Marisha Vandenberg. «BLACKCICAN SPANISH SPEAKER DIDN’T TEACH KIDS» “Negra-mexicana que fala espanhol não ensinou os filhos”.
Marisha Vandenberg diz que nunca fora tão feliz na vida. Depois de criar três filhos com o seu marido Richard, voltou à faculdade com a intenção de fazer um mestrado em educação. No entanto, quando um dos seus professores na Universidade Baptista da Califórnia, em Riverside, pediu aos alunos que enviassem as suas histórias em seis palavras para o Projecto Race Card, em 2017, Marisha escreveu sobre arrependimento.
“Negra-mexicana de língua espanhola não ensinou os filhos” são as seis palavras que escolheu para o seu trabalho de casa. As primeiras três são uma biografia rápida: o seu pai é negro e crioulo, e a família da mãe é originária do México. Marisha foi criada no seio de uma família unida que incluía os avós latinos, dois tios e três tias.
As três palavras seguintes, “não ensinou os filhos” remetem para uma decisão que agora gostaria de poder mudar. O seu marido é branco e de ascendência europeia: fez um teste de DNA e descobriu que tinha antepassados noruegueses, suecos, alemães, ingleses e holandeses. Marisha chama-lhe, na brincadeira, o seu “viking”.
Quando ela e Richard formaram família, a mãe de Marisha incentivava os bebés Vandenberg a exprimirem-se em espanhol quando estavam a aprender a falar. Marisha sempre presumiu que os filhos seriam bilingues como ela, mas Richard teve medo de que eles ficassem confusos. Ela insistiu que iria correr tudo bem. “Ele nunca tivera ninguém bilingue em casa”, disse ela sobre o marido. “Nenhuma das minhas garantias o sossegou.”
As pessoas que vêem a sua história no sítio do Projecto Race Card na Internet podem precipitar-se a concluir que Richard não se sente à vontade com a cultura latina, disse Marisha. Contudo, ela insiste que tal não é verdade.
Com o tempo, ela concordou com uma abordagem unicamente inglesa à educação dos filhos, mas como eles passavam tanto tempo com a sua família alargada, ela nutria a esperança secreta de eles aprenderem espanhol quase por osmose. Para sua tristeza, isso não aconteceu. Na verdade, os avós, os tias-avós e os tios acabaram por aprender mais inglês com os miúdos do que os miúdos aprenderam espanhol com os mais velhos.
Enquanto isto acontecia, o mundo em redor estava a mudar. Sobretudo na Califórnia, a facilidade na expressão alternada em espanhol e inglês era cada vez mais valorizada pelos empregadores e, por vezes, recompensada com ordenados mais altos.
Quando os filhos chegaram à adolescência, os Vandenberg decidiram mudar de rumo. Asseguraram-se de que eles aprendiam espanhol na escola e deram luz verde aos seus parentes para serem embaixadores da língua. Os miúdos estão a evoluir, diz Marisha. Sabem o básico, mas a mãe admite que o espanhol não lhes sai com fluidez da boca. Ironicamente, por ter trabalhado em restaurantes muitos anos durante a juventude, Richard exprimia-se melhor em espanhol do que os filhos, mas eles já melhoraram.
“Quem me dera que a minha ignorância de juventude não me tivesse deixado ceder”, diz Marisha. “Mas nunca é tarde para corrigir alguns erros.”
Quando Michele L . Norris pediu pela primeira vez a estranhos que resumissem os seus sentimentos sobre raça em apenas seis palavras, presumiu que poucos estariam dispostos a partilhar reflexões pessoais sobre um tema tão sensível. Agora, depois de o Projecto Race Card receber mais de meio milhão de respostas, sabe que, afinal, não é assim.
Texto: Michele L . Norris
Fotografias: Wayne Lawrence
As conversas mais reveladoras, honestas e sérias sobre raça e etnia são as que nunca chegamos a ouvir porque ocorrem em espaços privados. Num balneário ou num quarto de dormir. À mesa ou numa pausa para fumar um cigarro à porta da fábrica. As conversas que as pessoas têm consigo próprias, enquanto lavam os dentes ou conduzem até ao local de trabalho.
A crescente implantação das redes sociais abriu novas janelas para espreitarmos a nossa consternação relativamente às questões étnicas. No entanto, mesmo com essa brisa de candura, continuam a existir filtros auto-impostos que impedem as pessoas de fazerem as perguntas mais secretas ou de exprimirem lamentações num fórum onde o mundo as possa ver.
Esse terreno é difícil de navegar para um estranho e, contudo, passei mais de dez anos a fazer precisamente isso, graças a um simples projecto que iniciei. Tinha escrito um livro de memórias sobre a complexa herança racial da minha família e estava prestes a partir numa viagem promocional que visitaria 35 cidades, nos velhos tempos em que ainda era possível fazer esse tipo de viagem. Estava nervosa por várias razões, mas sobretudo porque sabia que iria enfrentar o público, pedindo às pessoas que participassem em conversas sobre etnias.
Esayas Mehretab. «BLACK BOY. WHITE WORLD. PERPETUALLY EXHAUSTED» “Rapaz negro. mundo branco. permanentemente exausto”.
Na noite em que Esayas Mehretab se mudou para um apartamento novo com um colega em 2012, decidiu sair com um grupo de seis amigos.
Amontoaram-se dentro de uma carrinha e foram explorar o bairro, nos arredores da Universidade Virginia Commonwealth, em Richmond. Segundos mais tarde, foram mandados parar pela polícia municipal, que os mandou sair do veículo um a um, de mãos no ar. “Fiquei furioso porque mandaram-nos parar e nós só pensávamos ‘o que se passa?’”, diz Esayas. “Começou com um carro de polícia, depois dois e, a seguir, quatro, cinco e seis. Não paravam de chegar. Dizer que ficámos com medo é pouco.” Esayas diz que a polícia algemou os estudantes, mandou que se deitassem e tirou-lhes as carteiras. Passados cerca de 30 minutos, tiraram-lhes as algemas e deixaram-nos levantar-se.
Explicaram-lhes depois que tivera lugar um assalto naquela noite e dois dos estudantes que estavam na carrinha (os dois eram negros) correspondiam à descrição dos suspeitos. “Foi assim que fui apresentado à cidade de Richmond”, diz Esayas. Ele e os amigos que estavam consigo na carrinha nunca voltaram a falar sobre o incidente e ele só o mencionou aos pais anos mais tarde, quando decidiu partilhar a sua história em seis palavras: “Rapaz negro. Mundo branco. Permanentemente exausto.”
A família de Esayas Mehretab veio para os Estados Unidos como refugiada, numa tentativa de escapar à perseguição na Etiópia durante a guerra civil que assolou o país. Esayas tinha 5 anos na altura e, ao longo da maior parte da sua vida, foi-lhe dito que se concentrasse nas suas conquistas, no estudo e no desporto. “Sempre vivi com a sensação de não haver espaço para falar sobre as minhas experiências, as minhas lutas e como a vida era, realmente, para mim, enquanto rapaz negro”, afirma. Hoje, trabalha como recrutador sénior numa empresa de Richmond e acabou por decidir que os pais precisavam de saber os desafios que ele enfrenta enquanto homem negro e imigrante, incluindo o seu encontro com a polícia.
O seu silêncio, diz, normalizou essa situação. Em retrospectiva, considerou aquele momento como um rito de passagem, algo que iria acontecer, mais cedo ou mais tarde. Nada de especial. “Lidei com a situação. Ultrapassei-a.” “Deveria ter-me zangado e não o fiz. E isso é ainda mais triste do que aquilo que aconteceu.”
A verdade é que, ainda há uma década, eu estava convencida de que os americanos preferiam saltar de um precipício a terem uma conversa sincera, ou pessoal, sobre o tema em público. Afinal, estava enganada.












Numa tentativa de criar um ponto de partida para uma conversa difícil, comecei a pedir às pessoas que pensassem na palavra “raça” e depois pegassem naquilo que lhes viesse à cabeça e reduzissem esse pensamento, lema ou pergunta numa frase com apenas seis palavras.
Imprimi cartas-postais com as palavras “Race. Your thoughts. 6 words. Please Send.” (Raça. Os seus pensamentos. 6 palavras. Por favor, envie.) e distribuí-os pelos sítios por onde passava. Não fazia a mais pálida ideia de que, anos mais tarde, seria inundada por um maremoto gigante, carregado com todo o tipo de emoções, quando as histórias começaram a chegar à minha caixa de correio postal e, por fim, à minha caixa de correio electrónico.
Não imaginava que estava a criar uma raiz primária que me levaria aos espaços mais privados das pessoas, a cidades que me eram desconhecidas, a países que nunca visitara e a culturas simultaneamente estranhas e familiares.
Não fazia a mais pálida ideia de que havia tantas pessoas ansiosas por falar sobre raça e identidade a ponto de se mostrarem dispostas a partilhar os seus pensamentos com uma estranha, sabendo que as suas histórias seriam publicadas numa página de Internet, onde seriam lidas.
Demasiado negra para ser amada por homens negros.
Terá o meu avó sulista participado em linchamentos?
Que engraçado, não pareces judia!
Quando começámos a recolher histórias digitalmente (e não apenas através de postais), acrescentámos uma opção ao formulário de submeter histórias com seis palavras. Era uma simples pergunta antes de finalizar o formulário: “Tem algo mais para dizer?” Parecia que tínhamos deitado fogo ao pavio de uma bomba. As pessoas foram muito além de seis palavras, contando histórias em meia dúzia de frases ou ensaios longos, profundos e reveladores.
Um homem de Ohio contou que foi, durante quase toda a vida, o único afro-americano na sala de aula e no trabalho. Segundo conta, consideravam-no “seguro” e “não ameaçador”, mas, no seu íntimo, sentia-se “cheio de raiva”.
Kelly Stuart-Johnson. «HE’S MY DAD, NOT THE GARDENER» /“É o meu pai, não é o jardineiro”. Tandy June, filha de Kelly Stuart-Johnson, segura o retrato de Alfred Brown, Jr., o padrasto que Kelly considera ser o seu verdadeiro pai. Em pequena, Kelly sonhava ter o seu próprio quarto e um quintal com baloiço. Alfred arranjou um segundo emprego e a família mudou-se para uma casa maior. Há alguns anos, alguém apontou para uma fotografia da casa de Kelly e perguntou se o homem que lá estava a arrancar ervas daninhas era o jardineiro. “Fiquei furiosa”, escreveu. No entanto, ficou grata por ter oportunidade de afirmar em público que Alfred Brown “é o homem que fez de mim quem eu sou”.
Uma mulher que cresceu no Colorado nunca revelou que a sua avó era índia choctaw, com medo que a denunciassem e mandassem para uma reserva. A avó era uma mulher orgulhosa que, apesar do ódio e discriminação que grassavam na sua cidade, contava histórias sobre os seus antepassados choctaw na segurança do seu lar. Essas histórias hoje são acarinhadas.
De súbito, uma torrente de humanidade começou a fluir, desafiando o preconceito de que existia medo de falar abertamente sobre o tema.
A minha mãe odiava a minha pele escura
Sou branca , mas não sou básica
Sou mexicano, mas só quando me dá jeito
Ao longo do projecto, arquivámos mais de 500 mil histórias, provenientes dos 50 estados dos EUA e de cerca de cem países e territórios. Recebemos histórias de lugares distantes, onde há mais probabilidade de as pessoas se preocuparem mais com a religião e a casta do que com a etnia. No entanto, há um campo semântico associado à palavra: poder, rejeição, pertença e medo.
Este projecto começou numa altura em que os acontecimentos e tendências evidenciavam uma mudança na ordem social dos EUA: uma família negra na Casa Branca; mudanças dramáticas na atitude face ao casamento homossexual e questões LGBTQ; as consequências do 11 de Setembro; e alterações demográficas visíveis na publicidade, nas multidões dos centros comerciais, nos estudantes inscritos nas escolas e nos estados dos EUA (seis, por enquanto) onde a população branca não-hispânica passou a ser minoritária.
Kristen Moorhead. «I WISH HE WAS A GIRL» “Quem me dera que ele fosse uma rapariga”.
Kristen Moorhead enviou as suas seis palavras para o projecto no dia 26 de Novembro de 2014, o dia em que a polícia de Cleveland divulgou um vídeo de vigilância granulado mostrando como Tamir Rice, de 12 anos, fora alvejado por um agente segundos após a chegada deste ao local para o qual fora pedida ajuda num telefonema para as emergências. Afinal, a criança tinha uma pistola de brincar.
Tal como Tamir Rice, Che, o filho de Kristen Moorhead, tinha 12 anos na altura. A sua mãe escreveu: “Quem me dera que ele fosse uma rapariga.” Disse que este sentimento era como um grito silencioso.
“Sempre disse ao meu filho que ele poderia ser tudo o que quisesse”, escreveu nesse dia. “Ele tem 12 anos agora. É quase da minha altura e jura que não vê cores. As suas possibilidades são infinitas, mas há uma desvantagem cruel. Podes ser tudo o que quiseres, mas primeiro tens de sobreviver.”
Neste Inverno, vi Kristen ler as suas seis palavras ao filho, que tem actualmente 18 anos. Ela explicou que não desejou uma criança diferente, mas estava a reflectir um medo profundamente enraizado, devido ao facto de tantos homens e rapazes negros serem mortos pela polícia.
Com 1,80 metros de altura, Che é mais alto do que a mãe. Graças a vários programas para crianças dotadas e talentosas, está agora a preparar-se para a faculdade e já não diz ser indiferente à cor. Em vez disso, disse que a sua cor e género são a primeira faceta que o mundo frequentemente vê nele.
“Ainda tenho o hábito de, sempre que entro numa mercearia ou mesmo quando passo por alguém na rua, dizer sempre ‘olá’ ou ‘bom dia’ ou tentar ter uma pequena interacção porque a forma como eu falo costuma alterar a percepção que as pessoas têm de mim”, disse Che, que ainda tem voz de menino. “São interacções insignificantes, mas preciso de ter sempre um sorriso no rosto… e de erguer esta barreira que me torna uma figura unidimensional que pode existir enquanto pessoa, ou nem sequer como pessoa, mas com algo parecido com uma pessoa e não com uma ameaça.”
É possível que os leitores já tenham ouvido falar na tradição de os pais negros e mulatos terem “a conversa” com os filhos, aconselhando-os a comportarem-se de maneira a chegarem seguros a casa, sobretudo se tiverem um encontro com a polícia. Este episódio foi “a conversa” ao contrário. Uma criança explicou à mãe pela primeira vez como absorveu e se comportou conforme o seu conselho. Kristen está satisfeita por o filho ter aprendido as lições, mas sente mais dor do que orgulho.
“Sinceramente, há um certo nível de ressentimento por o meu filho ter de aprender isto e de eu ter de ensinar-lho”, disse. “Não há qualquer satisfação em vermos o nosso filho ser bom nessas matérias.”
Nos Estados Unidos, os debates nacionais sobre etnia costumam ser ditados e definidos por eventos grandes e explosivos: debates sobre imigração, um pioneiro que vence a barreira da cor ou o derrube de um monumento confederado. Contudo, há um certo factor de intimidade nas histórias que as pessoas tendem a partilhar neste projecto. Há, de facto, referências directas à escravatura, às quotas de acção afirmativa e ao primeiro presidente negro dos EUA, mas é mais frequente a partilha de relatos sobre os filhos e colegas de trabalho, o bairro ou igreja, sobre a maneira como o mundo reage ao seu sotaque, às suas tradições ou ao tamanho do seu corpo.
Celeste Green. «WE AREN’T ALL "STRONG BLACK WOMEN”» “Nem todas somos mulheres negras fortes”.
A Celeste Green não se importa que as pessoas a considerem uma mulher negra forte. Na verdade, ela é todas essas três coisas. O que aborrece esta médica de 32 anos é isso ser, frequentemente, tudo o que as pessoas vêem, menosprezando as qualidades que a fazem igualmente sentir-se orgulhosa: graciosidade, inteligência, paciência e compostura.
Por isso, quando redigiu o ensaio que acompanhou a sua segunda candidatura à faculdade de medicina, desenvolveu-o em torno da história de seis palavras que enviara para o Projecto Race Card em 2012: “Nem Todas Somos ‘Mulheres Negras Fortes’”.
“Não sou apenas uma Mulher Negra Forte, de cara fechada, avançando pela vida como se tivesse uma lista de verificação com itens para riscar”, escreveu na sua candidatura à faculdade de medicina da Universidade da Carolina do Norte. “O meu dever não é fingir força nem superioridade moral, mas transformar as minhas experiências em empatia.”
A candidatura de Celeste foi aceite e a médica está agora a fazer a residência em ginecologia e obstetrícia. Continua a considerar o estereótipo da mulher negra forte como uma faca de dois gumes. Com demasiada frequência, essa atitude é prejudicial às mulheres que se convencem de que têm sempre de estar à altura dessa expectativa. E é perigosa quando as pessoas pensam que as mulheres negras conseguem lidar com quase tudo sem ajuda ou sem descanso. Esse estereótipo está tão fixado na imaginação popular que é frequentemente considerado um elogio.
“A força interior traz consigo muitas expectativas”, escreveu. “‘Por que haveremos de dar-lhe mais remédios para as dores? Ela é forte.’
E estes exemplos parecem hiperbólicos, mas quando olhamos para os números díspares da saúde, dos salários, do reconhecimento da nossa arte, da nossa defesa, da nossa inteligência… As mulheres negras continuam a ser ignoradas.”
“Se uma mulher negra se sentir no seu estado mais poderoso e capaz quando se descreve como forte, então apoio completamente a sua existência nesse estado”, escreveu Green. “Sinto-me muito mais forte agora do que naquela altura em que escrevi a minha história em seis palavras. ‘Mulher negra e forte’ pode rapidamente deixar de ser um ornamento e passar a um ser fardo.”
Muito frequentemente, escreveu, “é uma desculpa para exigir mais de nós à custa do nosso bem-estar e da nossa paz”.
Há muitas histórias de mulheres que são confundidas com amas por não se parecerem com os filhos multiétnicos. Muitas histórias de homens negros que vêem as pessoas puxar as carteiras para junto de si quando passam junto deles na rua. Muitas histórias de pessoas brancas que afirmam nunca terem tido escravos e estão fartas de lhes ser incutida culpa por causa de um passado que não tem relação directa com as suas vidas.
Também tomámos conhecimento de muitas famílias desejosas de se assegurarem que os seus filhos são considerados “genuinamente” americanos. Partilham um objectivo comum, mas as suas definições variam. Isso também mudou desde que iniciei este trabalho, uma vez que as alterações demográficas fixam os EUA numa trajectória na qual as minorias de hoje acabarão por transformar-se em maioria.
E embora a nossa actividade se desenvolva sob a égide do Projecto Race Card, muitos dos nossos contadores de histórias enviam-nos relatos que nada têm que ver com as opções que seleccionaram para a sua cor de pele ou etnicidade no inquérito. As histórias giram em torno do serviço militar, da orientação sexual, da deficiência ou da cor do cabelo.
Como é que o teu bebé saiu ruivo ?
Antigamente, andava com rastas, mas aprendi a lição
Demasiado loura para o perfil “étnico ”
Este trabalho permite-nos ver as pessoas como elas se vêem a si próprias. Elas escolhem aquilo que querem dizer. Em função disso, conseguimos ver uma parte do mundo que costuma ser ocultada. Já ouvi agentes da polícia, professores, agricultores, eleitores e profissionais de saúde que se encontram nas linhas da frente. Já ouvi prisioneiros libertados, soldados regressados de missões militares, adolescentes em processo de mudança de género e pessoas que nunca pretenderam fingir e disfarçar a identidade que herdaram, mas perceberam que era simplesmente mais fácil não corrigir alguém que pensava que elas eram caucasianas, cristãs ou filipinas.
Daniel Robbins. «ASHAMED THAT ACCOMPLISHED MINORITIES SURPRISE ME» “Vergonha de ficar admirado com o sucesso das minorias”
Por vezes, os contributos para o Projecto Race Card atingem as pessoas como um murro no estômago e as seis palavras de Daniel Robbins enquadram-se certamente nessa categoria.
Tendem a fazer as pessoas sentir-se incomodadas. As pessoas sentem-se zangadas por ele se atrever a dizer uma coisa destas em voz alta. Sentem-se ofendidas com a sua sinceridade. A minha posição é diferente. Aprecio a sua franqueza, por representar um comportamento muito frequente no local de trabalho e na sala de aula – na verdade, em qualquer sítio onde os feitos de pessoas oriundas de grupos historicamente marginalizados colidam com as expectativas enraizadas.
Daniel é designer em Seattle e enviou-nos as suas seis palavras em 2014, depois de participar num programa de liderança que explorou as raízes e o impacte do racismo. “Por mais liberal e progressista que diga que sou, por mais seminários em que tenha participado ou ensaios que leia sobre privilégios e a desigualdade social, ainda ouço a minha voz interior exprimir uma surpresa agradável quando vejo uma minoria sair-se bem”, escreveu numa curta história que dava contexto às suas seis palavras. “Seja por ver alguém de uma minoria ter sucesso num negócio, escrever um editorial na imprensa nacional ou a fazer rondas médicas um hospital, penso para mim próprio: ‘Olha que bem!’” E acrescentava: “Não me orgulho disto e não sei como resolvê-lo.”
Anos mais tarde, ainda procura essas respostas, ainda se empenha em tornar-se vulnerável e sair da sua zona de conforto. E ainda admite ouvir aquela vozinha de espanto entusiasta quando reconhece excelência em sítios que considera inesperados. Todas as pessoas são diferentes, mas ele acha que o primeiro passo é reconhecer essa voz interior e, em seguida, descobrir como lhe responder.
“[Terei de] Entender que se trata de uma voz interior e que, por vezes, pode ser mais respeitoso expressá-la a cru, tal como mostraria a qualquer outra pessoa” – disse Robbins numa entrevista. “É mais ou menos como se o meu lado branco liberal e progressista quisesse dizer: ‘Oh, meu Deus, mas que bela ideia. Como pensaste nisso?’ Mas eu não diria isso a um colega branco”, reconheceu numa entrevista.
Esta tela multicolor sublinha algo que frequentemente nos escapa quando pensamos no tema da raça. Essa palavra, com toda a sua carga, costuma estar associada à toxicidade histórica do racismo. Nos EUA, devido a um passado ditado pelas leis Jim Crow, isso significa que a palavra “raça” costuma invocar um cenário de privilégio branco e preconceito contra os negros. No entanto, essa cobertura binária acaba por obscurecer ou apagar outras correntes culturais. Na grande discussão sobre raça e etnicidade nos EUA, os latinos, asiáticos, iranianos, árabes, nativos americanos, são empurrados para a margem.
Um turbante não significa terrorista
Sou apalache – é uma etnicidade invisível
Pergunta: mlk apoiaria os direitos dos homossexuais?
Esta manta de retalhos abrange todas essas correntes. Micro-ensaios profundos que sublinham uma verdade dura. Sim, a América está mais integrada e tolerante, devido a alterações legislativas e à mudança de atitudes, mas as nossas experiências, pressupostos e medos relacionados com raça tornaram-se mais complicados e há mais… problemas de indigestão.
Maren Robinson. «WHITE HUSBAND BECAME IRANIAN SEPTEMBER 11TH» “11-9: marido branco torna-se iraniano.“
Rom Barkhordar. «YOU DON'T LOOK IRANIAN!» «I AM» “Não pareces iraniano!” “Mas sou.”
Na manhã de 11 de Setembro de 2001, Maren Robinson e Rom Barkhordar estavam a viajar de automóvel pelo país e pararam numa estação de serviço no Arkansas para reabastecer e comer. Quando entraram, todos os presentes estavam a olhar para uma televisão na parede. Havia fumo a sair de dois arranha-céus, um ao lado do outro, na cidade de Nova Iorque.
“O que se passa?”, perguntou Rom. Um homem sentado ao balcão explicou-lhe que o World Trade Center estava a ser atacado. Depois, outro homem sentado perto deles pronunciou um insulto genérico dirigido às pessoas com ascendência do Médio Oriente. Rom Barkhordar olhou para a sua mulher e disse: “Vamos embora daqui.”
Rom é irano-americano. A sua mulher, Maren, é loura e tem ascendência europeia. O 11 de Setembro tornou-se uma fronteira nas suas vidas. “Diria que foi, definitivamente, a primeira altura em que temi fisicamente pela segurança [do Rom] e isso nunca mais desapareceu”, diz Maren.
Depois de ouvir um programa radiofónico sobre o Projecto Race Card, Maren e o marido sentiram-se inspirados para partilhar a sua história, mas nenhum deles sabia o que o outro dissera quando as enviaram.
A mudança que sentiram depois do 11 de Setembro é patente nas seis palavras enviadas por Maren: “Marido branco tornou-se iraniano depois do 11 de Setembro”. Ela também enviou uma história para contextualizar a sua escolha de palavras. “Vi como o meu marido, meio iraniano e nascido nos EUA passou de ser considerado branco… para ser considerado vagamente do ‘Médio Oriente’ (suscitando hesitações nos comboios e buscas adicionais nos aeroportos) depois do 11 de Setembro.”
Maren é consultora de guiões para vários teatros na região de Chicago e trabalha em funções administrativas na Universidade de Chicago. Rom é actor, com uma longa lista de participações em teatro, televisão e interpretações vocais em videojogos. No seu contributo para o Projecto Race Card, escreveu: “Não pareces iraniano!”, “Mas sou.”
Antes do 11 de Setembro, era visto como um homem branco moreno capaz de interpretar uma série de papéis. Depois do 11 de Setembro, as personagens que lhe foram propostas foram com mais frequência vilões árabes, o tipo de papel representado em argumentos sobre terrorismo.
A partir de então, Rom e Maren começaram a receber correio e chamadas de telemarketing em persa e em árabe, idiomas que nenhum deles fala. O súbito influxo de mensagens do Médio Oriente era um mistério para eles. Hoje suspeitam que estavam a ser vigiados por alguma iniciativa governamental com o objectivo de avaliar os homens com ascendência do Médio Oriente dos EUA.
“Tenho um cadastro completamente limpo e imaculado”, diz Rom. “Eles estavam simplesmente a basear-se no facto de eu ter um apelido iraniano e de ser um homem de determinada idade, enquadrando-me por isso naquele perfil.”
Com o vigésimo aniversário do 11 de Setembro à vista, esta família ainda sente o ferrão. A experiência tornou a sua ligação ao passado étnico de Barkhordar ainda mais forte, sobretudo através do trabalho teatral. Maren promove histórias que examinem um espectro mais largo de culturas e personagens. E Rom deixou crescer a barba, em parte para se identificar melhor com a sua cultura, dentro e fora do palco.
Ao fazer este trabalho há tantos anos, tenho a sorte de poder acompanhar algumas histórias ao longo do tempo e aprendi lições valiosas sobre a noção fluida de identidade. Numa América em mudança, é menos provável que todos os tipos de identidade (etnicidade, género, classe) se definam pela escolha de certezas antigas, eternamente codificadas.
Alguns destes relatos com seis palavras confirmam que a identidade, os lemas e as atitudes evoluem em função do tempo e das circunstâncias. A visão de longo prazo traz consigo, frequentemente, muitas surpresas. As pessoas transformam-se ou constrangem-se. As atitudes mudam ou calcificam-se. Acontecimentos fora do controlo podem catalisar imediatamente os pontos de vista de uma nação e criar uma sensação de vertigem pessoal.
Eu sou tudo o que Donald Trump odeia
Odiado por ser um polícia branco
O árabe invisível até 12 de setembro
Ouvir esta sinfonia ao longo de tantos anos tem sido muito compensador, mas também tem sido duro. É um desafio manter o projecto vivo. Estou grata a todos os que nos confiaram a suas histórias e a um pequeno exército de pessoas que viram o potencial do projecto e ajudaram a financiá-lo. Tivemos triunfos, avanços e epifanias, mas o tema principal deste arquivo é a etnia. Por isso, todas as semanas trazem um novo tipo de ansiedade ou intensidade. Não estou a insinuar que seja um fardo, mas os contornos do meu coração mudaram uma década mais tarde. Compreendo melhor os desafios em torno da raça, as raízes que alimentam o racismo e a tendência automática para desejar que tudo simplesmente acabasse, em vez de tentarmos perceber melhor a razão pela qual não conseguimos ultrapassar aquilo que nos separa.
A minha avó mandou-me $100 quando nos separámos
Estou morto para o meu pai
Apontaram-me uma arma… tentei na mesma
A expressão “pós-racial” ainda pairava no ar quando iniciei este projecto em 2010. No entanto, mesmo naquela altura, muitos aspectos das nossas vidas sugeriam que a etnicidade não iria desaparecer da mesa de debate. Agora, dez anos depois, os sociólogos falam sobre um fenómeno de saúde pública denominado fadiga da batalha racial – uma condição definida como o resultado cumulativo de uma resposta de stress repetida em condições mentais e emocionais perturbadoras, associadas a tensões raciais persistentes. Lá se foi o pós-racial.
Vivemos um tempo em que muitas pessoas dizem sentir-se cansadas com os conflitos raciais, mas simultaneamente fazem enormes esforços para defenderem o seu ponto de vista particular. Estaremos mesmo cansados do assunto ou simplesmente não temos interesse em explorar um mundo que não é o nosso? Na realidade, a exploração de mundos e perspectivas alternativos é, de certa forma, mais difícil devido à polarização política e à segmentação dos meios de comunicação social. Muito daquilo que vemos, ouvimos e lemos só confirma aquilo em que já acreditamos. É nisso que este projecto é diferente. Cada contributo é uma janela com vista para os domínios de outra pessoa.
O arquivo do Projecto Race Card abrange um amplo leque de pontos de vista e experiências de vida. Poderá encontrar algo familiar, algo que faça a sua cabeça acenar num gesto de concordância. No entanto, posso também garantir-lhe que, ao ler estas histórias, descobrirá frases que causarão incómodo ou dar-lhe-ão vontade de chorar, de contorcer-se ou de esbracejar.
Não admira. É uma viagem através da etnicidade e da identidade. É um projecto que põe o mundo diante de um espelho. Tendo em conta o tema, como poderia alguém esperar de gostar ou aceitar tudo o que vê?
Ao longo da última década, o Projecto Race Card transformou-se num espaço de confiança que desenterra verdades ocultas e questiona narrativas empedernidas. O exercício de escrita das seis palavras e o arquivo de narrativas é actualmente utilizado em escolas e universidades de todo o país e também fora dos EUA. É igualmente utilizado por instituições de todos os tipos que pretendem estimular debates ou trazer à superfície histórias sobre as quais não se costuma falar.
Daqui a décadas, este vasto arquivo de narrativas na primeira pessoa sobre um dos assuntos mais incómodos da história ajudará historiadores, sociólogos e jornalistas a perceberem a experiência vivida da etnicidade e da identidade numa época agora pontuada por uma pandemia global, manifestações de rua e agitação política. O arquivo é como um almanaque, um catálogo, um repositório de pequenos contributos que compõem a imagem panorâmica. Somos definidos por leis, acontecimentos e tendências, mas são os momentos mais pequenos e pixelados que realmente completam essa imagem.
Passei dez anos a trabalhar num projecto que partiu de um pressuposto errado. Pensei que ninguém queria falar abertamente sobre um tema tão sensível como a etnicidade. Estava gloriosamente errada. Por vezes, abrimos a porta errada e vamos parar ao sítio certo.
Empenhada em dar a conhecer e proteger as maravilhas do nosso mundo, a National Geographic Society financiou o trabalho de Michele L. Norris, jornalista e exploradora, que visa incentivar conversas sinceras sobre etnicidade.
Conte a sua história
Para se juntar a esta conversa, visite theracecardproject. com. Siga as instruções e escreva a sua história com seis palavras. Escreva mais, se quiser, e leia os contributos de outras pessoas.