chef Carême

Marie-Antoine Carême foi cozinheiro das principais casas reais europeias. Gravura de Charles se Steuben. Século XIX.

Com as suas criações gastronómicas sofisticadas, Antonin Carême impôs-se na Europa com a sua gastronomia, tal como Napoleão com os seus exércitos.

Texto: Martina Tommasi

A Revolução Francesa de 1789 não sacudiu somente os alicerces dos Estados em todo o continente – mudou também de forma radical muitas áreas da vida quotidiana. Uma delas foi a dos hábitos alimentares. Em oposição à sumptuosidade da antiga cozinha aristocrática, após a Revolução o gosto culinário inclinou-se para uma maior simplicidade. E não só: com a queda em desgraça dos seus antigos e nobres senhores, para quem tinham trabalhado durante séculos, os cozinheiros tiveram de reinventar-se e fizeram-no com admirável rapidez, tornando-se restaurateurs e abrindo novos estabelecimentos. É neste contexto que surgiu e triunfou a figura de Carême.

Marie-Antoine Carême, chamado Antonin, nasceu em Paris no dia 8 de Julho de 1784. Não se conhece a profissão dos pais, Marie-Jeanne Pascal e Jean-Gilbert Carême, já que muitos documentos foram destruídos após a guerra franco-prussiana de 1871. Sabe-se apenas que a sua família era muito numerosa, pois o casal tinha 15 a 25 filhos. Antonin viveu na casa paterna até aos 9 ou 12 anos, depois, segundo a tradição, o pai levou-o a um restaurante e, após pagar a conta, despediu-se do filho com estas terríveis palavras: “Este é o último dinheiro que posso gastar contigo.” Nunca mais se voltaram a ver.

carême

Bolo para a boda do imperador. Graças ao seu talento e à cumplicidade de Talleyrand, Carême tornou-se um chef muito solicitado pelo jet-set internacional. Até Napoleão Bonaparte, que não era um amante da boa mesa nem de eventos sociais, recorreu a ele para que criasse o menu da sua boda e elaborasse o bolo de casamento. Para Paulina, irmã do imperador, criou bolachas wafer (napolitanas) e também se lhe atribui a paternidade dos turnedós Rossini, uma peça do lombo envolvida em foie gras e aromatizada com trufas, em honra do compositor, a quem o unia a paixão pelas trufas. Na imagem a capa de A Arte da Cozinha Francesa de Antonin Carême.

Aprendiz com talento Carême vagueou pelas ruas da capital até encontrar trabalho e um tecto confortável num restaurante, onde serviu até aos 15 anos como ajudante de cozinha. Em 1798, continuou a aprendizagem ao serviço de Sylvain Bailly, um famoso pasteleiro cuja loja se situava na zona do Palais Royal.

Na época, a pastelaria era considerada o nível mais elevado da cozinha e os mestres pasteleiros gozavam de grande reputação. Nos anos que passou ao serviço de Bailly, o jovem Antonin aprendeu os fundamentos daquela que era conhecida também como “arte branca”. Pouco a pouco, foi dominando técnicas cada vez mais complexas, em particular a das chamadas pièces montées: bolos compostos pela montagem de vários elementos para obter efeitos decorativos espectaculares. Carême cultivou especialmente a modalidade dos bolos em forma de edifícios.

Talvez motivado pelo novo clima de optimismo trazido por Napoleão Bonaparte, aclamado como cônsul vitalício por plebiscito em 1802, Carême, com menos de 20 anos, abriu a sua primeira pastelaria. Boucher, o chef de Talleyrand, ministro dos Assuntos Exteriores, descobriu as suas qualidades e quis tê-lo com ele. Foi o próprio ministro Talleyrand que lhe propôs trabalho, através da pastelaria Gendrom, na elaboração de comida para as recepções diplomáticas.

A associação entre Carême e Talleyrand durou doze anos e, apesar das diferenças de classe, entre os dois criou-se se não uma relação de amizade, pelo menos uma relação de estima e simpatia.

O ministro, quase trinta anos mais velho, partilhava com Carême as dificuldades sofridas desde a infância (no caso de Talleyrand, uma malformação física que o levou a ser excluído da herança familiar) e a luta pela ascensão na escala social até se tornar um dos protagonistas da diplomacia da época.

A alta-cozinha

Carême elaborou para Talleyrand requintados bolos como a Ccharlotte, o vol-au-vent, o merengue e o boudoir, bolos que se molhava em vinho da Madeira, como costumava fazer Talleyrand.

Todavia, a inovação mais importante de Carême produziu-se noutro âmbito. Em 1804, quando Napoleão teve de entregar a alguém a tarefa de se encarregar dos banquetes diplomáticos, elegeu Carême. Não lhe deu carta branca. Pediu-lhe que preparasse diariamente um menu com produtos da época, utilizando apenas produtos locais e sem nunca se repetir. Era um desafio insólito numa época em que as mesas da alta sociedade ofereciam pratos exclusivos e caros.

chef Carême

Mestre de jovens pasteleiros. Quando Marie-Antoine Carême abriu a sua pastelaria em Paris, na Rue de la Paix, tinha menos de 20 anos. Nessa época, a “arte branca” era o nível mais alto da cozinha e Carême tinha orgulho do “gosto e elegância” dos seus colegas mais jovens. Embora fosse um homem modesto, tinha consciência do seu talento, a ponto de afirmar: “Para me esquecer dos invejosos, quando passeio pelas ruas de Paris, constato com alegria o crescimento e a melhoria das pastelarias. Nada disto existia antes do meu trabalho e dos meus livros.” Na imagem um homem olha para as criações da montra da pastelaria de Carême.

Talleyrand, durante os anos em que colaboraram, também incentivara Carême a criar uma gastronomia nova, de estilo refinado, mais sóbria quanto ao sabor mas ao mesmo tempo capaz de surpreender. Dos desafios colocados pelas duas personagens ao chef, nasceu a haute cuisine, um conhecimento gastronómico novo que Carême reuniu numa publicação de cinco volumes editada em 1833 com o título L’art de la cuisine française.

O Império e a gastronomia

Os contributos de Carême foram incontáveis. As ervas frescas melhoravam os pratos feitos com poucos ingredientes, as porções eram equilibradas e esteticamente satisfatórias e os molhos não ocultavam os sabores, mas realçavam-nos. No campo dos molhos, Carême fez uma pequena revolução, subdividindo-os em quatro preparados básicos: o bechamel, o velouté, o espanhol (ou molho escuro) e o molho de tomate. Todas as variações partiam daqui. Carême também introduziu o serviço“à russa”, ou seja, levando para a mesa os pratos já servidos com as respectivas porções.

chef Carême

Chapéu de cozinheiro. Atribui-se a Carême a criação do uniforme de chef e a toque blanche, a característica touca de cozinha usada ainda hoje pelos grandes chefs. Os cozinheiros já usavam touca no passado, mas foi ele que teve a ideia de colocar por dentro um pedaço de cartão para manter atouca levantada e permitir maior ventilação, permitindo assim controlar a sudação. Na imagem, uniforme do chef moderno, segundo Carême.

O protagonismo indiscutível que Carême deu aos produtos de França e das suas colónias nas comidas que preparava para o ministério de Talleyrand não era casual, pois tinha um claro significado político: a grandeza napoleónica começava na mesa, totalmente de acordo com as ideias de Talleyrand. Este encarregou-se de dar a conhecer o chef à alta sociedade. O frugal Napoleão também o aprovou, afirmando que os hóspedes deviam ser tratados da melhor forma “em nome de França”.

Paradoxalmente, a consagração definitiva de Carême deu-se após a derrota do imperador, devido ao Congresso de Viena, quando Luís XVIII pediu a Talleyrand que fosse o seu representante na mesa de negociações. Mesmo nessa situação, foi reconhecida a grandeza, pelo menos gastronómica, de França.

Com o fim da época napoleónica, começou uma nova fase na vida de Carême. O chef transferiu-se para Brighton, em Inglaterra, onde ficou ao serviço do príncipe regente, o futuro rei Jorge IV. Este sofria de gota e Carême criou para ele uma ementa ligeira, fácil de digerir, mas saborosa. No entanto, em Inglaterra nunca se chegou a sentir bem e, depois de algum tempo nas Ilhas Britânicas, aceitou a missão de renovação das cozinhas do czar Alexandre I em São Petersburgo. Também essa campanha seria curta.

chef Carême

O arquitecto dos bolos. Carême tornou-se conhecido pelos bolos de açúcar e massapão, por vezes com mais de um metro de altura, que reproduziam edifícios da Antiguidade clássica, Para os elaborar, procurava inspiração em livros de história da arquitectura que consultava na Biblioteca Nacional de Paris.

Um final prematuro

Quando regressou a França, já muito famoso, recebeu numerosas ofertas de emprego das personalidades mais importantes da Europa. Elegeu o riquíssimo barão James Mayer de Rotschild, banqueiro que nesse momento atingira grande sucesso.

A sua relação começou em 1823 e foi uma ligação sólida, como a que anteriormente estabelecera com Talleyrand. Acabou em 1829, quando o chef se retirou para a vida privada para se dedicar à escrita dos seus amados livros.

A sua decisão talvez tenha sido influenciada não apenas pela sua paixão pela cultura, mas também por motivos de saúde. Ao trabalhar na cozinha, contraíra uma doença pulmonar relacionada com a inalação prolongada de fumos de carvão, já que à época as cozinhas funcionavam com carvão mineral, que era muito contaminante. Faleceu no dia 12 de Janeiro de 1833, como apenas 48 anos. Balzac escreveu a propósito dele: “Morreu queimado pelo fogo directo dos fogões e pelo seu génio.”

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