Participantes numa reconstituição histórica combatem na poeira da arena de Arles, em França. Estes combates ficcionais ajudaram os investigadores a obter mais conhecimentos sobre este antigo desporto sangrento, que cativou os romanos durante muitos séculos.
Os gladiadores reais não eram iguais aos dos nossos filmes. Os seus combates eram um espectáculo e não uma luta sem tréguas para aniquilar o rival.
Texto: Andrew Curry
Fotografias: Rémi Bénali
ilustrações: Fernando G. Baptista
CAPÍTULO I
Arles, França
O túnel existente sob o anfiteatro romano na cidade francesa de Arles é escuro e fresco. A sombra alivia-nos agradavelmente do sol escaldante que fustiga a arena revestida a areia.
No entanto, o capacete de gladiador que acabei de pôr é sufocante. Réplica da protecção para a cabeça utilizada pelos gladiadores romanos há quase dois mil anos, o elmo amolgado e riscado pesa aproximadamente seis quilogramas. Tem um cheiro pungente a metal, como se tivesse enfiado a cabeça dentro de um saco de moedas de um cêntimo cheias de suor.
Através da grelha de bronze que me tapa os olhos, distingo dois homens vestidos com tangas a aquecerem para um combate. As protecções metálicas dos braços tilintam enquanto um deles se balança sobre os metatarsos, empunhando a espada robusta e curva na mão revestida por uma luva de cabedal. Enquanto me movimento desconfortavelmente, o seu colega ergue a espada e pergunta-me se quero que me bata com ela na cabeça, só para demonstrar como o capacete é resistente.













Então, o treinador, um francês bastante bronzeado chamado Brice Lopez, intervém: “Ele não está treinado para isso”, diz, asperamente. “Não tem músculos para isso. Partias-lhe o pescoço.”
Antigo agente da polícia francesa, treinador de combate com cinto negro em jiu-jitsu, Brice sabe bem o que é um combate de verdade. Há 27 anos, fez uma incursão no mundo dos estilos de luta antigos. Depois de encomendar réplicas funcionais de armas e armaduras, passou anos a reflectir sobre a forma como seriam utilizadas em combates até à morte, semelhantes aos que vemos representados em filmes e livros sobre gladiadores.
Porém, quanto mais estudava o armamento e as couraças dos gladiadores, menos sentido faziam. Carregados com escudos, perneiras e braçadeiras metálicas e capacetes de bronze que os cobriam até ao pescoço, muitos gladiadores traziam quase tanto equipamento de protecção para a arena como os soldados romanos para a batalha. E, contudo, as espadas tinham cerca de 30 centímetros de comprimento, pouco maiores do que a faca de um chefe de cozinha. “Por que motivo levariam 20 quilogramas de equipamento de protecção para um combate com facas?”, pergunta.
Qual a sua conclusão? Os gladiadores não pretendiam matar-se uns aos outros, mas poupar a vida uns aos outros. Passavam muitos anos a treinar-se de maneira a encenarem combates espectaculares e a maioria das exibições não terminaria com uma morte. “É uma competição a sério, mas não é um combate a sério”, resume Brice Lopez, que actualmente dirige um grupo de investigação de gladiadores chamado ACTA. “Não existe qualquer coreografia, mas há boas intenções. O outro não é meu adversário, é meu parceiro. Juntos, temos de dar o melhor espectáculo possível.”
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Ao longo das duas últimas décadas, os investigadores descobriram provas que corroboram parcialmente a opinião de Brice Lopez sobre os combates de gladiadores, contestando a ideia popularmente generalizada acerca destes espectáculos antigos. Alguns gladiadores eram criminosos, ou prisioneiros de guerra, condenados a morrerem em combate, mas a maioria eram lutadores profissionais, como futebolistas ou pugilistas da Antiguidade. Alguns tinham famílias à sua espera fora da arena.
A profissão de gladiador podia ser lucrativa e, por vezes, era mesmo uma escolha de carreira, como sugerem as fontes literárias. Provas de bravura na arena tinham o condão de transformar os gladiadores em heróis populares e, até, dar aos prisioneiros a oportunidade de reconquistar a liberdade. Por cada dez gladiadores que entravam na arena, é possível que nove sobrevivessem para combater mais um dia.
CAPÍTULO II
Pompeia, Itália
Durante quase 600 anos, os romanos entusiasmaram-se com os combates de gladiadores. Era um dos temas preferidos dos artistas romanos, reconstituído em mosaicos, frescos, relevos de mármore, objectos de vidro, peças de barro e ornamentos de bronze encontrados por todo o mundo romano. Quase todas as cidades e vilas com uma dimensão considerável tinham a sua própria arena.
Estas antigas competições exercem um forte apelo sobre a imaginação contemporânea. Graças a descrições erróneas no cinema e na literatura, os gladiadores são um dos mais familiares, mas mais mal conhecidos, aspectos da cultura romana.
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Isto acontece porque os escritores romanos dedicaram surpreendentemente pouco tempo a discutir os pormenores dos combates de gladiadores, provavelmente por estes serem tão conhecidos. Com que frequência escrevemos hoje aos nossos amigos sobre o que é um golo no futebol ou sobre quantos jogadores integram uma equipa? Para reconstituírem o que realmente se passava na arena, os arqueólogos e os historiadores têm de procurar pistas na arte, nas escavações e nas entrelinhas dos textos antigos.
À semelhança do que sucede com muitos aspectos da Roma Antiga, algumas das provas mais bem preservadas sobre gladiadores foram encontradas em Pompeia, a sul da actual cidade de Nápoles, em Itália. Outrora uma cidade próspera, Pompeia foi bruscamente sepultada por uma erupção vulcânica no ano 79 d.C.
Ao passearem hoje pelas ruas bem preservadas da cidade, os turistas vêem recordações dos jogos de gladiadores por todo o lado. Na zona oriental da cidade, existe um anfiteatro com capacidade para 22 mil espectadores, com o grande monte Vesúvio espreitando sobre as filas dos lugares de cima.
Anúncios esbatidos nas paredes do centro da cidade promovem os próximos combates. Mosaicos e frescos mostram os pontos altos de combates passados. À saída do teatro da cidade, inclino-me para observar lutadores rudimentarmente desenhados com riscos simples sobre o estuque vermelho desbotado, ao nível dos olhos de uma criança.
Em 1766, os primeiros operários que escavaram as ruínas desenterraram uma colecção de armaduras de gladiadores num local dos arredores da cidade que fora transformado em centro de treino e residência para gladiadores depois de um terramoto ter destruído a escola de gladiadores local.
“Eram as estrelas de rock daquele tempo”, brinca Katherine Welch, historiadora da arte da Universidade de Nova Iorque. Veja-se, por exemplo, Celadus, o Trácio, um promissor recém-chegado a Pompeia com três vitórias já alcançadas e que era “o suspiro das raparigas”, segundo um grafito exprimindo admiração. Ou o seu compatriota Crescens, o retiarius de tridente em punho, “cuja rede capturava as jovens raparigas de noite”.
Desporto sangrento da Antiguidade. A elite romana organizava jogos de gladiadores para ostentar o domínio do império e para conquistar poder e influência. Clique na imagem para ver detalhes.
Mesmo após três séculos de escavações, os arqueólogos continuam a fazer novos achados em Pompeia. Em 2019, os arqueólogos que trabalhavam numa viela estreita no lado norte da cidade encontraram um fresco mostrando dois gladiadores com aquilo que pareciam ser plumas de avestruz a ornamentar os seus capacetes de bronze, pintado na parede de uma pequena taberna. Segundo o arqueólogo Alain Genot, do Museu Departamental de Arles Antiga, o fresco inclui pormenores inéditos: um dos lutadores tem calças vestidas sob as perneiras de protecção.
As feridas ensanguentadas visíveis nos corpos dos dois homens mostram que o combate teve consequências. Mas existe um vencido: um dos lutadores, que sangra de uma laceração no peito desnudo e parece curvado sobre si mesmo, com dores, deixou cair o escudo e ergueu o dedo indicador. O gesto, repetido em muitas representações de gladiadores, é o equivalente da Antiguidade a “bater no chão” para desistir de uma luta.
Outras obras de arte provenientes do mundo romano sugerem que um elenco diversificado de ajudantes e seguidores aguardava nos bastidores, podendo até partilhar a arena. Os músicos animavam a multidão enquanto os gladiadores ocupavam os seus lugares e talvez acrescentassem retoques dramáticos aos combates. Os capacetes e as armas eram transportados para a arena no decurso de um desfile anterior ao combate, encabeçado pelo patrocinador ou mecenas dos jogos.
Os árbitros eram personagens importantes. Eram responsáveis pelo cumprimento de um rigoroso jogo limpo. Numa imagem representada sobre um pequeno pote descoberto nos Países Baixos, um árbitro ergue o seu bastão para interromper um combate, enquanto um assistente surge a correr com uma espada suplente.
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“Ninguém perdia o combate só por perder a arma”, diz Alain Genot. “Quando imaginamos os combates de gladiadores como eventos desportivos, é impossível imaginá-los sem regras.”
É de salientar que a descoberta de inscrições prometendo “combates sem tréguas” e “combates com armas afiadas” sugerem que os confrontos potencialmente mortais eram suficientemente raros para merecerem uma referência especial.
E, como qualquer evento desportivo, havia abundância de dados estatísticos para os adeptos poderem discutir com paixão. Em todo o mundo romano, as vitórias e empates eram apontados nas paredes e cinzelados sobre as lápides. Os resultados de inúmeros recontros nunca serão conhecidos. Mas imaginem o nó no estômago que sentiria Valerius – sobre o qual se dizia, num grafito rabiscado em Pompeia, ter sobrevivido a 25 combates – ao defrontar Viriotas, veterano de 150 combates! Os gladiadores representavam mais do que um mero divertimento. Como exprimem claramente algumas fontes literárias, ao combaterem com bravura, reforçavam os ideais romanos de virilidade e de virtude. A excepção, convém dizê-lo, seria o retiarius que combatia com uma rede, cujas tácticas manhosas e ataques à distância com tridente o tornavam o vilão notório da arena. “Gladiadores, quer homens arruinados quer bárbaros, que lesões são eles capazes de aguentar!”, escreveu o orador romano Cícero por volta de 50 a.C. “Quando os homens condenados combatem com espadas, não existe forma mais dura de treinar o olhar contra o sofrimento e a morte.”
Embora fossem venerados pelos adeptos, os gladiadores ocupavam a posição mais baixa da sociedade hierarquizada de Roma, ao lado das prostitutas, dos proxenetas e dos actores. Por lei, os gladiadores eram considerados bens e não pessoas. Podiam ser abatidos pela vontade caprichosa de quem quer que pagasse o seu combate. “Este aspecto é fundamental para compreender o modo como os romanos eram capazes de estar sentados nos seus lugares, assistindo aos acontecimentos”, diz Kathleen Coleman, especialista em estudos clássicos.
Os especialistas discutem se o gesto do “polegar para baixo”, incentivando o vencedor a aniquilar o adversário, como se vê nesta pintura de 1872, será um facto ou ficção. “Pollice Verso”, por Jean-Léon Gérôme, Ian Dagnall Computing/Alamy Stock
Nos primórdios dos combates de gladiadores, possivelmente encenados no âmbito de rituais funerários, talvez em tempos tão recuados como 300 a.C., os lutadores eram provavelmente prisioneiros de guerra ou criminosos condenados. No entanto, à medida que os jogos foram evoluindo e se transformaram em momentos centrais da vida do império, no século I a.C., tornaram-se mais organizados e as expectativas do público aumentaram. Surgiram dezenas de escolas de gladiadores para satisfazer a procura de lutadores voluntários bem treinados.
Como os cidadãos romanos não podiam ser executados sem julgamento prévio, alguns aspirantes a lutadores renunciavam à sua cidadania e tornavam-se escravos, como solução de alto risco para pagar dívidas ou escapar à pobreza. Outros eram criminosos sentenciados a prestar serviço como gladiadores – uma punição mais leve do que a execução, por haver a possibilidade de um dia serem libertados.
Mesmo assim, a escravatura em Roma era bem diferente do que foi mais tarde na Idade Moderna em vários impérios ultramarinos. Por um lado, nada tinha que ver com raça e, na opinião de alguns peritos, os gladiadores raramente eram acorrentados ou agrilhoados. E apesar do seu baixo estatuto social, os lutadores vitoriosos poderiam ganhar muito dinheiro. É possível que alguns até tivessem segundos empregos, sendo contratados como guarda-costas por clientes ricos. “Cumpre a tua sentença e, quando terminares, podes levar o teu dinheiro, a tua mulher e os teus filhos e voltar à tua vida”, resume a historiadora francesa Méryl Ducros.
Como sugerem as lápides – muitas vezes encomendadas por colegas ou por entes queridos que lhes sobreviviam – muitos gladiadores eram homens de família. “Pompeio, o retiarius, vencedor de nove coroas, nascido em Viena, 25 anos de idade”, lê-se num desses monumentos, escavado em França. “A sua mulher fez esta encomenda com o seu próprio dinheiro para o seu magnífico esposo.”
CAPÍTULO III
Carnuntum, Áustria
Os lutadores profissionais precisavam de formação profissional. Um achado concretizado há alguns anos num antigo sítio arqueológico romano na Áustria, chamado Carnuntum, mostra onde obtinham essa formação.
Num dia tempestuoso do início da Primavera, Eduard Pollhammer, director científico de Carnuntum, conduz-me a um terreno agrícola recém-semeado nas margens do Danúbio, 40 quilómetros a leste de Viena. As nuvens cinzentas carregadas começam a cuspir chuva fria, lembrando-me de quão longe me encontro das ruínas soalheiras de Pompeia e de Arles.
Um fresco de Pompeia revela que os gladiadores feridos declaravam a sua rendição levantando um dedo. Cada lutador representava um investimento considerável. Os mecenas preferiam que as vidas dos gladiadores fossem poupadas. Parque Arqueológico de Pompeia, Itália
Neste local, as temperaturas de Inverno precipitam-se abaixo de zero e as searas de trigo cobrem-se de neve. No entanto, até aqui, nos confins do império, o apetite dos romanos pelos espectáculos de gladiadores era tal que Carnuntum se gabava de possuir dois anfiteatros: um para os seus milhares de soldados no activo e outro para proporcionar entretenimento aos civis da cidade próspera dos arredores.
Por volta do ano 200 d.C., localizava-se nestas colinas ondulantes uma das maiores bases militares romanas da fronteira, explica Eduard Pollhammer. Mais de sete mil soldados aqui estacionados patrulhavam as fronteiras setentrionais do império. Carnuntum é tão grande que, após mais de 150 anos de escavações, só 15% dos seus dez quilómetros quadrados de superfície foram escavados.
Há vinte anos, temendo que a agricultura intensiva destruísse estruturas ainda não descobertas no subsolo, os arqueólogos recorreram a um radar de penetração do solo para tentarem cartografar os vestígios dos edifícios. Entre as muralhas da cidade e os alicerces de adobe do anfiteatro municipal, os investigadores descobriram os contornos de um bairro inteiro construído para servir os adeptos, incluindo tabernas, lojas de lembranças e até uma padaria onde os espectadores podiam comer uma refeição rápida antes de ocuparem os seus lugares.
Em 2010, os arqueólogos documentaram a existência de uma estrutura especial: uma escola de gladiadores, ou ludus, a curta distância a pé das estruturas arruinadas do anfiteatro de Carnuntum. A avaliar pelas fontes romanas, haveria dezenas destas escolas por todo o império. Eram financiadas pelos imperadores ou pelos dignitários locais e frequentemente dirigidas por treinadores, os lanistae. Alguns seriam antigos gladiadores. Existiam pelo menos quatro escolas de gladiadores no centro de Roma, integradas num complexo de formação de gladiadores que funcionava à sombra do Coliseu. Mas o solo que pisamos agora esconde o primeiro exemplar completo até hoje descoberto.
Sem sequer levantarem uma pá, os investigadores identificaram uma sala ampla com um soalho levantado que poderia ser aquecido através de ar quente circulando por baixo. Poderá ter sido utilizada como ginásio para treinar durante os frios invernos da Áustria. Junto da extremidade de um pátio aberto, situa-se uma secção do edifício em forma de L, onde foram encontrados quartos. A espessura das paredes indica que parte da estrutura possuía dois andares. Havia mesmo banhos, com condutas de água, bacias e piscinas de água quente e fria. Ao centro, encontrava-se uma arena de treino circular, com 19 metros de diâmetro. “Pensamos que cerca de 70 a 75 gladiadores viveriam aqui”, diz Eduard Pollhammer. “É uma infra-estrutura para os grandes espectáculos.”
CAPÍTULO IV
Roma, Itália
O que levava os romanos a investirem tantos recursos nos gladiadores? O que motivou os adeptos a assistirem continuamente aos espectáculos, ano após ano, durante quase seis séculos? Escavações recentemente realizadas no Coliseu de Roma sugerem uma resposta. Sob o chão da arena, existe um enorme espaço que se estende seis metros abaixo do nível do solo. Os visitantes da actualidade podem percorrer parte deste labirinto de colunas, escadarias de tijolo desmoronadas e câmaras sombrias.
Construído em 238 d.C., o anfiteatro de El Jem, na Tunísia, inspirou-se no Coliseu de Roma e chegou a ser o terceiro maior recinto do Império Romano. Para os 35 mil adeptos que ocupavam os seus lugares, os gladiadores eram a maior atracção.
No decurso de um importante esforço de restauro iniciado em 2000, Heinz Beste, investigador do Instituto Arqueológico Alemão, passou quatro anos a documentar as estruturas de pedra existentes sob a arena. Revelou vestígios de um engenhoso sistema de plataformas, elevadores, manivelas e rampas, manobrados por centenas de técnicos de cena e treinadores de animais.
Através de dezenas de alçapões instalados no solo, os treinadores conseguiam libertar directamente os animais na arena para os lançarem em caçadas encenadas, conhecidas como venationes, que normalmente funcionavam como intróito aos combates de gladiadores. Cenários pintados e complexos erguer-se-iam directamente do subsolo, sendo possível que os gladiadores ali surgissem, subitamente, através de elevadores. “Os espectadores não sabiam o que iria abrir-se, nem quando, nem onde”, resume Heinz Beste.
Este sistema, descoberto numa escala mais simples em dezenas de anfiteatros provinciais por todo o império, simbolizava a atracção dos jogos. Das caçadas de animais aos combates de gladiadores, tudo nestes eventos era planeado para manter os espectadores em expectativa nos seus bancos de pedra. A expectativa, não a brutalidade, era a força vital que alimentava os jogos.
Para garantir que a competição se mantinha excitante, os estilos de combate eram ponderados. Um lutador ágil, quase nu, armado apenas com uma rede, um tridente e uma pequena faca poderia enfrentar um guerreiro enorme envergando 20 quilogramas de equipamento de protecção. O raro aparecimento de mulheres armadas com espadas, de que existem registos históricos e um relevo de pedra, terá sido motivo de entusiasmo para os romanos, para os quais o lugar das mulheres era no contexto doméstico.
Os gladiadores experientes combatiam contra outros veteranos, enquanto os novos recrutas lutavam entre si. Quanto mais longa uma carreira, maiores as probabilidades de sobrevivência, uma vez que cada gladiador experiente representava muitos anos de investimento. “Havia longas horas de treino por trás de todos os movimentos de esgrima, de construção da musculatura, de treino de velocidade, força e resistência”, afirma o arqueólogo Jon Coulston, da Universidade de Saint Andrews. “À semelhança do desporto contemporâneo, torna-se um investimento altamente intensivo em termos de capital.”
Os acordos de aluguer de gladiadores requeriam compensação em caso de lesão ou morte. Se um lutador fosse abatido, com ou sem intenção, o patrocinador do combate pagava por inteiro o preço do gladiador ao seu proprietário. “Estes indivíduos eram muito valiosos por serem tão bem treinados. Ninguém queria desperdiçá-los”, afirma Katherine Welch. “Em cada dez pares, haveria uma morte, possivelmente duas.”
Embora invulgar, a morte era um risco sempre presente, quer na arena quer devido a infecções subsequentes. O público reconhecia e recompensava o custo suplementar que um gladiador morto representava. Um autor romano descreve um espectáculo especialmente dispendioso organizado por um jovem nobre que herdara recentemente uma fortuna. Uns estonteantes 400 mil sestércios permitiram-lhe comprar “o melhor aço, sem possibilidade de fuga, com a carnificina a decorrer no centro, para que todo o anfiteatro pudesse assistir”.
É fácil desvalorizar esses sentimentos, como manifestação de um passado distante, olhando para os romanos como comunidades fundamentalmente diferentes das nossas. Afinal, tratou-se de uma civilização que construiu um dos maiores impérios que o mundo conheceu, recorrendo a uma força militar implacável para subjugar todos os seus vizinhos.
Mas isso seria desculparmo-nos com demasiada facilidade. No que diz respeito a gosto por espectáculos violentos, estamos mais perto dos romanos do que imaginamos. O desporto mais popular nos Estados Unidos ainda é o futebol americano, que causa regularmente lesões tão graves aos seus jogadores que estes nem conseguem sair do campo pelo seu próprio pé.
Zakhar Nikmatulin sente-se fascinado pelos gladiadores desde que assistiu ao filme “Spartacus”, de 1960. O artista tatuador Alexander Kosach demorou 25 horas a desenhar e pintar esta cena representada nas costas de Zakhar, no seu estúdio de Moscovo.
Entretanto, os atletas que praticam desportos violentos – do futebol americano ao boxe, às artes marciais mistas – são idolatrados como exemplos de disciplina, dureza e resistência. Os seus combates atraem milhões de espectadores, apesar de serem generalizadamente conhecidas as lesões duradouras que estes desportos provocam nos atletas.
“A vida não é um mar de rosas. A vida é dura. Precisamos de berrar, chorar e gritar por algum motivo”, diz Méryl Ducros. “Precisamos de assistir a um bocadinho de violência para exteriorizarmos a violência que sentimos dentro de nós. Não podemos julgar os romanos por terem organizado esse espectáculo.”