Voltaire

O pensamento de François-Marie Arouet tolerante e aberto, anticlerical e deísta, assenta na convicção de que o homem é o dono do seu próprio destino.

Não partilho das suas ideias, mas defenderei até à morte o seu direito de as expressar”. Quem escrevia assim era François-Marie Arouet, o escritor, historiador, pensador e jurista francês que ficou na História com o apelido de Voltaire. Nasceu em Paris, no dia 21 de Novembro de 1694, quinto dos filhos do casamento do notário François Arouet e da aristocrata Marie Marguerite d’Aumard. Órfão de mãe desde os 7 anos, formou-se sob a tutela da Companhia de Jesus, no colégio Louis-le-Grand, após o que passou a estudar Direito na Sorbonne, sempre sob a protecção do seu padrinho, o abade de Châteaunef. Foi este quem o apresentou à Sociedade do Templo, um curioso clube libertino que pretendia contrariar o tom de gravidade que a Madame de Keepon, favorita de Luís XIV, impusera em Versalhes. A sua passagem pela Sociedade do Templo rendeu-lhe uma herança substancial da cortesã Ninon de Lenclos, membro da mesma, que investiu em livros, os quais lhe serviram para se distrair durante os onze meses que passou como prisioneiro na Bastilha, depois de publicar alguns versos satíricos contra Filipe de Orleães, irmão do rei.

Depois de sair da prisão, em 1717, passou a utilizar o pseudónimo de Voltaire. Na altura, fora-lhe comutada a pena de prisão pela de exílio em Châtenay-Malabry, onde escreveu a sua tragédia fídipo e, em 1723, a epopeia A Henríada, em homenagem a Henrique VI, que o consagrou definitivamente no mundo das letras. No entanto, pouco pôde desfrutar do seu sucesso, uma vez que, em 1726, uma ácida disputa com Monsieur de Rohan, membro de uma família da alta nobreza francesa, levou-o de volta à Bastilha, embora pouco depois a sua pena tenha sido comutada pela de exílio na Inglaterra.

Voltaire

A partir de 1758, Voltaire reconstruiu completamente o Château de Ferney, perto da fronteira com a Suíça. Diz-se que cuidou dos jardins com as próprias mãos, seguindo um dos princípios do seu Cândido: “Devemos cultivar o nosso jardim.”

Émilie du Châtelet

Passou três anos em Londres, durante os quais conheceu personalidades como Locke ou Newton e onde entrou em contacto com as novas ideias políticas que, a partir de então, fundamentariam o seu pensamento. Assim ficou patente quando, após o seu regresso a França, publicou em 1734 as suas Cartas filosóficas ou Cartas inglesas, onde se revelava abertamente defensor da tolerância religiosa e da liberdade de pensamento. De imediato, sentindo-se atacado, o governo francês não só se apoderou da obra, como a queimou publicamente. Foi então que entrou na sua vida Émilie Le Tonnelier de Breteuil, marquesa de Châtelet e uma das matemáticas mais ilustres do seu tempo. Voltaire frequentara a sua família desde a juventude e, sabendo que era perseguido, a marquesa ofereceu-lhe a sua mansão em Cirey (Lorena), onde poderia refugiar-se e, além disso, dada a localização fronteiriça da mansão, poderia fugir de França se fosse necessário. Pouco depois, hóspede e anfitriã começaram uma intensa relação amorosa. Unidos pelo amor à ciência e à literatura, o casal recebeu em Cirey os cientistas mais importantes da altura, constituiu uma biblioteca com cerca de 21.000 volumes e, enquanto Émilie prosseguia com os seus próprios estudos científicos, Voltaire dedicou-se a escrever. Daqueles anos datam obras como Eléments de la philosophie de Newton (1738) e dramas como Zaire (1732), A Morte de César (1735), O Filho Pródigo (1736) e Maomé ou o fanatismo (1741). Por volta de 1745, a relação sentimental terminou, mas entre ambos continuou a reinar uma amizade cordial e uma profunda ligação intelectual que só terminou com a morte de Émilie, em 1749.

Da Prússia à Suíça

Devastado com a morte da sua companheira, Voltaire regressou a Paris. Fê-lo por pouco tempo. Em 1750, Frederico II da Prússia, que conhecia e admirava a sua obra, convidou-o para a sua corte. O ambiente iluminista que ali se respirava e as tertúlias de cientistas, artistas e intelectuais presididas pelo monarca acabaram por se tornar no estímulo perfeito para o seu talento. No Palácio de Potsdam, escreveu O Século de Luís XIV (1751) e Micromegas (1752), um conto filosófico de ficção científica; recebeu o cargo de historiógrafo da corte e foi enobrecido com a distinção de cavaleiro da Real Câmara. Mas a idílica situação não durou muito tempo. O seu desencontro intelectual com o filósofo materialista Maupertuis, nomeado presidente da Academia das Ciências de Berlim, por desejo expresso do monarca, deixou Voltaire profundamente desgostoso. Depois de enfrentar o soberano, este expulsou-o do país.

Frederico II não foi o único monarca a render-se ao talento de Voltaire. Na década de 1770, o filósofo manteve uma prolixa correspondência, que durou mais de quinze anos, com a czarina Catarina II da Rússia. Nas suas cartas mostrava-se absolutamente admirado pelo empenho da imperatriz em fazer do seu império uma nação moderna e iluminista, tanto que lhe dedicou epítetos como a Estrela do Norte ou Semíramis da Rússia.

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Pseudónimo de origem desconhecida. A razão pela qual François-Marie Arouet decidiu assinar as suas obras como Voltaire é ainda hoje um mistério sobre o qual existem diversas hipóteses, que o interessado nunca esclareceu. No entanto, provavelmente tratava-se de um acrónimo, que ocultava o nome da família.

Para alguns autores, Voltaire derivaria da alcunha de família com que se conhecia o pequeno François-Marie Arouet: "Petit Volontaire" (“pequeno voluntário”). Outras hipóteses sugerem que se tratava do nome de um pequeno feudo pertencente à sua mãe, ou uma alteração na ordem das sílabas de "revoltair" (“revoltado”). Outros, no en- tanto, consideram a derivação de uma antiga expressão francesa já em de- suso, "voulait faire taire" (“queria fazer calar”), que esconderia o seu desejo de impactar a opinião pública com um pensamento tão inovador como revolucionário. Em qualquer caso, o mais provável era que se tratasse de um anagrama de Arouet, "le jeune" (“o jovem”), com o qual quis ocultar o seu sobrenome para não pôr em causa o nome da família no seguimento da sua detenção e reclusão na Bastilha.

Assim, no dia 18 de Outubro de 1769, Voltaire escreveu à czarina: “Sabia muito bem que a muito ilustre Catarina II era a primeira pessoa do mundo inteiro, mas não sabia que era mágica. Uma vez que é tanto o seu poder sobre os elementos, porque não enviar-me a fiecha de Ábaris ou a carruagem de Elias, para que eu possa ser testemunha de todas as vossas grandezas e vossos prazeres? (...) Prostro-me aos pés de Vossa Majestade Imperial para lhe pedir muito humildemente perdão por ter ousado incomodá-la com as minhas lamentáveis inoportunidades.” E continuava: “O Império Romano não criava mais do que dois cônsules ao mesmo tempo: mas o mundo inteiro quer ser cônsul da Rússia. Todos os que entram na minha casa e vêem o seu retrato imaginam que gozo de grande crédito na vossa corte, e dizem-me: ‘Faça-nos cônsules desta imperatriz que deveria ser soberana de todo o globo, e que pelo menos possui um quarto dele.’ Eu tento reprimir a sua ambição. Farei mais, senhora. Vou reprimir o meu charlatanismo. Compreendo que entedio a conquistadora, a legisladora, a benfeitora: é-me permitido adorá-la, mas não me é permitido entediá-la em demasia. Há que colocar limites ao meu zelo e às minhas temeridades. Há que limitar-se, apesar de tudo, ao mais profundo respeito.”

Nunca chegaram a encontrar-se pessoalmente; mas, quando o filósofo morreu, Catarina comprou toda a sua colecção de livros e depositou-a na biblioteca do Palácio Imperial de São Petersburgo.

Depois de ter sido expulso da Prússia, um desalentado Voltaire refugiou-se em Genebra. No entanto, nem ali encontrou a tranquilidade necessária para prosseguir com o seu trabalho. A irredutível mentalidade calvinista não estava disposta a aceitar a sua condição de dramaturgo, visto que o teatro era considerado imoral. Por outro lado, uma série de referências a Miguel Servet – que fora condenado à morte na fogueira pelo próprio Calvino – no seu Ensaio sobre os costumes (1756), acarretou-lhe a inimizade das autoridades de Genebra. Da mesma forma, o seu poema satírico Joana d’Arc, a donzela (1755) e o seu romance Cândido ou o optimismo (1759), em que o clero, a monarquia e o exército não saíam com uma imagem muito abonatória, acabou por lhe render a condenação da Igreja católica.

A residência de Ferney

Decidido a encontrar alguma estabilidade, em 1758 adquiriu uma propriedade em Ferney, no distrito francês de Ain, na fronteira com a Suíça, onde residiu durante vinte anos. Por Ferney, passou a elite intelectual da maioria dos países europeus, ali foram representadas tragédias como Tancredo (1760). Manteve uma abundante correspondência e continuou a provocar, com os seus escritos críticos e satíricos, os sectores mais conservadores da sociedade. Foi um período de abundante produção literária, mas também de polémicas, especialmente a que o confrontou com Jean-Jacques Rousseau e que fez terminar a amizade que unia dois dos mais ilustres talentos do século XVIII.

Em 1762, publicou, sob o título de Testamento de Jean Meslier, um texto em que resumia o livro original Memória dos pensamentos e sentimentos de Jean Meslier, no qual o sacerdote católico com o mesmo nome manifestava o seu ateísmo militante e criticava duramente as instituições religiosas, políticas e militares do seu tempo. Seguiu-se, um ano mais tarde, o Tratado sobre a tolerância e, em 1764, o seu Dicionário filosófico.

Apesar dos escândalos, Voltaire acabou por conseguir a admiração e o respeito dos seus contemporâneos. Inclusive, em virtude da sua condição de personalidade infiuente da sociedade civil, interveio em vários casos judiciais relacionados com acusações de impiedade ou heresia, para defender a tolerância e a liberdade perante todo o dogmatismo.

Uma vez recuperado o seu prestígio, em 1778 regressou a Paris. Nesta cidade, a mesma que o vira nascer, viria a falecer no dia 30 de Maio do mesmo ano (Rousseau morreria trinta e dois dias depois). Em 1781, os seus restos mortais foram transladados com todas as honras para o Panteão de Paris.

O legado de Voltaire

O pensamento de Voltaire ficou registado nas suas inúmeras obras filosóficas e, de forma implícita, nas suas tragédias, trabalhos historiográficos e romances. Contrariamente ao que defendia Rousseau, Voltaire não via nenhuma oposição entre a sociedade e o indivíduo. Pelo contrário, convencido da existência de um sentimento universal e inato de justiça, defendia que o ser humano, bom por natureza, não se deixava corromper pela pressão social: as leis levavam-no a estabelecer um pacto social que preservava os interesses de cada um. O fim último da moral seria estabelecer os princípios da convivência e torná-la frutífera para todos. O homem poderia melhorar a sua condição através da ciência e da técnica, e a sua vida graças às artes e à cultura.

Relativamente à religião, Voltaire proclamava-se deísta e assegurava que, da mesma forma que um relógio pressupõe a existência anterior de um relojoeiro, o universo implica a obra do que denomina como “eterno geómetra”. Fervoroso opositor da Igreja católica, à qual acusava de intolerante e injusta, a sua linha de actuação converteu-o no modelo a seguir para a burguesia anticlerical e acarretou-lhe a inimizade de toda a Igreja. Apesar disso, foi um firme defensor da tolerância e da convivência pacífica entre pessoas de diferentes credos.

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Em Ferney, Voltaire é recordado como um homem activo, que ajudou a transformar o povo. Voltaire conversando com os camponeses de Ferney é precisamente o título desta cena campestre, atribuída a Jean Huber, 1721-1786 (Museu de Belas-Artes, Nantes).

No campo historiográfico, Voltaire centrou o seu trabalho na compreensão da História e não tanto na explicação dos factos concretos. Procurou descobrir quais e como foram as linhas gerais do progresso humano e, contra a interpretação providencialista de Bossuet, propôs uma visão laica e universal da história. A sua literatura, dotada de um subtil sentido de humor e de um estilo acessível e agradável, foi o instrumento com que atacou os seus inimigos e defendeu os seus princípios perante uma sociedade nem sempre disposta a secundá-lo nos seus critérios.

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