Júlio César

Para realizar o retrato da imagem, o artista David Samuel Stern fotografou um busto de César, datado de 1512, no Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque. Três imagens foram convertidas para os tons de vermelho, verde e azul. Depois, foram impressas em pergaminho translúcido, cortadas em tiras, tecidas à mão e por fim iluminadas para criar esta imagem final. “A imagem mental colectiva que temos de César quase de certeza não corresponde à sua imagem real”, diz Stern.

Ambicionamos saber mais sobre o romano mais famoso, mas como sabemos qual seria o seu verdadeiro aspecto?

Texto: Mary Beard

Em Setembro de 2007, um arqueólogo francês mergulhou nas águas do Ródano em Arles, no Sul de França, à procura de vestígios antigos no leito do rio. Emergiu segurando uma cabeça de mármore em tamanho real, finamente esculpida. Ao retirá-la da água, num daqueles momentos clássicos de descoberta, o chefe da equipa gritou: “Caramba, é César!” Era um busto do romano mais famoso da Antiguidade: Júlio César, conquistador da Gália, ditador carismático, autocrata populista e vítima de assassínio nos idos de Março de 44 a.C. É uma das personagens da Antiguidade, talvez em paralelo com Cleópatra, que as gerações posteriores mais gostariam de conhecer pessoalmente.

ERA ESTE O ROSTO DE CÉSAR?

Júlio César

Fotografias:  Boris Horvat, AFP/Getty Images; Museu Ashmoleano/Heritage Images/Getty Images; Deagostini, Getty Images; Trustees do Museu Britânico

Neste período de 15 anos desde que foi retirado da água, o busto do Ródano1 atingiu o estatuto de celebridade. Foi objecto de exposições e de programas de televisão e acabou até por figurar num selo de correio francês.

Actualmente, é a estrela da colecção de um museu de Arles, figurando em inúmeras selfies de visitantes. Os especialistas conjecturam que pode ter sido esculpido para homenagear César em vida pelos cidadãos leais de Arles, mas terá sido atirado ao rio após o seu assassínio quando o clima político já o tornava comprometedor. Quando o poder de César foi ultrapassado, ninguém queria uma estátua dele. Só dois mil anos depois foi dramaticamente resgatado do seu túmulo aquático.

Na verdade, como sabemos que é Júlio César se não há nenhum nome gravado no busto? Existem cerca de 80 bustos e cabeças colossais, dispersos por colecções europeias e americanas que foram considerados representativos de César. Como se decide quais são e quais não são? Escritores antigos registaram que César inundou o mundo romano com a sua imagem. Mas podemos distinguir a sua cabeça entre as centenas de milhares de outros bustos romanos que ainda existem, alinhados nas prateleiras dos nossos museus?

Este problema manteve os arqueólogos ocupados durante séculos e é ainda mais complicado porque nenhum dos potenciais candidatos tem um nome. Por norma, se um busto de mármore tem inscrito de forma legível o nome Júlio César, é falso. A única prova fiável da aparência de César é um conjunto de moedas de prata2 cunhadas pouco antes da sua morte. Estas mostram um rosto característico e magro, com um pescoço enrugado e uma maçã de Adão proeminente e uma coroa de louros. De acordo com o que o seu biógrafo escreveu, século e meio após a sua morte, César dispunha a coroa de louros habilmente para esconder a careca da qual se envergonhava. O problema para os arqueólogos tem sido comparar os bustos tridimensionais com as pequenas imagens nas moedas.

A variedade de hipotéticos retratos de César é muito mais variada do que se poderia esperar. Um deles é um particularmente exuberante “César Verde3”, originário do Egipto. Está agora, depois de ter passado pelas mãos da família real da Prússia, em exibição em Berlim. É de pedra verde polida e impressionou tanto alguns historiadores e arqueólogos que estes imaginaram que poderia ter sido encomendado pela própria Cleópatra, que durante um breve período foi amante de César. Investigadores mais sóbrios contrapuseram que seria uma representação de uma importante personagem egípcia que imitava o estilo de César.

Outro candidato é uma estátua de corpo inteiro, a favorita do líder fascista italiano Benito Mussolini, que via Júlio César como o seu antepassado ideológico. Gostava tanto da estátua que mandou fazer réplicas em escala real e mandou que fossem expostas em locais de destaque da Itália. Transferiu a original para a câmara do conselho da cidade de Roma, onde permanece até hoje presidindo às discussões sobre planeamento e controlo do tráfego. Na verdade, nenhum historiador credível acredita que se trata de uma estátua de César e certamente não teve o verdadeiro César como modelo.

A única fonte credível da Antiguidade. 

Há apenas uma descrição física antiga de Júlio César, redigida pelo seu biógrafo original Suetónio, escrita 163 anos após a morte do ditador. “Ele era particularmente exigente com a imagem do seu corpo”, escreveu Suetónio, acrescentando que César depilava os pêlos do corpo. Considerava a calvície como uma terrível desfiguração, considerando que o expunha à troça dos abusadores. Por esse motivo, penteava o cabelo ralo do alto da cabeça para esconder a careca, penteando-o de trás para a frente.

Há ainda outra estátua que foi retirada do leito de um rio, desta vez do Hudson, em Nova Iorque, em 1925. Ninguém sabe como terá lá chegado. Provavelmente “caiu ao mar” enquanto era transportada de barco (não é certamente a evidência decisiva de que os romanos chegaram à América!) Mesmo assim, durante algum tempo, foi aclamada como o Júlio César da América, mas não por muito tempo. Acabou num museu sueco, despromovida à categoria de “romano desconhecido”.

Duas peças em particular foram consideradas durante grande parte dos séculos XIX e XX como o verdadeiro rosto de Júlio César. A primeira4, adquirida em 1818 a um coleccionador britânico que a comprara em Itália, encontra-se no Museu Britânico. A peça foi integrada na colecção e classificada como romano desconhecido, mas na década de 1840, foi identificada como representação do próprio Júlio César e passou a ocupar um lugar de destaque na exposição permanente do museu.

Durante décadas este busto ilustrou praticamente todas as capas dos livros acerca de César e foi elogiado em textos arrebatados dos fãs modernos de César. “Este busto representa a personalidade mais forte que já viveu”, escreveu um autor. “No perfil é impossível detectar uma falha.” John Buchan, estudioso, diplomata e autor do livro “The 39 Steps”, considerou-o “a apresentação mais nobre do semblante humano que conheço”.

Este busto foi uma celebridade do início da era moderna, mas a sua autenticidade acabou por ser questionada. Após décadas de dúvidas crescentes, no início da década de 1960, foi considerado falso. Existiam vestígios de abrasão e manchas artificiais produzidas com o intuito de o fazer parecer séculos mais antigo do que realmente era. Ao contrário de outros exemplares, não era um romano anónimo, pois terá sido produzido com a intenção de retratar Júlio César, copiando a imagem estampada nas moedas, mas a peça foi criada no final do século XVIII. O busto foi deslocado para uma exposição itinerante sobre Roma Antiga e, ocasionalmente, integra exposições sobre falsificações célebres.

Havia, no entanto, outra cabeça colossal de César à espera de ocupar o seu lugar sob a luz da ribalta. Fora encontrada perto de Roma por Lucien Bonaparte, o irmão mais novo de Napoleão, que era um arqueólogo amador. Por dificuldades económicas, acabou por ser vendida e levada para a propriedade do novo proprietário nos arredores de Turim, onde permaneceu anonimamente (“velho desconhecido”) durante cem anos.

Na década de 1930, um arqueólogo italiano, aproveitando-se talvez do entusiasmo de Mussolini pelo ditador, identificou-o como representação de Júlio César, feita ainda em vida. Era tão preciso, afirmava, que a estranha forma da cabeça, que poderia ser facilmente atribuída a um escultor fraco, era na verdade o reflexo de deformações congénitas do crânio de César (clinocefalia e plagiocefalia, para usar os termos técnicos). Não interessava o facto de haver aqui uma afirmação que sustentava uma hipótese nunca provada, uma vez que não há evidências das condições do crânio de César para lá desta escultura. A peça recuperada por Lucien Bonaparte alimentou desvarios e deu a ilusão de se conseguir ver o verdadeiro rosto de César e simultaneamente aceder a importantes informações médicas sobre ele. No final, esta peça acabou também por se revelar uma desilusão. Não tanto porque se pensar que seja falsa, ou não seja César, mas porque é de facto uma obra de arte grosseira. Agora, a melhor hipótese que se apresenta é que pode ser uma cópia romana posterior de um busto contemporâneo de César, mas não é certamente resultado de uma observação cuidadosa (e a estranha forma do crânio não será mais do que apenas isso – uma forma estranha).

A escultura do rio Ródano veio preencher estas lacunas de conhecimento. A cidade de Arles tinha ligações políticas a César (o ditador atribuíra terras locais a alguns dos veteranos). O pescoço da escultura apresenta as rugas necessárias e a maçã de Adão é bastante proeminente, mas a face não é tão magra como a apresentada nas moedas. Esta será a representação do rosto de César durante algumas décadas e ilustrará capas de livros. Presumo, porém, que mais cedo ou mais tarde surgirão dúvidas e aparecerá outro busto para ocupar o seu lugar.

A verdadeira imagem de Júlio César está sempre fora do nosso alcance. Cada geração encontra o seu próprio César.

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