texto etrusco

Liber Linteus de Zagreb. Tiras de escrita etrusca usadas como ligaduras da múmia egípcia adquirida por Mihail Baric em 1848. Museu Arqueológico, Zagreb.

No século XIX, quando se retiraram as ligaduras de uma múmia, surgiu o mais longo texto etrusco preservado: o Liber Linteus ou Livro de Linho de Zagreb.

Texto: Marina Escolano-Poveda

Em 1848 ou 1849, o secretário da chancelaria real austro-húngara em Viena, um croata chamado Mihail Baric, comprou uma múmia no Egipto.

Na época, era habitual os viajantes adquirirem múmias antigas que levavam para a Europa para as exibir em colecções privadas ou públicas. Baric levou-a para Viena e, durante os 12 anos seguintes, manteve-a em casa, exposta numa vitrina. Após a sua morte, o irmão Ilja Baric herdou-a e, em 1861, doou-a ao Museu Nacional de Zagreb, onde se encontra na actualidade.

Como também era prática habitual no século XIX, Baric removeu as ligaduras da múmia para retirar os amuletos e outros elementos do enxoval funerário. Ao fazê-lo descobriu nas ligaduras várias tiras de linho onde estava um texto noutra escrita que não a egípcia.

Múmia surpresa

A descoberta atraiu a atenção de diversos investigadores e foram feitas várias tentativas para decifrar os textos. Por fim, em 1891, o egiptólogo Jacob Krall propôs que o conjunto de sinais indecifráveis correspondia à escrita etrusca. Desta forma explicava-se que os textos estivessem escritos sobre linho. Quando se pensa em livros da Antiguidade, normalmente vem-nos à mente a imagem de um rolo de papiro, um material elaborado a partir do caule da planta com o mesmo nome. No entanto, na produção de livros, usaram-se também outros materiais, como couro, pergaminho (pele de animal com um tratamento especial e esticada) ou linho. O historiador romano Tito Lívio conta que quer os etruscos, quer os romanos utilizaram, por exemplo, livros de linho para o registo de magistrados.

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A múmia descoberta onde foi encontrado o Liber Linteus era de uma mulher de 30 ou 40 anos com 1,64m de estatura. Sob as ligaduras, tinha um colar e um toucado de flores. Descobriu-se ouro e até apareceram ossos do crânio de um gato. A análise dos vestígios humanos não revelou patologias identificadas como causa da morte. Imagem: Alamy /ACI

Assim, as tiras de tecido de linho com escrita etrusca encontradas na múmia comprada por Baric corresponderiam originalmente a um livro etrusco. Os especialistas pensam que o Liber Linteus Zagrebiensis ou Livro de Linho de Zagreb, como é conhecido hoje este texto, era originalmente um rolo de linho com 340 centímetros de comprimento e cerca de 45 centímetros de altura, onde foram escritas em etrusco 12 colunas de texto com cerca de 35 linhas cada. A parte recuperada corresponde a 60% do texto original – cerca de 1.330 palavras.

Da Etrúria ao Egipto

A estrutura do tecido de linho permite saber que foi elaborado na Etrúria, mas por causas desconhecidas o rolo foi levado para o país do Nilo pouco depois de ser escrito, no século II a.C.

Além disso, o Liber Linteus não chegou aos nossos dias na sua forma original de rolo. No Egipto, foi cortado em sete tiras, reutilizadas como ligaduras de uma múmia ptolemaica. Este tipo de reutilização de peças de linho para a confecção de ligaduras para mumificação era habitual.

Embora não saibamos como terá chegado o rolo etrusco ao Egipto, talvez seja possível adivinhar quem ordenou que fosse usado nas ligaduras de uma múmia. Os documentos administrativos que chegaram ao museu de Zagreb associados à múmia registam que entre as ligaduras existia também um papiro que poderia corresponder ao Papiro Zagreb 602, um Livro dos Mortos datado dos séculos III-II a.C. Se assim fosse (a correspondência não é segura), seria possível identificar esta múmia como a mulher mencionada no papiro, Nenskhonsu, a esposa de Pakherkhonsu, profeta de Amon em Karnak que viveu na época ptolemaica. O Papiro Zagreb 602,composto originalmente para Pakherkhonsu, acabou por se destinar a Neskhonsu talvez por esta ter morrido antes dele.

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No Liber Linteus, mencionam-se divindades que parecem ser deuses da luz e da escuridão. Na imagem: Usil, Deus solar dos etruscos. Decoração de carro. Século V a.C. Erich Lessing / ALBUM

Se a ligação com a múmia for verdadeira, é interessante verificar que entre os títulos desta personagem, registados no papiro, encontra-se o de “supervisor dos tecidos ou roupas”, um cargo que implicava a gestão dos tecidos destinados a vestir a estátua de Amon no Grande Templo de Karnak. Por isso, pode pensar-se que, em virtude desse cargo, Pakherkhonsu mandou cortar e reutilizar o Liber Linteus, como ligaduras para a múmia da esposa.

Descodificação

O conteúdo do texto do Liber Linteus continua a ser um enigma. O etrusco escrevia-se da direita para a esquerda usando alfabeto grego arcaico, que chegou à península Itálica com os colonos gregos no século VIII a.C. Deste modo, dado que os signos usados nas inscrições etruscas tinham o mesmo valor fonético que em grego, estas inscrições podem ser lidas sem problemas, mas não se conseguem perceber. Como acontece também com escritas da Península Ibérica, como a Escrita do Sudoeste, o etrusco ainda não foi decifrado. Sabemos que não é uma escrita indo-europeia, como o latim ou o grego, e de facto não parece estar relacionada com nenhuma outra escrita conhecida, o que complica o trabalho de descodificação.

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Três linhas decifradas. Uma das passagens do Liber Linteus que se conseguiu traduzir com maior segurança corresponde às três primeiras linhas da oitava coluna do texto:

Ðucte. ciÐ. ÐariÐ. esvita. vacltnam

“Em 13 de Agosto, a festa dos idus, oferece então [uma libação]”.

culÐcva. spetri. etnam. i.c. esvitle. ampn/ eri

“As portas hão-de ser spet-[abertas?] desta forma; como durante a festa dos idus hão-de ser ampn [fechadas?]”

celi. huÐiÐ. zaÐrumiÐ. flerÐva. neÐunsl Ðucri. Ðezeric.

“Em 24 de Setembro, vítimas sacrificiais para Neptuno hão-de ser anunciadas e apresentadas.”

Na imagem Cippus Perusinus. Estela com escrita etrusca, do século III-II a.C.

Conhecem-se alguns nomes próprios, títulos, topónimos e outras palavras, assim como pormenores do funcionamento da escrita, obtidos através da comparação de inscrições etruscas conhecidas (cerca de 13 mil) com outros textos de formato similar noutras escritas, assim como a partir da menção de termos etruscos por parte de autores latinos. De facto, devido à longa convivência do etrusco com o latim, esta escrita incorpora vocabulário etrusco que chegou aos nossos dias em palavras como “elemento” (em etrusco, referindo-se às letras do alfabeto), “histriónico” (de histrio, “actor”) ou “persona” (do etrusco phersu, “máscara”). É através deste processo que se conhece parte do conteúdo do Liber Linteus e que foi até mesmo possível traduzir parcialmente algumas das suas linhas.

Etruscos

Cena de um fresco do túmulo etrusco dos Augures, em Tarquinia. Scala, Florença

O Liber Linteus era um documento oficial que continha cerca de 15 rituais organizados ao longo do ano, aparentemente ligados aos solstícios e aos equinócios, dividindo o ano em quatro estações. Provavelmente foi criado por um sacerdote religioso e, no documento, encontram-se referências a datas, divindades, tipos de sacerdotes, acções rituais e oferendas. As numerosas menções a locais ligados a água e bosques indicam que estes rituais deveriam realizar-se fora da cidade, em rios e locais aquáticos sagrados, talvez com conotações funerárias. As divindades mencionadas parecem ser deuses da luz e da obscuridade, talvez relacionadas com a mudança das estações, génios ou númenes ligados ao deus Tin, o Júpiter etrusco e Nethuns, o futuro Neptuno.

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