A Casa dos Repuxos é um dos ex-líbris de Conímbriga. Pertenceu provavelmente a um aristocrata chamado Rufus.
No século XIX, Conímbriga não deveria ser mais do que uma zona de passeio para eruditos. Ocasionalmente, o sacho de um agricultor esbarrava em tijolos, mosaicos ou pedras. Um dia, apareceu uma cidade.
Texto: Gonçalo Pereira Rosa
O viajante Gaspar Barreiros escreveu em 1561: “Acham-se ainda hoje no dito lugar de Condeixa muros, aquedutos, sepulturas, pedras escritas de letras romanas em que está o nome de Conímbriga (…)” Numa curiosa viagem de Coimbra a Roma, Barreiros usou os velhos itinerários romanos como mapa. Durante séculos, desde o abandono de Conímbriga, muitos eruditos tinham tomado a cidade referida nas crónicas clássicas como Coimbra, a Aeminium dos romanos. Barreiros mediu distâncias e intuiu que as ruínas que avistou deveriam corresponder à antiga Conímbriga abandonada, pilhada e sobretudo esquecida.
Em 1899, o bispo de Coimbra Dom Manuel Correia de Bastos Pina persuade a rainha Dona Amélia a financiar a primeira escavação oficial em Conímbriga. A investigação prossegue assim, aos solavancos e ao sabor do dinheiro disponível. Em 1911, realizou-se mais uma campanha curta de escavações, mas a verdadeira oportunidade chegaria duas décadas depois.
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Parte dos arcos conhecidos do anfiteatro de Conímbriga, em plena Condeixa-a-Velha. Reutilizados durante gerações, ainda não integram a área visitável das ruínas, embora existam planos para concretizar a aquisição dos terrenos onde se encontram.
Reconstituição de uma rua típica de Conímbriga com as suas tabernae (espaços comerciais). Em 2018, foi inaugurado em Condeixa-a-Nova o Museu Portugal Romano em Sicó, que complementa a visita das ruínas com uma interpretação do mundo romano na fase de maior apogeu de Conímbriga.
Com a muralha em fundo, destacam-se os mosaicos de um cubiculum (quarto) da Casa da Suástica rodeado por outros compartimentos (entre eles, à direita, o peristilo da casa). À esquerda, ao fundo, o peristilo da Casa dos Esqueletos.
Casa da Suástica junto à muralha tardia. Esta construção defensiva absorveu a fachada da casa.
Com a muralha tardia em fundo destacam-se os mosaicos do triclinium da Casa da Suástica.
A Casa de Cantaber é o maior edifício privado descoberto em Conímbriga (cerca de 3300 m2). Na foto observam-se dois dos seus cinco peristilos
Interior da Casa de Cantaber em frente, um dos peristilos. À direita o ninfeu.
Ruínas das termas da Casa de Cantaber, até agora a única residência privada da cidade onde foi identificado este tipo de equipamento.
Detalhe das arcarias (suspensurae) que integravam o sistema de aquecimento de um dos tanques das termas da Casa de Cantaber.
Pequeno peristilo com ninfea da Casa dos Repuxos. Aqui se recolheu uma inscrição dedicada por um dos habitantes da casa às divindades aquáticas designadas como Lares das Águas.
Mosaico de Perseu com a cabeça da medusa e o monstro marinho da Casa dos Repuxos. A figura da medusa estava inserida nos escudos das legiões romanas e na couraça do Imperador. Na antiguidade acreditava-se que o seu olhar petrificava.
Pormenor de mosaico de um dos cubículos da Casa dos Repuxos representando a figura do Centauro Marinho.
Pormenor de mosaico do peristilo da Casa dos Repuxos representando a figura de um camponês que transporta um cesto e uma lebre acompanhado do seu cão.
Pormenor de mosaico do peristilo da Casa dos Repuxos com representações geométricas.
Mosaico com cena de caça decorando um cubiculum (quarto) da Casa dos Repuxos.
Mosaico de um dos cubículos da Casa dos Repuxos retratando a figura de Sileno montado num burro conduzido por um jovem. Esta personagem encontra-se associada aos cultos e rituais báquicos.
Pormenor de mosaico de um dos cubículos da Casa dos Repuxos representando a figura do Centauro Marinho.
Arco do Aqueduto de Conímbriga, reconstruído no decorrer das escavações levadas a cabo pela Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais entre 1930 e 1944.
Pano de Muralha de Conímbriga do baixo Império séculos III/IV d.C., este troço assenta sob a muralha do alto império finais do séc. I a.C. inícios do II d.C.
O peristilo e o ninfeu da Casa de Cantaber.
A imagem do Viaduto é um elemento que nenhum visitante de Conímbriga visualiza e tem uma ligação à Casa dos Repuxos. Para além disso é uma obra notável de engenharia. Tem por isso no meu ponto de vista matéria para um artigo independente. Por esse motivo não devemos colocar online deixando-a em reserva.
A estagiária Filipa Bento do curso de conservação e restauro da Universidade de Conímbriga termina a limpeza do fragmento de um fresco. O laboratório de Conservação e Restauro de Conímbriga foi durante duas décadas sob a direção de Adília Alarcão a verdadeira escola de restauro da arqueologia portuguesa.
O assistente operacional Manuel Santo a trabalhar na única oficina de conservação e restauro de mosaico do país.
O assistente operacional Manuel Santo consolida um painel de mosaico. Esta oficina recebe mosaicos de todo país.
A insula (residências modestas) do aqueduto é um edifício doméstico em que os pisos inferiores eram ocupados por espaços comerciais e oficinas (as tabernae) e os pisos superiores serviam de habitação. O nome foi-lhe atribuído por se encontrar adossada ao troço final do aqueduto.
A palestra era um espaço de convívio e de exercício para os utilizadores das termas.
Restauro de uma asa de jarro em bronze decorada com uma cabeça de grifo.
Parte dos arcos conhecidos do anfiteatro de Conímbriga em Condeixa-a-Velha. Foram reutilizados durante gerações como palheiro e para guardar gado.
O Castellum de Alcabideque construído pelos romanos na fundação de Conímbriga, tinha uma função de captação e decantação de água da nascente ali existente. Daqui a água seguia para a cidade através de um aqueduto.
O conservador-restaurador Pedro Sales no depósito do Museu Monográfico de Conímbriga procede ao inventário de uma ânfora romana. A conservação é com frequência entendida como a fase escondida após o entusiasmo da escavação, mas exige investimento e cada material tem um tempo de vida. “Aproximamo-nos do fim de vida útil de muitos materiais de conservação aplicados nas ruínas”, diz Sales.
O arqueólogo Virgílio Hipólito Correia, coloca a descoberto um muro de uma construção na rua das traseiras do fórum.
Vergílio Correia, arqueólogo da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, coordenou os trabalhos, incentivados por um factor... externo. O Congresso Mundial de Arqueologia e Pré-História de 1930 teria lugar em Coimbra e a Universidade desejava ardentemente mostrar aos congressistas um espaço arqueológico capaz de rivalizar com Pompeia e Óstia, então os principais motivos de entusiasmo na arqueologia europeia.
Monumentalidade: Ao contrário de Óstia, escavada aproximadamente na mesma época, Conímbriga não teria edifícios residenciais monumentais como a congénere italiana. Orientação: Diferente de Ammaia, Conímbriga não seguiu o planeamento tradicional das cidades romanas. Deveria existir anteriormente um povoado indígena. População indígena: No extremo ocidental do Império, Conímbriga manteve uma vasta maioria de população indígena, governada talvez por administradores oriundos de Roma.
A Faculdade adquiriu uma parcela de terreno e, apesar dos atritos entre as competências da Universidade e as da Direcção-Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais, Vergílio Correia dispôs por fim de um campo de trabalho.
Entre 1930 e 1944, ano da morte acidental do coordenador dos trabalhos, Conímbriga viveu a primeira fase de actividade arqueológica intensa. Ao abrirem um sector destinado ao parque de estacionamento das ruínas, os operários identificaram a Casa dos Repuxos. A morte inesperada do coordenador das escavações interrompeu os trabalhos. E foi preciso esperar por uma parceria entre João Manuel Bairrão Oleiro e Robert Étienne para reactivar os trabalhos. Juntos, os dois homens vão programar uma campanha sem paralelo no país. As escavações luso-francesas duram até 1971, contando com a direcção da parte portuguesa por Jorge de Alarcão, e modificam o conhecimento da cidade e a prática da arqueologia em Portugal. A obsessão com a conservação, o registo e a qualidade da publicação, marcam uma geração. A área conhecida da cidade multiplica-se. Identificam-se os monumentos principais da fase de apogeu da urbe. Conímbriga, cidade provincial vagamente enunciada por Plínio, entra no mapa europeu das cidades romanas.
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Tesouro de solidi (moedas de ouro) do século V.
Anverso de Semis de Honório, cerca de 407 d.C. Esta moeda de ouro é uma descoberta pouco comum nas províncias hispânicas.
Solidus de Honório (393-423 d.C.) Uma inflação incontrolável neste período afectou a confiança das populações na moeda de bronze e transformou o ouro no único valor de refúgio.
Reverso de imitação sueva de um tremisse do imperador bizantino justiniano I
Tremis visigótico, século VI É inspirado num exemplar do imperador Justiniano I. Só ao tempo de Leovigildo (572-576 d.C.), os visigodos cunharão as suas primeiras moedas nacionais.
Tremis suevo, século VI Trata-se de um exemplar da série latina munita, considerada a “jóia da coroa” das séries monetárias suevas.
Reverso de Semis de Honório, cerca de 407 d.C.
Dirhams árabes, século VIII. Foram descobertos nas escavações realizadas na primeira metade do século passado. Constituem um testemunho insofismável da influência árabe em Conimbriga. Durante muito, conjectura-ra-se que, no período islâmico, Conímbriga já teria sido abandonada.
Os romanos tinham os jogos como um dos seus passatempos favoritos: dados e lucerna em miniatura.
Estela funerária do período suevico dedicada a Sereniano que faleceu com quatro anos. Esta estela tem um interesse particular porque prova a conversão dos suevos ao cristianismo. No texto a criança é referida como serva de Deus.
Ara votiva dedicada a Liber Pater (correspondia a baco).
Friso decorativo de época suevo-visigótica, decorado nas suas faces por um ramo de videira e cachos de uva. Terá pertencido, provavelmente, a um edifício de culto cristão.
Brinco em ouro datado provavelmente dos finais da Idade do Ferro.
Uma espada germânica dos séculos VI ou VII.
Durante muitos anos, o espólio mais tardio, correspondente ao início da Idade Média, confundiu os investigadores. Este colar foi encontrado num nível correspondente à ocupação sueva, muito depois do colapso do Império Romano.
Na fase imperial, Conímbriga tem particularidades que a tornam um curioso estudo de caso no mundo romano. Não tem uma malha regular nem segue os planos de Vitrúvio. O cadastro de Conímbriga é o pré-romano. Quando os romanos ali chegaram, não se registou uma expropriação e reordenamento radical do território.
Desde o início do século XX, Conímbriga foi cenário de métodos e técnicas bem diferentes nas intervenções arqueológicas a que foi sujeita.
A estrutura de propriedade não se alterou, como revelam as inscrições que nos chegaram e que continuam a mostrar uma cidade essencialmente indígena com uma pequena percentagem de colonos e administradores romanos. As ideias feitas de legiões romanas irrompendo pelo território e reordenando o perfil da cidade não fazem sentido numa cidade provincial do Ocidente do império.
Impressionado com as casas senhoriais e com a grandeza do Fórum, o visitante perde a perspectiva mais importante de Conímbriga. Existiram sete ocupações diferentes deste território e a cidade romana corresponde apenas a um quarto do tempo de vida – um período rico, marcado por uma monumentalidade que resiste melhor à passagem do tempo, mas que durou apenas cerca de cinco dos vinte séculos em que o coração da cidade pulsou.
Quantas Conímbrigas, afinal, existem? A resposta foi variando com o tempo. Hoje sabe-se que existiu certamente um povoado do Bronze Final. Há depois um povoado da Idade do Ferro, identificado nas escavações de 1911, e certamente muito importante, mas ainda mal conhecido. Testemunha uma fase durante a qual o território beneficiou do acesso fácil ao Mondego e ao interior para escoar minérios e receber produtos importados do Oriente distante. O topónimo Conímbriga terá surgido na transição entre estes dois momentos.
A mitologia grega foi amplamente aculturada pela civilização romana. O tema do labirinto do minotauro num mosaico no peristilo da casa dos Repuxos foi replicado em todo o Império romano.
A Conímbriga romana é inquestionável, provavelmente dividida em duas fases – uma de apogeu e expansão e outra de declínio progressivo. O verdadeiro ponto de discórdia ideológico e programático ocorreu no debate sobre o abandono da cidade – teria ocorrido com a transferência da sede do bispado da cidade para Coimbra, em meados do século VI, como sugere o “Parochiale Suevicum”, documento que regista o número de paróquias pertencentes a cada diocese? Ou teria permanecido durante mais séculos?
Hoje, é seguro falar-se de uma Conímbriga suévico-visigótica e não restam dúvidas de que, mesmo após a invasão muçulmana de 711, a cidade continuou a ser ocupada. Só as convulsões entre cristãos e muçulmanos nos séculos IX e X, altura em que a fronteira entre as duas civilizações oscilou para norte e sul do Mondego, com conflitos militares regulares, terá ditado o abandono. Na “Crónica Albeldense”, refere-se que Afonso III das Astúrias reconquista Coimbra, isola a região e reforça Coimbra e Viseu. Terá sido esse o momento, em pleno século IX, em que o coração de Conímbriga deixou de bater.