Mano Negra

Presos relacionados com a Mano Negra na prisão de Cádis. La Ilustração Espanhola y Americana, 1883.

Texto: Albert Ghanime

Em 1883, uma série de crimes cometidos em Campiña de Jerez foram atribuídos pela polícia a uma associação criminosa anarquista.

No dia 4 de Fevereiro de 1883, a Guarda Civil encontrou um cadáver em avançado estado de descomposição no campo do Algarrobillo, no território municipal de Jerez de la Frontera. O falecido era o jovem trabalhador à jorna Bartolomé Gago Campos, conhecido como Blanco de Benaocaz. A autópsia determinou que morrera dois meses antes, devido a vários disparos. As investigações rapidamente apontaram para o lavrador Francisco Corbacho como autor do crime.

À primeira vista, tratava-se de um crime como tantos outros. Disse-se que a causa estava relacionada com dívidas, pois a família Corbacho devia uma soma avultada a Gago. Outros afirmaram que Gago tentara seduzir várias mulheres, entre elas uma sobrinha dos Corbacho. No entanto, as pesquisas e os interrogatórios da Guarda Civil chegaram a uma conclusão surpreendente: o assassínio fora ordenado por uma organização política criminosa, a Mano Negra.

Patíbulo em Jerez

Dizia-se que este grupo organizava todo o tipo de sabotagens e atentados contra os proprietários agrícolas da Andaluzia, com o intuito de provocar uma revolução social e instaurar o comunismo. Organizados de forma clandestina, não hesitavam em exercer represálias contra qualquer delator para manterem a disciplina. Foi assim que, segundo a Guarda Civil, Pedro Corbacho, chefe da organização em Jerez de la Frontera, deu a ordem de execução de Gago. No dia 5 de Junho, iniciou-se o julgamento no Palácio de Justiça de Jerez, perante uma audiência numerosa. Durante os interrogatórios, os acusados negaram fazer parte de uma associação secreta, embora admitissem pertencer a grupos socialistas dedicados à assistência mútua. O tribunal condenou sete dos acusados à morte e outros oito a 17 anos de prisão. Em Abril de 1884, o Tribunal Supremo aumentou as condenações à morte para 13, embora os indultos dogoverno tenham reduzido novamente o número para sete. Os réus foram executados em Jerez de la Frontera, dois meses mais tarde.

Jerez de la frontera

Jerez de la Frontera. Vista da Catedral de São Salvador, construída no século XVII.

Nesses mesmos meses, ocorreu outro crime perto de El Puerto de Santa María. A 2 de Abril de 1883, no interior da estalagem Venta del Empalme, foi encontrado o cadáver seminu do seu proprietário, Antonio Vázquez, numa poça de sangue. Na noite anterior, um grupo de quatro homens entrara no mísero local para beber. Depois de consumirem alguns copos de vinho, ameaçaram o taberneiro com uma pistola e uma navalha para o roubarem. Apesar da miséria em que o tendeiro vivia, os ladrões tinham descoberto que ele entesourava uma importante soma de dinheiro. Perante as súplicas e recusas do taberneiro, um dos ladrões, chamado Antonio Roldán, perdeu a cabeça, lançou-se ao pobre homem e cortou-lhe o pescoço. Os delinquentes só obtiveram duas pesetas e alguns barris de vinho.

Pouco depois, os criminosos foram detidos pela Guarda Civil. Eram trabalhadores rurais, a maioria dos quais na casa dos 20 anos, embora o mais velho, Antonio Roldán, tivesse 42 anos. Quase nenhum tinha antecedentes criminosos e possuíam pouca ou nenhuma formação.

No entanto, a polícia apressou-se a relacioná-los com a Mano Negra. O julgamento realizou-se a 26 de Maio de 1883, em El Puerto de Santa María, e, dois dias depois, quatro acusados foram condenados à morte por roubo e homicídio. Das três condenações à morte, o governo comutou duas em prisão perpétua, e, por isso, só Antonio Roldán foi executado com o garrote, a 23 de Março de 1884. Em Agosto de 1883, era a vez de Fernando Olivera Montero, guarda da propriedade de Hormigoso. A princípio, a sua morte não levantou suspeitas. No entanto, passados alguns meses, Cristóbal Durán Gil, residente em Arcos, e Antonio Jaime Domínguez, natural do Bosque, foram detidos e acusados de espancar Olivera até à morte. Durante o interrogatório, a Guarda Civil tentou que eles confessassem pertencer à famosa sociedade secreta. Antonio Jaime admitiu que Durán quisera filiá-lo na Internacional, mas no julgamento recusou-se a admitir ser membro da Mano Negra diante do procurador. Cristóbal Durán também se retractou. No julgamento, o procurador insistiu que Durán fizera um ultimato a Olivera para se filiar e que, cansado de esperar, lhe preparou uma emboscada juntamente com Antonio Jaime, o qual também ameaçou caso este não o ajudasse. Os dois deram-lhe a sova que poderá ter desencadeado a sua morte. Contudo, não foi possível demonstrar que Olivera tivesse morrido devido aos golpes sofridos, nem que os dois indivíduos detidos pertencessem à Mano Negra. A única circunstância que incriminava Durán e Jaime eram as suas primeiras declarações, obtidas sob tortura. Apesar de tudo, Durán foi condenado a prisão perpétua e Antonio Jaime Domínguez a 17 anos de prisão.

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Julgamento em Jerez de la Frontera pelo assassínio de Blanco de Benaocaz. Gravura de 1883.

Terá sido uma maquinação?

Estes e outros acontecimentos ocorridos nesses mesmos anos, em Campiña de Jerez, cujo eco foi difundido por toda a Espanha pela imprensa, criaram uma autêntica psicose em redor da misteriosa organização da Mano Negra. Surgiu então uma pergunta: terá mesmo existido a dita associação criminosa secreta? Os historiadores actuais ainda discutem o assunto.

As próprias pessoas da época tiveram muitas dúvidas. Por exemplo, os autores de uma recompilação de artigos publicada em 1883, Causas célebres llamadas de la Mano Negra, publicadas en el Diario de Cádiz, comentavam sobre o crime de El Puerto de Santa María: “Como o leitor poderá ver, o delito cujo julgamento oral e público se descreve posteriormente pouco ou nada tem que ver com o que se chamou a Mano Negra. Esta surge, porventura, como algo secundário, apenas porque os autores do acto punível pertenciam a uma associação secreta perseguida. No entanto, o móbil do crime foi completamente alheio a esta sociedade.” Além disso, havia irregularidades no processo, com confissões obtidas mediante tortura e juízes e procuradores dispostos a condenar sem provas.

Na verdade, para se compreender o fenómeno da Mano Negra há que ter presente a crise económica e social sentida na Andaluzia no início da década de 1880. As más colheitas, resultantes da seca do Verão de 1881, provocaram a intensificação da miséria entre os camponeses e trabalhadores jornaleiros pobres. Quando as chuvas chegaram, foi de forma muito irregular e, em alguns casos, com uma força inusitada e devastadora. A fome e o desespero assenhorearam-se da região andaluza entre 1882 e 1883, o que teve como consequência inevitável o aumento do número de roubos, motins, greves, assaltos a casas rurais, ameaças a proprietários e assassínios.

Uma sensação de insegurança apoderou-se dos proprietários, a burguesia e as autoridades encarregadas de manter a ordem nos campos andaluzes, sobretudo na província de Cádis. Com efeito, em finais de 1882, a agitação social que se vivia em Campiña de Jerez levou a que o governo enviasse um contingente da Guarda Civil que realizou centenas de detenções – três mil, segundo alguns autores. A vigilância e a repressão foram redobradas quando se soube que estava a preparar-se uma greve geral para a colheita de 1883, que foi desmantelada por uma contundente intervenção da Guarda Civil.

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Notícia do diário La Época, de 19 de abril de 1884, sobre a revisão do julgamento do caso Blanco de Benaocaz.

Arma dos ricos

Anos mais tarde, Vicente Blasco Ibáñez, no seu romance La Bodega, cuja acção decorre em Campiña de Jerez, defendeu que a Mano Negra não foi mais do que um espantalho ou fantasma utilizado pelos proprietários agrícolas para assegurarem a submissão dos trabalhadores. “Bastava que se reunissem, envoltos num certo mistério, uns quantos trabalhadores à jorna num grupo, numa quinta, para que os jornais de toda a Espanha fizessem soar o alarme para avisar os ricos e chegassem novos soldados a Jerez e a Guarda Civil corresse os campos, ameaçando todos os que não pareciam conformes com a exiguidade da jorna ea miséria da alimentação. A Mano Negra! Sempre aquele fantasma, ampliado pela exuberante imaginação andaluza, que os ricos tentavam manter vivo para o evocarem assim que os trabalhadores formulassem a mais insignificante petição!...”.

Acrescente-se o papel da imprensa, que explorou a morbidez dos leitores, ávidos de notícias macabras, convencendo-os de que existia na Andaluzia uma ameaça contra a ordem estabelecida. Ainda assim, alguns autores defendem que a Mano Negra existiu realmente como sociedade secreta. Juan Díaz del Moral, autor da Historia de las agitaciones campesinas andaluzas (1929), escreveu que “um membro filiado na sociedade secreta, interrogado por mim, confessou-me que já fora decretada e aplicada a derradeira pena a um trabalhador por ser delator. Creio, pois, ser indubitável a existência da sociedade secreta e de alguns dos crimes que se lhe imputaram”.

A prova material mais evidente da existência da sociedade são os estatutos da associação. Tomás Pérez de Monforte, comandante da guarda rural de Jerez de la Frontera, encontrou-os em 1878, escondidos sob uma pedra. Muitos historiadores defenderam que este regulamento foi forjado pela própria Guarda Civil, mas a historiadora Clara E. Lida, num rigoroso trabalho de investigação, argumentou que o texto era autêntico, pois estava conservado em vários exemplares e era semelhante aos regulamentos de outras associações de trabalhadores clandestinas dessa época.

Mano negra

Garrote vil em Jerez de la Frontera. No dia 14 de junho de 1884, foram executados sete acusados no processo de Blanco de Benaocaz. Um jornalista relatou: “Os executores foram-nos preparando, fazendo-os sucumbir um a um. A colocação de um pano negro na cabeça indicava que chegara o último momento [...] Em 18 minutos, tudo estava terminado.” Ilustração do diário Le Petit Journal, de 1892, sobre a execução de 1884.

Ainda hoje, os historiadores continuam divididos no que diz respeito à autenticidade dos estatutos e da existência da Mano Negra. Uns asseguram que o seu vocabulário não corresponde ao de uma organização anarco-colectivista, enquanto outros não têm dúvidas de que são autênticos e de que a dita organização secreta existiu. Apesar disso, sublinham que as autoridades policiais, especialmente a procuradoria, instrumentalizaram informação encontrada há anos para desmantelar grupos clandestinos de resistência camponesa.

A existência da Mano Negra viria a ser confirmada num comunicado da Federação de Trabalhadores da Região Espanhola, organização anarco-sindicalista fundada em Dezembro de 1881 e vinculada à Internacional, no qual esta se demarcava dos crimes, roubos e assassínios que assolavam algumas comarcas andaluzas, declarando que não mantinha relações com a Mano Negra, nem com nenhuma associação secreta de intuito criminoso. Sem provas conclusivas, o debate permanece aberto e o enigma por resolver.

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