O sarcófago de Arnth Vipinana.
A atribulada história dos três únicos sarcófagos etruscos que existem em Portugal é também a história da arte no nosso país e do modo como ela nem sempre foi acarinhada.
Pesando cerca de meia tonelada cada, os três sarcófagos expostos numa cripta do Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas, perto de Sintra, viajaram pelo mundo com uma leveza invejável. Transportados de Itália para Portugal por via marítima no século XIX, foram depois certamente deslocados para a Quinta de Monserrate em carroças e, por fim, um século e meio mais tarde, em camionetas e gruas até ao seu destino final.
A sua saga fragmentada foi reconstituída pela historiadora da arte Marta Ribeiro, numa dissertação de Mestrado defendida em 2014 e será brevemente alvo de um livro a publicar pelo Município de Sintra. Ligando pontas soltas com quase 180 anos, pesquisando documentos na chancelaria portuguesa do Vaticano e nos arquivos sintrenses e da Direcção-Geral do Património Cultural e revisitando fontes dispersas que cedo se encantaram pelos sarcófagos, é agora possível cartografar a “viagem” desde o momento, em Janeiro de 1839, em que a família Campanari os descobriu em Tuscania (não confundir com a Toscana), na necrópole de Carcarello.




O programa decorativo dos três sarcófagos. Num artigo recente, os historiadores Marta Ribeiro e Nuno Simões Rodrigues reinterpretaram o programa decorativo dos sarcófagos.
A cultura etrusca encantara os românticos oitocentistas. A ideia de uma civilização esmagada pela força cultural de Roma calara fundo no revivalismo das velhas tradições europeias e, no primeiro quartel do século XIX, surgiram vários trabalhos de reinterpretação do mundo itálico que antecedera a república romana. Ao mesmo tempo, um outro movimento, de coleccionismo de antiguidades, ganhava pujança e Itália era o campo natural de predação: milionários de todas as proveniências visitavam este berço da civilização em busca de aquisições.
Filantropo em Sintra. Francis Cook (1817-1901), primeiro visconde de Monserrate, era, no século XIX, um dos homens mais ricos da Grã-Bretanha, tendo acumulado fortuna no ramo dos têxteis. Apaixonou-se por Sintra e moldou Monserrate como plasticina até o palácio e o jardim corresponderem à sua visão romântica.
Sucederam-se burlas e saques, bem como escavações caóticas, promovidas com o único fim de proporcionar tesouros arqueológicos susceptíveis de venda a bom preço. A Superintendência Italiana para os Bens Culturais pôs então de pé um modelo de tentativa de controlo desta predação: depois de a Santa Sé escolher os tesouros arqueológicos que pretendia para os Museus do Vaticano, os itens restantes eram colocados à venda para gerar receitas que sustentassem a conservação do património restante. Os leilões tornaram-se abertos e vários coleccionadores internacionais, com preponderância para os ingleses, americanos e alemães, bem como vários novos museus, marcaram presença.
Aquisição
Os túmulos etruscos de São Miguel de Odrinhas integravam uma colecção mais vasta que foi visitada e descrita por especialistas entre 1839 e 1855. Em 1866, Francis Cook, um rico comerciante britânico apaixonado por Sintra, talvez alertado pela publicação de uma monografia que exibia as peças como se fosse um catálogo, seleccionou três em função do seu gosto, não valorizando propriamente a antiguidade, mas sim a qualidade estética. Deu instruções de compra aparentemente sem as ver, confiando na família vendedora, fornecedora também do Museu Britânico, então em processo voraz de constituição da sua colecção de referência.
Os restantes sarcófagos da necrópole estão hoje no Museu Nacional Arqueológico de Tuscania, com a excepção de um, o sarcófago de Velthur Vipinana (século IV a.C.) cuja tampa se encontra no Museu Nacional Arqueológico de Florença (onde deu entrada em 1894) e a base no Museu Gregoriano Etrusco do Vaticano (onde deu entrada em 1876).
No entanto, como o total de exemplares identificados não totaliza o número de 27 descobertos nesta necrópole, tudo leva a supor que alguns terão sido vendidos a coleccionadores particulares, encontrando-se hoje em parte incerta.
Nas suas pesquisas, Marta Ribeiro menciona um documento do Archivio di Stato di Roma, que comprova que Cook requereu ajuda diplomática para facilitar a aquisição e transportar os seus preciosos bens para Portugal. Cook comprara Monserrate em 1856 e, nas décadas seguintes, após a conclusão da construção do edifício principal, procuraria dotar a sua residência dos artefactos eclécticos que lhe permitissem constituir um gabinete de curiosidades. Adquiriu objectos para a sua propriedade londrina e reservou outras para a residência estival em Portugal. Não se sabe ao certo quando chegaram os sarcófagos a Sintra, pois há notícias de complicações nos transportes e na saída do porto de Civitavecchia, mas, em 1868, já um arqueólogo alemão publicava um artigo onde dava conta da presença destas peças nos lugares que Cook lhes destinou em Monserrate.
O conceito de jardim romântico. Nos Jardins do Palácio de Monserrate, Francis Cook tentou criar um jardim romântico, um espaço de transição entre o mundo real e o mundo onírico, de representação de flora local e exótica. Nas ruínas de uma falsa capela ainda existente, Cook colocou um dos sarcófagos que adquirira em Itália, criando uma aura fantasmagórica tão apreciada na época. Foi plantada uma árvore da borracha para que os seus ramos e raízes envolvessem a estrutura.
Parece-nos hoje exótico que um coleccionador, ciente da importância dos artefactos que adquirira (não se sabe ainda o valor exacto que foi pago), deixasse as suas preciosidades dispersas pelo jardim, com fraca protecção face às inclemências do clima, mas o projecto do jardim romântico de Cook baseava-se precisamente nesse eclectismo histórico e no cruzamento de tesouros da Antiguidade com obras de arte clássicas e modernas.
No levantamento do espólio de Cook (que, como veremos, seria depois leiloado apressadamente, cerca de um século mais tarde), Marta Ribeiro documentou quadros de Diego Velázquez, Albrecht Dürer, Jan van Eyck, um busto de Vespasiano, um arco indiano, um poço veneziano e várias estátuas, entre outras preciosidades.
“Qualquer jardim romântico deveria incluir uma ruína”, escreve a historiadora na sua dissertação. “Francis Cook aproveitou as ruínas da falsa capela herdada do anterior arrendatário, Gerard de Visme, transformando-a num falso destroço”. Foi ali que se posicionou, durante doze décadas, o sarcófago de Arnth Vipinana, um aristocrata etrusco que certamente não sonhara, no século IV a.C., que viria a figurar como ornamento e peça de decoração de um jardim criado para transportar o visitante em viagens surpreendentes.
Os restantes sarcófagos foram igualmente implantados no parque, sempre sob a ideia de que, no meio da flora exuberante, o viajante seria surpreendido pelo eco de uma civilização extinta. A família Cook, mesmo depois da morte do patriarca, continuou a permitir visitas dos turistas ao Parque de Monserrate, cedendo a receita da bilheteira à Misericórdia local.
Descrição e leilão
Logo em 1868, um arqueólogo alemão, de passagem por Sintra, descreveu dois dos três sarcófagos etruscos mas cometeu erros na apreciação. Viu em Arnth Vipinana uma mulher, talvez iludido pelo ventre nu e proeminente da tampa, e considerou que o baixo-relevo do sarcófago do Assassínio de Polites representava uma batalha clássica e não uma cena da Ilíada.
Outras descrições de eruditos portugueses e estrangeiros chamaram a atenção do público para estas preciosidades. Com frequência, designavam a idade correcta das peças (séculos IV e III antes de Cristo), mas nem sempre interpretaram a figuração adequadamente. Há desenhos e fotografias das peças nesse contexto e essa informação gráfica é particularmente útil porque, como veremos, a tampa de um sarcófago perdeu-se em 1983. Mesmo a morte do patriarca Cook em 1901 não refreou o apelo que Monserrate despertava.
Em 1930, um historiador italiano ficou pasmado no jardim. A memória destas três peças esvaíra-se em Itália e a “descoberta” deste acervo foi tratada com minúcia pelos especialistas. Havia, afinal, mais três peças da colecção que emergira na necrópole um século antes. Em contrapartida, o registo desse historiador, Ugo Ferraguti, já dava conta dos estragos, descrevendo danos provocados pelo musgo, pelos fungos e por fragmentações.
As duas guerras mundiais do século XX provocaram rombos nos negócios familiares dos Cook. Desde 1929 que a família tentava que o Estado português adquirisse o palácio e o jardim, mantendo a inviolabilidade da colecção, mas pagando-a a preços de mercado. A tradicional inércia burocrática atrasou as démarches e, em 1946, realizou-se um apressado leilão, vendendo-se em poucos dias grande parte do recheio de Monserrate.
A notícia do "Diário de Lisboa" sobre o primeiro dia de leilão é paradigmática do apetite que a colecção despertou entre os eruditos, mas também da penúria tradicional dos museus portugueses. Além do banqueiro Ricardo do Espírito Santo Silva, assistiram, impotentes, aos remates da casa leiloeira Diogo de Macedo, director do Museu de Arte Contemporânea, Luís Keil, director do Museu dos Coches, João Couto, em representação do Museu Nacional de Arte Antiga, Vasco Valente, director do Museu Soares dos Reis, Mota Gomes, director do Banco de Portugal, entre outras individualidades. Poucas peças, porém, permaneceram em Portugal.
Não é claro o motivo pelo qual os sarcófagos não foram colocados no lote. Talvez o seu peso desencorajasse compradores ou porventura o seu estado de conservação já não seria apelativo. A verdade é que ficaram. Em 1946, a família Cook vendeu a quinta e o palácio ao financeiro Saúl Saragga, mas, três anos mais tarde, o Estado finalmente interveio, travando o loteamento do terreno que desfiguraria a quinta. “Terá sido por influência do professor Flávio Resende, director da Faculdade de Ciências de Lisboa, que, receoso quanto ao destino dos jardins e palácio de Monserrate, comunicou o facto ao professor Oliveira Salazar, citando as opiniões de numerosos estrangeiros acerca desta propriedade”, escreve Marta Ribeiro. Desde então, esse património pertence ao Estado, mas os sarcófagos permaneceram incompreensivelmente ao relento nas três décadas e meia que se seguiram.
A tempestade
Em 19 de Novembro de 1983, uma das mais fortes tempestades registadas na região da Grande Lisboa provocou cheias colossais. Muros desabaram, veículos foram arrastados, telhados sucumbiram. Morreram dez pessoas. Em "Conta-Corrente", o escritor Vergílio Ferreira relata efusivamente os acontecimentos: "Com a enchente, a ribeira inchou pavorosamente e levou a ponte adiante. Ontem inundava todo o areal numa maré de água turva", escreveu."Havia almofadas vermelhas a boiarem, talvez de automóveis, muros derrubados, canos rebentados ou postos à mostra nas ruas. Na grande adega de Colares os tonéis sem vinho boiavam leves e ficaram trancados contra as portas que eram estreitas para darem passagem."
Em Monserrate, um deslizamento de terras teve efeitos igualmente catastróficos. O sarcófago dos Dois Seres Marinhos, implantado perto do tanque de água do Parque de Monserrate, foi o que mais sofreu, arrastado pela corrente de água. A tampa desapareceu nesse dia, levada pela força da água, mas crê-se que a enxurrada não seria suficiente para a transportar até ao mar. Os restantes dois exemplares sofreram igualmente danos e foi decidido, por fim, reposicionar os artefactos no interior do Palácio, num torreão vazio. Monserrate estava então em apressado processo de decadência e ruína e os sarcófagos eram um espelho evidente da incúria e desprezo pelo património.
Por acção do arqueólogo José Cardim Ribeiro, então chefe da Divisão de Cultura do Município de Sintra, foi solicitado à tutela que as peças fossem transferidas para o Museu Regional de Sintra. O pedido foi deferido e, a partir de 1989, as peças foram expostas de novo num espaço nobre. Iniciou-se pouco depois uma longa maratona de restauro e conservação há muito necessários e que valeriam, à sua conta, um artigo específico, tantas foram as peripécias e até os erros de manuseamento.
A longa história da Quinta de Monserrate.
A Quinta de Monserrate foi construída em estilo neogótico na última década do século XVIII por Gerard de Visme, um comerciante e banqueiro inglês que se radicou em Portugal e que viria a administrar as jóias da Coroa e minas de diamante no Brasil. O edifício teria pouco em comum com a estrutura que conhecemos e o escritor William Beckford, que aqui passou algumas temporadas, viria a descrevê-lo como típico de uma obra de um carpinteiro de Plymouth. De Visme, porém, apreciava o clima da serra, tão parecido com o da sua ilha natal, e renovou radicalmente os jardins, plantando pomares e criando uma dinâmica agrícola mais produtiva. Em meados do século XIX, Sintra seria modificada para sempre. Dom Fernando II, o rei-consorte, adquiriu terrenos na serra e iniciou o seu projecto de construção de um palácio que pudesse transmitir, em pedra, as suas ideias sobre a estética de cavalaria, tão apreciada pelo movimento romântico, a arte do período áureo do reino que o acolhera, as influências orientais que então faziam escola no Norte da Europa e algumas reminiscências da sua Alemanha natal. O exótico Palácio da Pena influenciou todas as construções da época. Em 1856, Francis Cook adquiriu a Quinta de Monserrate e iniciou também um vasto programa construtivo, mantendo um certo respeito pela aura do local, mas adaptando-o às correntes da época. Coleccionador inveterado, aplicou o espírito dos velhos gabinetes de curiosidade e adquiriu uma colecção ecléctica de antiguidades (bustos, quadros, estátuas) que seriam dispersas pelo palácio e pelos jardins. Entre as aquisições estavam os sarcófagos etruscos.
Em 1999, quando o Município de Sintra inaugurou o Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas, José Cardim Ribeiro, o primeiro director da instituição e autor do seu projecto museológico, concebeu uma sala especial para estas peças nobres: desde então, elas repousam numa cripta, com a dignidade que lhes foi negada durante um século e meio, visitadas por milhares de turistas e especialistas sempre surpresos por encontrar, tão longe da Etrúria, um testemunho pungente dessa cultura da Antiguidade.
O que falta
Restaurados e devolvidos a um ambiente subterrâneo similar ao que presidira à sua implantação numa necrópole há cerca de 2.400 anos, os sarcófagos de São Miguel de Odrinhas têm alimentado artigos e reflexões de historiadores de arte. Existem, aliás, propostas de interpretação distintas das que apresentamos nestas páginas. Há, porém, um passo que falta dar para completar o ciclo: algures, nos vastos terrenos de Monserrate, repousa a tampa perdida do terceiro sarcófago. Não é crível que a mesma tivesse sido furtada no contexto imediatamente seguinte ao da tempestade – pesada e desconfortável, não seria facilmente removida. É mais provável que, tal como arrastaram a Ponte do Rodízio, as águas em fúria tenham também movimentado violentamente a peça, mais leve do que o sarcófago, escondendo-a sob uma camada de sedimentos e detritos que, nestes 30 anos entretanto decorridos, ainda não foi remexida.
Talvez em breve o sacho ou a enxada de um dos muitos trabalhadores florestais da Parques de Sintra-Monte da Lua, entidade que gere o Palácio e Jardins de Monserrate, toquem numa estrutura de pedra e fechem assim uma saga que começou em Itália há tantos séculos.