Nefertiti

Grande Esposa Real de Akhenaton, possivelmente ela própria faraó ao enviuvar, faz parte do imaginário cultural como paradigma de beleza. No entanto, o grande mistério é, na realidade, o modo como terá exercido o poder.

A segunda mulher mais famosa do Antigo Egipto – posição honrosa quando se compete com Cleópatra – tinha qualidades mais relevantes do que a sua beleza exótica. Co-regente do reino nos seus dias de esplendor e responsável, ao lado do esposo, o faraó Akhenaton, por uma revolução cultural, a princesa herética com traços orientais que reinou como um homem permanece um mistério. A forma alongada do seu crânio, perceptível em todos os seus retratos, juntamente com o título “Bondade de Aton, a bela chegou”, que parece sugerir uma origem estrangeira, tem servido para tentar identificar Nefertiti com a princesa Taduhepa, do reino de Mitanni, na actual Síria, onde as elites praticavam essa deformação forçada. Tem-se especulado também que poderia ter origem núbia. A tese mais consensual propõe que terá nascido por volta de 1370 a.C., na corte egípcia, e que o pai era Ai, o mais alto dignitário ao serviço de Amen-hotep III. Relativamente à sua mãe, apenas se sabe que morreu quando Nefertiti era muito jovem.

Provavelmente, Nefertiti casou-se com o futuro Amen-hotep IV quando este foi nomeado co-regente do pai, Amen-hotep III, nos últimos anos do seu reinado, depois da morte do herdeiro. Nefertiti e Amen-hotep tiveram seis filhas: Meritaton, Meketaton, Anjesenpaaton (que viria a ser esposa de Tutankhamon), Neferneferuaton-Tasherit, Neferneferure e Setepenre.

Por volta de 1352 a.C., Amen-hotep sucedeu ao pai. Era o décimo faraó da XVIII dinastia, e Nefertiti estaria permanentemente ao seu lado na tarefa de governar os territórios do Egipto.

Nefertiti

O belo busto de Nefertiti e o mistério do olho perdido.

Em 1912, quando se encontrou o célebre busto da rainha Nefertiti, hoje conservado no Neues Museum de Berlim, faltavam-lhe parte da orelha esquerda, que foi encontrada in situ mais tarde, e o olho do mesmo lado, que, infelizmente, nunca apareceu. A imaginação, desde então, voou em busca de explicações.

O local onde ocorreu o achado foi identificado como o estúdio do escultor Tutmés, graças a uma estatueta de marfim com o nome do artista e a inscrição “Favorito do rei e mestre-de-obras, o escultor Dyehutymose”. O retrato estava caído no chão de uma casa abandonada e estava deitado com a cara voltada para baixo. Mas não se encontrou qualquer pista sobre o célebre olho desaparecido. Além dessas peças, o singular sítio arqueológico continha retratos de gesso, granito e arenito de outros membros da família real, como Akhenaton, o seu pai Amen-hotep III, a sua outra esposa Kia, o seu sogro e sucessor Ay e a sua filha Ankesenamen. Talvez o processo de damnatio memoriae (para apagamento de qualquer vestígio de uma personalidade) ao qual foram submetidos Akhenaton e Nefertiti pelos seus sucessores, tenha feito cair em desgraça o escultor. Mas por que motivo falta um olho à belíssima representação da rainha? Trabalhando no vazio da ausência de dados confiáveis, alguns autores especularam sobre a possibilidade de Nefertiti ter perdido o olho na sequência de uma doença como glaucoma ou síndrome de Marfan, mas o próprio Tutmés esculpiu imagens da rainha em idade avançada e com dois olhos. O mais provável é que a lesão tenha afectado apenas a escultura, não correspondendo ao original, criada como amostra para se fazerem cópias. A hipótese mais literária (e, de qualquer forma, desprovida de fundamento) descreve um Tutmés apaixonado por Nefertiti, que arranca um olho à sua obra, levado pela amargura e a cólera, perante a certeza de que a sua paixão não era correspondida. A honra da descoberta do busto corresponde a Ludwig Borchardt, fundador do Instituto Alemão de Arqueologia, em 1907.

Revolução monoteísta

Os primeiros cinco anos do seu reinado decorreram na linha do que ficara estabelecido pelos antecessores do faraó. Tebas continuou a ser a capital de um grande império. Amon, divindade solar associada aos faraós do Império Novo, manteve-se no panteão mais alto e, com isso, muitos sacerdotes e templos consagrados ao seu culto conservaram a sua infiuência e riqueza.
No entanto, já antes do reinado do pai de Akhenaton, tinha-se verificado um progressivo aumento da presença de Aton, deus Sol e membro da tríade criadora durante o Império Antigo. Nefertiti e o marido levaram este ressurgimento até às últimas consequências, fundando a primeira religião monoteísta conhecida da história e transformando tanto a vida religiosa como o equilíbrio de poderes do Egipto.

Por volta de 1357, Amen-hotep IV alterou o seu nome para Akhenaton, evidenciando a ruptura com Amon e a adopção de Aton como divindade principal. Paralelamente, Nefertiti adoptou o nome de Neferneferuaton que significa “maravilhosa é a beleza de Aton.” O faraó mandou construir uma cidade nova, Akhetaton, que corresponde à actual Amarna, situada entre Mênfis e Tebas, que, dois anos depois, se tornou a capital do reino e alojou a corte no nono ano do reinado de Akhenaton. E, tocando um sino que ainda ressoa, o faraó e a sua esposa proibiram a adoração de Amon e elevaram Aton à categoria de único deus.

O custo de construção da nova capital foi suportado pelos tesouros apreendidos aos templos e sacerdotes de Amon, e – complicando ainda mais as relações do trono com a casta sacerdotal – Akhenaton tornou-se o único e sumo sacerdote do culto. Iniciava-se o “cisma de Amarna”, que tornaria aquele período da história egípcia um dos mais estudados e também um dos mais mal documentados, uma vez que Akhenaton e Nefertiti foram tratados como hereges após sua morte, o que implicou a destruição dos vestígios de sua passagem pela vida e, como tal, da sua memória.

Sob a reforma religiosa empreendida pelo casal real jazia um constante objectivo político: a afirmação do poder do faraó. Em determinados momentos da história do Egipto, os adversários do monarca foram os denominados “nomarcas”, os senhores locais. Na época de Nefertiti e Akhenaton, como acontecera mil anos antes na época de Khufu o adversário era a casta sacerdotal, dotada de uma riqueza e de um poder que desafiavam os do faraó. O afastamento dos sacerdotes de Amon levou consigo a pujança do corpo secular e impôs um novo programa religioso e litúrgico.

Nefertiti

A beleza de Nefertiti. Esta estatueta da esposa do faraó procede de Tell el-Amarna e, tal como o seu célebre busto, dá conta da sua lendária beleza (Neues Museum, Berlim).

Na sua inédita posição de supremacia, o deus Sol surgiu como um conceito novo. Em primeiro lugar, as tradicionais representações antropomórficas ou zoomórficas foram substituídas pela imagem sintética de um disco solar do qual partem raios que terminam em mãos. Desapareceu todo o ritual tradicional associado às imagens sagradas, que “viviam” em templos, onde eram vestidas e aprumadas. Da mesma forma, a substituição de ritos, em que os espaços sagrados só eram acessíveis aos sacerdotes, pelo culto popular à luz do dia retirou magia às cerimónias.

Vacilaram também as certezas sobre a vida depois da morte, com a substituição do discurso do julgamento e ressurreição associado a Osíris, carregado de poder visual e épica narrativa, por um modelo moral abstracto. Todas estas mudanças provocaram um vazio no sistema de crenças e na liturgia que o discurso teológico e a mística de Akhenaton e Nefertiti não conseguiram preencher. A revolução cultural do período amarniano deixou também a sua marca na arte, que passou do hieratismo monumental para um naturalismo sereno que humaniza as personagens. A família real e a sua vida doméstica tornaram-se o tema central da representação, substituindo as imagens dos deuses desprezados e reduzindo a relevância dos ícones épicos que tradicionalmente serviam para exaltar a grandeza do faraó.

Nefertiti, Akhenaton e suas filhas são retratados em serenas cenas quotidianas, com uma particularidade disruptiva: o rei e a rainha têm o mesmo tamanho, o que os equipara. Esta novidade, somada à escrita do nome de Nefertiti em duas cartelas (disposição gráfica tradicional exclusiva do faraó), sustenta a ideia de que a rainha tinha um peso político muito importante, participando nas tarefas de governo.

As cenas e os retratos de ambos tinham o objectivo de preencher o vazio deixado no culto privado e doméstico pela proibição de imagens dos deuses. No entanto, e apesar da omnipresença de Nefertiti e Akhenaton em espaços públicos e nos túmulos da elite, o novo programa não foi assimilado na sociedade.

Nefertiti

Uma arte nova. Este relevo mostra, com uma proximidade absolutamente incomum, os faraós com as filhas: Nefertiti tem no colo duas delas e o marido, Akhenaton, brinca com uma terceira, enquanto o disco solar gera vida com os seus raios (Museu Egípcio, Cairo).

Mudanças e continuidade

Outra novidade trazida pelos reis foi a promoção de um novo estilo de representação da figura humana, caracterizada por cabeças alongadas, torsos estreitos, ventres protuberantes e quadris arredondados. Trata-se de uma deformação estilística que foi aplicada a todas as figuras independentemente do seu género, talvez universalizando um traço identitário da anatomia da família real. Além disso, foram introduzidas mudanças substanciais: a perspectiva substituiu o sistema de dimensões relativas e a quadrícula, em que se enquadravam as figuras, passou de quatro por nove para quatro por doze. Esta última inovação foi a única que perdurou para lá da revolução amarniana.

Estas mudanças estéticas e simbólicas não tinham uma correlação política. Se internamente o casal real aumentou o seu poder com a reforma religiosa, em relação ao exterior manteve a mesma política de alianças e relações de vassalagem que tinham construído os seus antecessores e conseguiu preservar as conquistas alcançadas

por estes em Canaã e na Líbia. As relações de Akhenaton e Nefertiti com os seus pares da Babilónia, Mitanni, Assíria e Hati, bem como com os reis súbditos de outros territórios, encontram-se bem documentados nas Cartas de Amarna, parte de um arquivo real encontrado nas escavações arqueológicas de Amarna. Até à data, foram descobertas cerca de 400 tabuinhas, hoje repartidas por vários museus do mundo. Constituem um testemunho excepcional das relações internacionais da época e incluem também informações sobre outras questões, nomeadamente a política matrimonial dos reis.

O mistério dos últimos anos

Por volta de 1334, a presença de Nefertiti torna-se nebulosa. Não foi encontrada qualquer representação dela ou referências escritas a partir desse momento. O que aconteceu?

Uma possibilidade é que a Grande Esposa Real possa ter falecido vítima da praga que assolou o Mediterrâneo no reinado de Akhenaton. A doença acabou com as vidas da rainha-mãe Tié (madrasta de Nefertiti) e de várias princesas, e foi apresentada, depois do período de Amarna, como um castigo divino à heresia real. Mas não existe qualquer registo da morte de Nefertiti, à excepção de um ushabti (estatueta funerária) em forma de faraó que carrega os dois ceptros e contém a inscrição “A Herdeira, alta e poderosa no palácio, confidente do senhor do Alto e Baixo Egipto Neferjeperure Uaenre, o filho de Ré, Akhenaton, a Grande Esposa Real Neferneferuaton Nefertiti”. No entanto, não é uma prova conclusiva.

Para complicar ainda mais a refiexão, o “desaparecimento” da rainha coincide com a nomeação como co-regente de Semenkharé, uma personagem aparentemente masculina e também misteriosa que chegou a reinar por um breve período após a morte de Akhenaton. Já se conjecturou que Semenchkare seria a própria Nefertiti que, para suceder a Akhenaton, adoptara nome e títulos masculinos e contraíra um casamento cerimonial com a própria filha Meritaton. Não seria a primeira vez que tal acontecia na história do Egipto: Hatchepsut já o fizera um século e meio antes e houve duas rainhas-faraó anteriores.

Uma terceira conjectura supõe a queda em desgraça de Nefertiti, talvez o seu divórcio e a sua morte anos depois, no anonimato, durante o reinado de Tutankhamon.

Seja qual for o último capítulo da sua vida, a “Bela de Aton” não conseguiu mudar para sempre o Egipto, pois todo o legado de Nefertiti e Akhenaton foi objecto de anátema e esquecido nos anos subsequentes. A rainha, em contrapartida, continua viva na memória e na imaginação popular.

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