefes do seu nível hierárquico. A sua família aconselha-a a ter cuidado, temendo pela sua segurança. Outros chefes homens mais velhos dizem-lhe que “esta cultura foi-nos legada para que lhe déssemos continuidade. Quem és tu para mudá-la?” Theresa Kachindamoto responde: “Se não querem fazer isto na vossa zona, a decisão é vossa, mas eu não quero que isto continue na minha zona, quer vocês queiram quer não.”
Quando foi chefe, o seu pai tentou proibir as práticas de iniciação. Agora, os receios relacionados com o VIH/Sida, num país onde onze adultos com idades entre 15 e 49 anos estão infectados, ajudaram os seus esforços.
Theresa Kachindamoto também proibiu o casamento infantil, mandando as raparigas novamente para a escola, muito antes de o Malawi promulgar a lei que aumentou a idade mínima para casamento de 15 para 18 anos, em 2015. Uma revisão efectuada em 2017 alinhou a Constituição com a nova lei. A princípio, diz Theresa Kachindamoto, as pessoas não queriam ouvi-la, por isso ela formou uma banda musical itinerante para reunir as pessoas e depois “emboscou-as”, falando-lhes contra o casamento infantil e os ritos de iniciação. Desde então, criou normas legais contra essas práticas na sua jurisdição e despediu publicamente chefes que continuavam a praticar os ritos, transformando-os em exemplos na comunidade. Em simultâneo, nomeou cerca de duzentas mulheres para cargos de autoridade. Quando se tornou chefe, “não havia dirigentes [de aldeia] mulheres, só homens, por isso mudei a cultura”, acrescenta.
O casamento precoce está associado à pobreza e Theresa Kachindamoto esforça-se por combater ambos. Na sua opinião, as propinas são um grande obstáculo que impede as raparigas de continuarem na escola, numa região de economia agrária. “Falei com os directores de escola e [pedi-lhes que] se estas raparigas não conseguirem pagar, não as mandem embora, porque se o fizerem, os pais delas vão entregá-las directamente a maridos”, disse.
A sua voz não é a única a introduzir mudanças na paisagem cultural do Malawi. Através da Autoridade Tradicional Mwanza, no distrito de Salima, Chalendo McDonald, de 67 anos, mais conhecida como Chefe Mwanza, também proibiu os ritos de iniciação sexual e o casamento infantil. A Chefe Mwanza preside a mais de 780 aldeias e lidera cerca de 900 mil pessoas do grupo étnico chewa. Ela também adoptou como missão transformar o Malawi, elevando para 320 o número total de mulheres nomeadas para posições de chefia no seu distrito. “As mulheres-chefe defendem os assuntos das mulheres”, explica.
Nos 15 anos volvidos desde que se tornou chefe, anulou 2.060 casamentos infantis, mas diz que a prática continua, apesar das leis do Estado e dos próprios estatutos do seu povo que a proíbem. Quando lhe perguntamos qual foi a última vez que salvou uma rapariga de um casamento precoce, ela responde: “Ontem. Continua a acontecer.”
que também pertence ao mundo árabe e é a pátria de cerca de 11,5 milhões de pessoas, há muito que as mulheres desempenham um papel importante na política e na sociedade civil, mais especificamente desde a década de 1950, sob o mandato do presidente Habib Bourguiba. Em 1981, Bourguiba, laicista fervoroso, proibiu as mulheres e as raparigas de usarem o hijab em organismos públicos, efectivamente impedindo o acesso de mulheres veladas a escolas públicas, empregos na função pública e outros espaços públicos.
A revolução tunisina de 2011, a primeira das manifestações da Primavera Árabe, abriu a arena política a novos rostos, incluindo mulheres veladas. As ruas da capital, Tunes, mudaram visivelmente após a sua partida. Mais mulheres cobrem a cabeça com lenços, talvez numa atitude mais de desafio do que de fervor religioso. Acompanhei a revolução tunisina e fiquei espantada com a mudança súbita. Lembrei-me de um antigo provérbio árabe: “Aquilo que é proibido é desejado.”
O Código do Estatuto da Pessoa tunisino, promulgado em 1956, foi dos mais progressistas da região, proibindo a poligamia, garantindo a igualdade no divórcio e estabelecendo uma idade mínima para o casamento, bem como o consentimento mútuo. O aborto foi legalizado em 1965 para mulheres com cinco ou mais filhos, com o consentimento dos maridos, e para todas as mulheres em 1973. Nas décadas seguintes, as mulheres tunisinas conservaram as suas conquistas.
De início, Bochra Belhaj Hamida, deputada e advogada especializada em direitos humanos, sentiu-se apreensiva. “Nós, mulheres activistas, tememos que a revolução fosse um retrocesso para as mulheres, mas aconteceu exatamente o contrário.” As suas preocupações foram, em parte, alimentadas pelo facto de o partido islamista Ennahdha ter liderado o primeiro governo pós-revolução na Tunísia. “Se não fosse a revolução, as reformas poderiam ter sido muito mais lentas”, afirma. “Foram catalisadas pela revolução e pelo medo que as mulheres tinham de perder a sua posição e os seus direitos.”
Em 2014, uma nova constituição salvaguardou os direitos fixados em pormenor no Código de Estatuto do Cidadão, decretando que homens e mulheres eram iguais. Em 2017, apesar de forte oposição, as mulheres tunisinas conquistaram o direito a casarem-se fora da fé muçulmana, abalando um tabu regional. Antes disso, fora aprovada uma nova lei sobre a violência doméstica, além de outra a garantir que as mães já não precisavam da autorização dos pais para viajarem para o estrangeiro sozinhas com os filhos. Uma lei de “paridade de género horizontal e vertical” tornou obrigatório que todos os partidos políticos apresentassem um número igual de candidatos homens e mulheres nas eleições locais. Pensada para aumentar a representação feminina, essa lei levou a que as mulheres conquistassem 48% dos lugares nos conselhos municipais nas eleições de 2018. As mulheres conseguiram 79 dos 217 lugares parlamentares da Tunísia: a percentagem mais elevada (36,4%) do mundo árabe.
A poderosa presidência da Câmara Municipal de Tunes foi disputada em eleições. Na primeira votação, realizada no ano passado, Souad Abderrahim foi eleita presidente da câmara, a primeira mulher a deter o cargo desde a sua criação há 160 anos. “No dia em que o poder e a escolha foram entregues ao povo, o povo escolheu uma mulher”, diz ela.
Em vez de tomar decisões unilateralmente, Souad Abderrahim adoptou um sistema de consulta que envolve os 60 membros do conselho local. Na Tunísia, os conselhos municipais são responsáveis pelos assuntos de uma cidade e, como diz a autarca, o conselho de Tunes, na capital, é “como a mãe de todos os outros conselhos”, supervisionando os 350 existentes no país. “Tenho poder para assinar certos acordos, mas não assino nenhum sem o discutir com os membros no conselho”, diz. “Democracia significa inclusão.”
Bochra Hamida e outras activistas dos direitos estão agora a promover a mudança em tradições culturais enraizadas na religião, em matérias relacionadas com a transmissão de património. Segundo o direito sucessório tunisino, as mulheres herdam metade dos bens herdados pelos homens, costume amplamente praticado no mundo árabe – desafiá-lo significa contrariar um preceito religioso que baseia o direito na interpretação dos textos islâmicos.
“O cerne da nossa disputa diz respeito à família”, diz Bouchra Hamida. “A ideia deles de família é patriarcal, que é precisamente o oposto da nossa.”
Ela refere-se a pessoas como Halima Maalej, uma mulher religiosa conservadora e activista que, apesar de apoiar a maioria das reformas pró-femininas, traça o limite na questão da igualdade na transmissão de património. “Por que razão querem mudar os alicerces da nossa sociedade e as suas tradições?”, pergunta. Halima lembra-se de ter sido silenciada durante a fase das ditaduras laicas. Esforçou-se então por descobrir uma escola que a aceitasse porque usava o véu, antes de encontrar vaga numa escola cristã. Ela acredita que a igualdade na transmissão de património contradiz a charia, ou direito islâmico, e é uma “questão secundária”, promovida por mulheres “burguesas” que não a representam.
O islamismo, à semelhança de qualquer outra ideologia política, não é monolítico, e até entre os apoiantes de um partido como o Ennahdha existe variedade de pontos de vista. Meherzia Labidi é deputada do Ennahdha e antiga porta-voz da assembleia. À semelhança de Maalej, Labidi usa véu e recorda-se da repressão religiosa que lhe negou voz antes da revolução, mas as parecenças entre as duas mulheres ficam-se por aqui.
Meherzia Labidi, que se descreve como pós-feminista, acredita que as mulheres tunisinas devem ouvir-se umas às outras. “Acho que precisamos na Tunísia e no mundo muçulmano de uma voz entre estas duas tendências – os ultralaicistas e os ultra-religiosos. “Sente-se orgulhosa dos progressos tunisinos em matéria dos direitos das mulheres e pelo facto de, ao discutir assuntos essenciais como a igualdade na transmissão de património, a Tunísia ter, uma vez mais, dado o exemplo ao resto do mundo árabe.
“Sempre que a democracia progride, os direitos das mulheres progridem, porque podemos falar, podemos fazer, mas em espaços onde não exista democracia, mesmo que [se registem] algumas mudanças a favor das mulheres, estas são impostas pela autoridade – o governo, o presidente, o rei, seja quem for que represente a autoridade”, diz Meherzia Labidi. “Por isso, elas não são inculcadas, não são adoptadas e permanecem muito superficiais. Aquilo que estamos a fazer é muito difícil. Estamos a tentar penetrar no tecido social.”
Segundo ela, o “legado universal” do feminismo é a ponte que pode unir mulheres de diferentes extremos do espectro do activismo, como Bochra Hamida e Halima Maalej. E parte disso implica que não sejam mulheres ocidentais a falar por elas. “Elas dizem que deveríamos ter certas liberdades, mas nós não podemos enunciar aquilo que queremos. Isto é liberdade? Isto é feminismo?”, pergunta Meherzia Labidi. Ela tem uma mensagem para as feministas ocidentais: “Por favor, parem de falar em nosso nome e por nós porque, quando falam por mim, estão a abafar a minha voz.”
Nomeada para um Óscar, a realizadora Nadine Labaki também acredita no poder e na necessidade de as mulheres contarem as suas próprias histórias. Os seus três filmes – o primeiro dos quais, “Caramelo”, de 2007, relata as vidas de cinco mulheres libanesas num cabeleireiro de Beirute – exploram temas universais sobre o patriarcado e problemas sociais como a pobreza. Segundo ela, “Caramelo” nasceu da sua “obsessão pessoal” por examinar estereótipos de mulheres libanesas, “que são submissas, não podem exprimir-se, não se sentem à vontade com os seus corpos, têm receio dos homens, são dominadas por eles, são mulheres com medo”, e a realidade mais complexa das mulheres fortes que a rodeiam, começando pelas da sua família.
“Achei que estava, num certo sentido, a tentar descobrir a minha própria paz”, diz. “Quem sou eu no meio de todos estes estereótipos?” No seu último filme, “Cafarnaum”, Nadine Labaki concentrou-se nas crianças que vivem nas ruas. “Estamos a arrastá-las para as nossas guerras, os nossos conflitos, as nossas decisões, e criámos tamanho caos para elas”, comenta. Começou a fazer a sua pesquisa para o filme em 2013, sendo parcialmente inspirada pela imagem devastadora do bebé sírio curdo Alan Kurdi, que apareceu morto, com a cara virada para baixo, numa praia turca, enquanto a sua família fugia da guerra na Síria. Esta imagem, diz ela, foi o seu “grande ponto de viragem”.
QUÉNIA: ACTIVISTA COMUNITÁRIA. Elizabeth Pantoren ganhou uma bolsa de doutoramento e tornou-se activista pela independência das raparigas. A acção de hoje é mostrar a uma turma de Karare um penso higiénico reutilizável. Nenhuma rapariga deveria ter de faltar à escola por estar com o período.
“Pensei no que diria essa criança se pudesse falar. Estaria muito zangada depois de tudo aquilo que sofreu e que nós a fizemos sofrer?” Nadine Labaki afirma sentir-se elogiada quando alguém lhe diz que sentiu uma presença feminina atrás da câmara, ao assistir a um dos seus filmes. “Isso não significa que seja uma perspectiva melhor do que a de um homem. É uma perspectiva diferente, uma experiência diferente.”
Ela fez o seu último filme para agitar as pessoas, para tentar que saíssem da sua cegueira e vissem o sofrimento das crianças e porque “eu preciso de mostrar o que está a acontecer”. É uma responsabilidade que vai mais longe do que a realização cinematográfica. Em 2016, Nadine Labaki candidatou-se a um cargo no conselho municipal de Beirute, mas não ganhou. “A dada altura, tornamo-nos activistas mesmo que não o queiramos”, diz. “Tornou-se o meu dever. Não sei se isto significa que vou entrar para a política ou apenas para grupos de influência, para que certas coisas mudem.”
“Como começamos mesmo a mudar as coisas?”, pergunta a realizadora. “Quero fazer as coisas à minha maneira, através da minha plataforma, usando a minha voz, porque por vezes temos mais voz do que qualquer político e a nossa voz ressoa muito mais alto do que qualquer discurso político quando ouvida num filme, num discurso ou num vídeo. Não posso parar na fronteira de mais um filme. Tenho de ir mais longe… Tenho de usar a minha voz desta forma e tenho mesmo de começar a trabalhar.”