banho diário iluminismo

A toilette ou a arte de se arranjar acompanhada. Na língua francesa actual, o termo toilette, ou faire sa toilette, designa a actividade de lavar o corpo sozinho. No século XVIII, tinha um sentido mais amplo. Referia-se à forma como um indivíduo se arranjava de manhã, lavando determinadas partes do corpo, perfumando-se e, por último, vestindo-se. Em contraste com a privacidade da higiene pessoal da actualidade, no século XVIII a toilette da nobreza e da alta burguesia era feita na presença de outras pessoas, tal como em Versalhes os reis se arranjavam em frente de um grande número de cortesãos. Não é em vão que o Dicionário da Academia Francesa, em 1762, definia assim o termo: “Dizemos ‘ver uma senhora na sua toilette’ ou ‘conversar durante a sua toilette’ para nos referirmos a vê-la ou conversar com ela enquanto se arranja”. Na imagem, uma jovem senta-se frente do toucador enquanto uma criada prepara a banheira. Óleo de François Elsen. Museu Boucher de Perthes, Abbeville.

Apesar dos preconceitos, no final do século XVII, impôs-se o hábito da lavagem regular com água.

Texto: Guillaume Mazeau

No século XVIII, as pessoas lavavam-se pouco e faziam-no a seco, evitando o uso de água. Isto explica-se em boa parte pela crença antiga, segundo a qual a saúde do corpo e da alma dependia do equilíbrio dos quatro humores que se supunha integrarem o corpo: sangue, pituitária, bílis amarela e atrabílis. Os maus humores eram eliminados por processos naturais como as hemorragias, vómitos ou transpiração e, quando estes não funcionavam, recorria-se a purgas e sangrias feitas por médicos. Logicamente, a introdução de um quinto elemento estranho, como a água, era visto com receio, mas esta desconfiança não era nova. Desde a segunda metade do século XIV, os médicos começaram a desaconselhar os banhos quentes por considerarem que a água poderia facilitar o contágio da peste. Como o calor abre os poros, acreditava-se que era assim que se introduziam miasmas no organismo que desequilibravam o seu funcionamento. Os miasmas, no pensamento da época, eram eflúvios malignos produzidos por corpos corruptos ou águas estagnadas.

Alergia à água

Este medo à água atingiu o seu auge no século XVII, até nas classes mais altas da sociedade: embora Luís XIV não tivesse problemas em nadar, evitava usar água quando se lavava. No interior das casas nobres ou burguesas, existiam banheiras, mas aconselhava-se a que não fossem muito usadas e sobretudo a não permanecer no interior durante muito tempo. A água era de tal forma rejeitada que, antes da Revolução Francesa, Paris contava apenas com nove casas de banho, ou seja, três vezes menos do que em finais do século XIII.

O medo dos miasmas tornou-se uma verdadeira obsessão. Para garantir a saúde, era preciso fazer circular o ar, tal como os filósofos e os economistas do Iluminismo pregavam as virtudes da circulação de pessoas, bens e ideias. Portanto, deviam evitar-se os vapores de água e a condensação, sobretudo em espaços fechados.

Madame Pompadeur

A moda da cútis natural. O excesso de cosméticos e o seu efeito artificial tornaram-se símbolos de conflito social: por comparação com a maquilhagem, aos pós e produtos muito vistosos da aristocracia, a burguesia em ascensão preferia o “natural” e utilizava quer por gostar, quer por rejeitar as substâncias metálicas usadas na sua preparação, maquilhagem feita a partir de produtos vegetais. Na imagem, Madame de Pompadour com maquilhagem em voga no século XVIII.

Do mesmo modo, como se considerava que os maus odores indicavam a presença de ar viciado, uma norma básica da higiene consistia em perfumar o ar. À semelhança das sangrias, pensava-se que os odores agradáveis limpavam de miasmas os órgãos e o sangue. A sujidade, em contrapartida, não era considerada um risco para a saúde. Considerava-se que protegia a pele, do mesmo modo que as pulgas e os piolhos.

Outras causas, menos médicas, explicam também a desconfiança relativamente à água. A partir da Contra-Reforma dos séculos XVI e XVII, a Igreja exerceu uma influência crescente não apenas sobre a moral, mas também sobre as práticas corporais quotidianas da população. O clero quis proibir os banhos públicos, denominados “banhos romanos”, pelo perigo associado ao contacto corporal e à nudez.

Além disso, até no âmbito privado, considerava-se que a exploração do corpo era censurável, sobretudo as partes genitais, como dizia um pai ao filho antes de partir em viagem: “Não toques nas partes do teu corpo que a honestidade te proíbe mostrar, salvo em caso de extrema necessidade e, mesmo então, fá-lo indirectamente.”

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Quarto de banho do palácio de Valençay. Da esquerda para a direita, vê-se um bidé, uma banheira e o toucador. Cerca de 1830.

Por todas estas razões, as práticas de higiene eram rápidas, muito selectivas e realizavam-se a seco ou quase. Era preciso lavar-se sem debilitar a pele e sem a expor à entrada de miasmas, o que implicava abluções parciais. Quando se levantavam, adultos e crianças penteavam-se e esfregavam certas partes do corpo com panos secos, dando maior importância às partes mais expostas ao ar: as mãos, a boca e a parte posterior das orelhas, assim como os pés.

Símbolo de distinção

Na corte e no seio da nobreza ou da burguesia, a higiene estava relacionada com as exigências da respeitabilidade social. O uso de roupa limpa era um bom indicador da posição social de cada indivíduo: quanto mais rico se era, mais se mudava de roupa. Da mesma forma, em relação ao cuidado corporal, o importante era a aparência. Frequentemente não se tentava eliminar a sujidade mas sim dissimulá-la com produtos que cobrissem as imperfeições da pele e a tornassem branca. Por estes motivos, a limpeza consistia em esfregar a pele com pastilhas de sabão de Florença ou de Bolonha, com perfume de limão ou laranja, ou lavar a cara com vinagre perfumado.

sabão

O sabão, um luxo. No século XVIII, o sabão era um produto caro, dada a dificuldade na obtenção de potassa, o seu principal ingrediente. Só se tornou acessível quando o francês Nicolas Leblanc descobriu em 1791 um novo método para produzir soda com sal, carvão e cal. Saboneteira de prata fabricada por Francis Riel em París c. 1771

Este último atingiu enorme popularidade. Em Paris, na sua loja de Saint-André-des-Arts, o famoso vinagreiro Maille comercializava pelo menos 92 vinagres para a saúde e higiene. Difundidos após 1740, estes vinagres perfumados, em forma de loções com flores ou especiarias, eram vendidos por vinagreiros destiladores que competiam em imaginação para promover a sua “Água imperial”, a sua “Água magnífica” ou os seus vinagres de citrinos feitos com laranjas de Portugal. Também era aconselhado o uso de cremes de amêndoas doces ou de benjoim nas mãos. À semelhança dos cremes de jasmim ou lavanda, estes produtos eliminavam a sujidade de forma mecânica, mas sem agredir a pele. Quando fazia bom tempo, as pessoas aplicavam no peito panos com pomadas.

As virtudes da água

Na segunda metade do século, no entanto, começou a pensar-se que a água morna poderia ter virtudes calmantes e, sobretudo, que a água fria permitia fortalecer os tecidos, aumentar a fluidez do sangue e até dissolver os tumores. Em 1762, na sua obra Emílio, ou Da educação, Rousseau aconselhava banhar as crianças em água fria para as fortalecer: “Lavai frequentemente as crianças; a sua sujidade mostra a necessidade de o fazer.”

No ano anterior, nas margens do Sena, um estabelecimento de banhos quentes de Paris tinha aberto portas a uma clientela privilegiada, com a aprovação oficial da Faculdade de Medicina e o seu proprietário, Poitevin, fora gratificado com privilégios.

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Na intimidade do banho. Esta pintura de François Boucher de 1766, é característica das cenas de toilette da arte francesa do século XVIII. Mostra uma jovem tapada por uma camisa 1 sentada sobre o que se pensa ser um bidé 2 e com os pés num balde de porcelana 3. À sua frente, vê-se uma mesinha de toilette 4, com uma jarra em cima 5. Tal como noutras obras de Boucher, o quadro tem uma componente erótica, sugerida pelo gesto da rapariga para o espectador.

No final do século, a água começou a entrar em determinados lares, que criaram inclusivamente casas-de-banho. O banho era um local de descanso e até mesmo de vida social, pois não era considerado indecente receber os amigos na banheira. Progressivamente, o asseio começou a tornar-se uma questão privada e individual, dando forma a novos momentos e espaços de intimidade. Maria Antonieta, por exemplo, só permitia a presença de dois criados enquanto tomava banho. Claro que o banho ainda foi usado durante muito tempo como método para cuidar da pele e tratar doenças: em 1793, o jornalista Marat tomava um banho impregnado de amêndoas e minerais para combater a dermatite quando foi assassinado por Charlotte Corday.

Com o progresso do hedonismo e a lenta liberalização dos tabus corporais, o banho passou a estar também associado ao prazer. Assim, as mulheres da classe alta tomavam banhos perfumados com leite ou framboesa. Mas tudo isto era apenas uma excepção: durante muito tempo, a maior parte da população evitava usar água para se lavar. Foi preciso esperar pelas primeiras décadas do século XIX para que se começasse a generalizar a utilização higiénica da água.

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