Um observador do século XVI ainda avistou a morfologia da velha mesquita almóada.
Texto: Virgílio Lopes
Entre 1509 e 1510, ao desenhar Mértola para o seu Livro das Fortalezas, Duarte de Armas, escudeiro da casa real de Dom Manuel I, fez uma anotação curiosa junto do edifício da Igreja Matriz: “Igreja que foi mesquita” – escreveu. Não escapou assim ao observador uma característica vital do templo religioso cristão que domina a vila alentejana. É um dos indícios documentais mais antigos da prática, certamente comum, de conversão de templos religiosos islâmicos.
A actual Igreja Matriz de Mértola está situada no limite nascente da plataforma artificial contígua ao complexo baptismal e foi cristianizada com a Reconquista Cristã, em 1238, quando Mértola foi conquistada pelas hostes de Santiago da Espada. Os novos senhores não promoveram novas construções, aproveitando ao invés as edificações existentes, as estruturas do antigo castelejo e cristianizando a mesquita, agora dedicada a Santa Maria. A escavação, realizada na parte exterior do monumento, revelou uma estrutura monumental, constituída por silharia de granito reaproveitada, com cerca de dois metros de altura. Estas estruturas foram interpretadas como sendo de uma construção anterior à mesquita.
A história é assim bastante mais complexa do que se pensou: terá existido um primeiro edifício, possivelmente um templo dedicado ao culto imperial, atendendo à epigrafia e aos elementos arquitectónicos aí encontrados, em funções até ao início do século IV. Com a proclamação do cristianismo como religião oficial, certamente o templo sofreu transformações, mas desconhece-se o programa arquitectónico. Nos séculos VI ou VII, talvez estivesse um pequeno templo cristão no local.
A mesquita que se lhe seguiu deverá ter sido erguida na fase de consolidação almóada, na segunda metade do século XII. Durou até à Reconquista Cristã. Práticos, os novos senhores de Mértola conferiram novas funções ao minarete da mesquita, transformado em torre do campanário. As vozes dos almuedins foram substituídas pelo som dos sinos da igreja. E a vida continuou.
O desenho do livro de Duarte de Armas onde figura a igreja de Mértola, à direita. Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
No século XX, alguns historiadores de arte chegaram a propor que o interior da igreja replicava o interior da antiga mesquita. A arqueologia comprovou que tal não foi assim. A Igreja Matriz que nos chegou é o resultado das intervenções de meados do século XVI. Os edifícios, tal como as palavras escritas de Duarte de Armas, ficam para sempre, mesmo quando a memória das palavras faladas já se esvaiu.