Iémen

Fazendo uma pausa na prolongada guerra civil do Iémen, homens e crianças dançam ao som dos tambores no casamento da família Al-Taweel, nas ruas da Cidade Velha de Sana, em Julho de 2021. 

Num período em que a guerra ameaça milhões de iemenitas, historiadores e arqueólogos desenvolvem esforços para preservar os símbolos de uma cultura antiga.

Texto: Iona Craig
Fotografias: Moises Saman

De pé, no fundo de um uádi poeirento, inclino o pescoço para trás para observar a enorme estrutura que se eleva acima de mim: camada sobre camada de pedra meticulosamente talhada, assente na perfeição, sem argamassa, há cerca de 2.500 anos, ergue-se a 15 metros de altura, contra o céu do deserto que vai escurecendo.

Quando a Grande Barragem de Marib foi construída, naquilo que hoje é o Iémen, os seus muros de terra e pedra abrangiam uma área colossal. As comportas, ainda existentes, faziam parte de um sistema sofisticado que controlava o caudal das chuvas proveniente das terras altas do Iémen, correndo para leste e alimentando oásis agrícolas ao longo de 9.600 hectares de terras áridas. E, no meio de tudo isto, um próspero centro económico: Marib, capital de Saba, o reino árabe mais famosamente associado à sua soberana lendária Bilqis, imortalizada na Bíblia e no Alcorão como rainha de Sabá.

Durante o apogeu de Marib, a partir do século VIII a.C., esta barragem foi uma fonte de prosperidade para a capital do reino e a razão da sua existência como ponto de escala fértil, produtor de alimentos e abundante em água para camelos sedentos e mercadores esfomeados. O reino floresceu no Sul da Arábia, onde produtos valiosos como o incenso, a mirra e outras resinas eram comprados e vendidos neste centro da rota que se estendia da Índia ao Mediterrâneo. Sabá foi igualmente um ponto crucial da economia caravaneira, um lugar onde bens valiosos como o marfim, as pérolas, as sedas e as madeiras preciosas pagavam taxas, na sua deslocação para o Ocidente.

A riqueza de Marib assenta actualmente nas reservas de petróleo e de gás que jazem sob as areias. Isto transforma a cidade num alvo estratégico da guerra entre os rebeldes iemenitas Houthi e a coligação liderada pela Arábia Saudita e pelos Emirados Árabes Unidos, que apoia as forças locais contra a expansão dos Houthis, uma guerra que assola o Iémen há oito anos. Desde 2020 que a antiga capital tem sido a base e um dos derradeiros redutos metropolitanos do governo iemenita, reconhecido pela comunidade internacional.

Deambulo pelos muros remanescentes da barragem, interrogando-me sobre a logística complexa que teria sido necessária para manter uma cidade próspera no Sul da Arábia há milhares de anos. Então, o som familiar da artilharia a ribombar, nas montanhas vizinhas, ecoa através do uádi.

“Ouviu aquilo?”, sussurra Ammar Derwish, o meu guia e intérprete iemenita, no meio da escuridão quase completa. O estrondo seguinte é um pouco mais forte e a resposta surge antes mesmo de a pergunta ser repetida.

“Sim, ouvi.”

A actual guerra no Iémen acontece ao lado e, em alguns lugares, mesmo em cima de tesouros do passado. Os seus reinos antigos (Sabá, Qataban, Main, Hadramawt, Himyar e Awsan) constituem a génese da civilização da península Arábica. Das proezas da engenharia hidráulica às inscrições meticulosas, esta é a história de um povo mercador e de uma civilização sofisticada e sedentária, muito distante dos estereótipos há muito enraizados de árabes deambulando pelo deserto que imperam na cultura popular ocidental dos séculos XIX e XX e nas suas descrições da região.

A guerra começou em 2014, quando os rebeldes Houthi, do Norte, se apoderaram da capital, Sana, com a ajuda dos partidários do antigo presidente Ali Abdallah Saleh. O seu sucessor, Abdrabbuh Mansour Hadi, foi detido em prisão domiciliária. Hadi conseguiu fugir e exilou-se na Arábia Saudita, levando o reino saudita a lançar uma campanha de bombardeamentos aéreos sancionada por uma coligação regional apoiada pelos Estados Unidos e outras potências ocidentais. Todas as partes têm dado provas de pouca consideração pelos 30 milhões de civis à sua mercê e as ameaças aos iemenitas e os perigos causados ao seu património andam de mãos dadas.

Iémen

Os museus têm sido arrasados por ataques aéreos, centenas de casas tradicionais, multisseculares e multigeracionais, têm sido destruídas, os templos pré-islâmicos bombardeados e os santuários sufitas reduzidos a escombros por militantes. Perante esta devastação, uma rede de historiadores e arqueólogos iemenitas, além de outros apaixonados pelo passado do país, dedicou-se a uma pequena, mas determinada missão de preservar as antiguidades do Iémen – artefactos ancestrais fechados nos museus do país, escondidos em armazéns ou enterrados em segurança na areia. Cientes das prioridades dos seus concidadãos e dos milhões de pessoas deslocadas pelo conflito, concentram os seus esforços na preservação futura para os iemenitas que estão actualmente preocupados com algo bastante mais premente: a sobrevivência.

Ao longo de milénios, a capital da rainha de Sabá deixou de ser a maior cidade do Sul da Arábia para se transformar num povoado provinciano delapidado do século XXI, identificado com homens tribais armados que raptam pessoas, enraivecidos por um governo central que desviou as receitas das reservas de petróleo e de gás, produzindo poucos ou nenhuns benefícios a nível local. Desde 2014, contudo, estes estereótipos de um país sem lei têm sido substituídos por outros. A Marib de hoje é quase irreconhecível quando comparada com a cidade poeirenta de há oito anos: vêem-se casas novas, uma circunvalação recém-estreada, bem como hotéis e restaurantes construídos pelas pessoas que fogem do território Houthi e dos combates. Marib é hoje uma cidade-cogumelo nascida da guerra do Iémen.

Em vez dos camelos carregados de incenso do passado, camiões cheios de sacos de cimento para as casas e hotéis em construção cruzam agora o deserto até Marib, num incessante vaivém. A produção petrolífera, interrompida em 2015, vai sendo gradualmente retomada e sustenta agora uma economia que torna a cidade efectivamente independente do resto do país.

A população de Marib e da província em seu redor reunia menos de meio milhão de habitantes antes da guerra, mas cresceu quase sete vezes, engrossada pelos deslocados que fogem das áreas controladas pelos Houthi e dos territórios disputados. Cerca de 85% da população da província de Marib é constituída por pessoas deslocadas pelo conflito.

Embora bafejada pela sorte da mudança, a cidade está agora de novo sob ameaça. Uma ofensiva dos Houthi, lançada no início de 2021, atingiu as montanhas atrás da antiga barragem de Marib, tendo-se intensificado no princípio deste ano. A cidade encontra-se actualmente ao alcance dos mísseis rebeldes e dezenas deles têm caído sobre zonas onde campos poeirentos para deslocados se estendem a perder de vista, reunindo cerca de 200 mil pessoas. Até ao momento, o poder de destruição das forças aéreas da coligação, além de ter matado e ferido mais de 19.200 civis em todo o país desde 2015, tem conseguido manter os Houthis à distância. Com as voláteis linhas da frente, os habitantes de Marib aguardam o seu destino, que talvez consista em procurar refúgio noutro local, pela terceira ou quarta vez nesta guerra. Este ano registou-se o mais longo período de tréguas. Um cessar-fogo negociado em Abril foi prorrogado por dois meses em Junho, na esperança de que as conversações políticas possam pôr fim à guerra.

A linha da frente mais activa do conflito causa apreensão aos civis e os danos já infligidos ao património cultural do Iémen demonstram que as partes em conflito nesta guerra não hesitam, por um instante sequer, em transformar sítios de valor patrimonial em campos de batalha. Em Maio de 2015, um ataque aéreo da coligação atingiu um dos bloqueios de comporta da Grande Barragem de Marib, atravessando a torre que restava. Uma cascata de escombros ficou no seu lugar.

A leste da cidade contemporânea estão situados os famosos templos de Sabá, o Baran e o Awwam, trono e santuário da rainha de Sabá, respectivamente. Distando um quilómetro entre si, estes templos singulares (consagrados à principal divindade de Sabá, Almaqah, deus do regadio e da agricultura) são uma fonte de grande parte do pouco e precioso conhecimento de que dispomos sobre o mundo de Sabá.

Iémen

Clique na imagem para ver detalhes. Matthew W. Chwastyk. Scott Elder. Fontes: Projecto de dados sobre eventos e localizações de conflitos armados; Serviço de Investigação do Congresso; Risk Intelligence; Projecto de dados do Iémen; Atlas Digital do Iémen Antigo, Instituto Arqueológico Alemão; Landscan 2020, Laboratório Nacional de Oakridge; Data @Openstreet Map. Zonas de controlo à data de junho de 2022.

Os pormenores sobre como os habitantes de Sabá prestavam culto à divindade são obscuros. Sabemos apenas que o incenso e a mirra transaccionados em Sabá eram amplamente utilizados pelas diversas confissões religiosas da época. Os mercadores e peregrinos em constante movimento prestavam culto a Almaqah quando se detinham nos oásis de Marib, escala das suas longas e traiçoeiras jornadas através dos desertos da península Arábica. Sabá foi pioneira na escrita e na linguagem. As suas influências culturais sobre a arquitectura, a iconografia e a decoração espalharam-se pelo Sul da Arábia e foram levadas ainda mais longe pelos mercadores itinerantes.

Muito antes da guerra mais recente, os templos reais do Iémen foram alvo de salteadores e vorazes arqueólogos estrangeiros que se apropriaram de todos os achados. Na opinião de algumas pessoas, o mais célebre desses estrangeiros foi Wendell Phillips, um norte-americano que escavou em diversos sítios arqueológicos do Sul da Arábia entre 1950 e 1952.

“O tempo adormeceu por aqui e os vestígos de civilizações antigas permaneceram sepultados nas profundezas da areia, preservados como flores no meio das páginas de um livro”, escreveu Phillips no seu livro, publicado em 1955, “Qataban and Sheba”, centrado na sua primeira visita ao Iémen. “A terra parecia hostil, mas era rica em despojos do tempo, e eu quis desenterrar algumas dessas riquezas, escavando através da areia e dos séculos até chegar a um passado glorioso.”

Phillips escavou intensamente, sobretudo no Templo de Awwam, onde foi o primeiro a pôr a descoberto os tesouros do complexo de Sabá, expondo colunas altíssimas, um enorme recinto murado e uma necrópole onde jaziam sepultados 20 mil cidadãos do reino. As escavações revelaram que o templo datava do início do primeiro milénio antes de Cristo. Awwam, juntamente com Baran, tornou-se um dos sítios históricos mais generalizadamente conhecidos do Iémen, associado a colunas de pedra icónicas, figurinhas de bronze e alabastro e inscrições singulares.

Por fim, Phillips acabou por fugir de Marib devido a tensões crescentes com as autoridades e as tribos locais que o acusaram de incompetência, incumprimento nos pagamentos aos trabalhadores locais e tentativa de contrabandear artefactos. Phillips foi recebido, com relutância, pelos britânicos que controlavam Adém, a sul: mais tarde, o governador do protectorado britânico descreveu-o como “um indivíduo perigoso e sem escrúpulos”. O trabalho de Phillips no Templo de Awwam foi acompanhado por equipas arqueológicas europeias e norte-americanas, que continuaram a escavar sectores do sítio, descobrindo artefactos e inscrições pormenorizadas que transformaram Marib num dos mais populares destinos do outrora movimentado roteiro turístico do Iémen.

Na actualidade, os raros turistas que ali vão podem caminhar sozinhos pela areia protectora, varrendo-a com mão curiosa para revelar as pedras macias do chão do templo, polidas pelos peregrinos ao longo dos séculos. Também podem contemplar as esculturas de caprídeos que montam sentinela em grandes escadarias cerimoniais, bem como inspeccionar os contornos intrigantes das inscrições distintivas que se elevam e serpenteiam pelo recinto mais interior do santuário. Awwam parece místico. No entanto, os artefactos mais importantes do templo encontram-se actualmente no Museu Nacional em Sana, controlada pelos Houthi, encerrado devido ao conflito, ou a milhares de quilómetros de distância, em museus e colecções particulares no Ocidente e no golfo Pérsico. A última expedição ao Templo de Awwam, chefiada pela irmã de Phillips, Merilyn Phillips Hodgson, terminou em 2007, depois de um carro-armadilhado pela al-Qaeda ter explodido junto da entrada do sítio arqueológico, matando dois iemenitas e oito turistas espanhóis. Nos anos seguintes, uma base de estátua de alabastro com inscrições, com 2.300 anos, foi arrancada do chão do templo. Foi mais tarde vista numa leiloeira de Paris.

Os últimos 15 anos de negligência arqueológica, contudo, foram uma bênção para as antiguidades expostas nos santuários de Marib: no Templo de Awwam, dois a três metros de areia voltaram a enterrar zonas importantíssimas do recinto sagrado. “É melhor que esteja tudo enterrado. A areia é segurança”, conclui pesarosamente Sadeq al Salwi, director em Marib da Organização Geral das Antiguidades e Museus (GOAM), um organismo governamental iemenita.

Seguindo a rota das caravanas para sul e entrando na província de Shabwah e no reino de Qataban, antigo vizinho e rival de Sabá, encontramos a sua antiga capital, Timna. Situa-se a cerca de 60 quilómetros de Marib, em linha recta, mas a viagem de automóvel demora mais de três horas neste Iémen em estado de guerra. Eu e Ammar contamos os sinais com caveira e ossos cruzados que nos avisam sobre a presença de campos minados, enquanto ele conduz pela superfície de areia árida. Emergindo como figuras fantasmagóricas à beira da estrada, camelos mordiscam os arbustos. Esta zona mudou de mãos mais do que uma vez entre os Houthis e as forças da coligação durante o conflito. Os habitantes locais evitam falar mal de qualquer uma das partes, por não saberem quem controlará o seu território na próxima semana ou no próximo mês.

Em Timna, os danos causados ao património cultural do país são visíveis no expoente máximo de destruição. Durante a nossa caminhada através das ruínas da cidade, vemos fragmentos de cerâmica com dois mil anos e engenhos mais recentes: cartuchos usados de munições de AK-47 e de tanques, e os invólucros de latão das balas de calibre 50 das metralhadoras. Caixas vazias de munições jazem no chão de trincheiras escavadas nas ruínas do templo principal de Timna, consagrado a Athtar, um deus do trovão conhecido por ser vingativo. Os Houthis aproveitaram a vantagem táctica proporcionada pela posição elevada em que Timna foi construída, transformando a cidade num posto militar e, inevitavelmente, atraindo as bombas dos caças aéreos sauditas e dos Emirados.

O coração do Templo de Athtar foi rasgado ao meio, separando a pedra cinzenta dos tons azuis e vermelhos que costumavam distinguir Timna do calcário jurássico amarelo de Marib. Uma cratera com dez metros de diâmetro e três metros de profundidade é tudo o que resta do lado esquerdo do santuário. O gigantesco buraco aberto pelo ataque aéreo da coligação acentua o tamanho diminuto de duas crianças pequenas que pulam sobre pedregulhos projectados pela força explosiva do bombardeamento.

A Missão Arqueológica Italiana no Iémen fez escavações em Timna entre 1990 e 2005 e financiou o novo museu que ali foi construído e que se encontrava vazio quando partiram, dada a degradação das condições de segurança. O edifício apresenta-se juncado de escombros e as paredes rebentadas pela violência da batalha. Antes do mais recente período de instabilidade vivido no Iémen, os turistas estrangeiros chegavam todos os dias a Timna, segundo Abdallah Dawam, chefe dos guardas de segurança do sítio e nosso guia enquanto deambulamos entre as ruínas.

Em Timna, a estrutura inacabada e bombardeada de um museu é uma das três instituições deste tipo existentes na província que se encontram ao cuidado de Khyran al-Zubaidi, director da secção do GOAM em Shabwah. Existe outra em Bayhan, encerrada há 25 anos e mais uma em Ataq, capital da província de Shabwah. A dotação orçamental dada pelo governo aos três museus é de apenas 16.000 riyals iemenitas (menos de 18 euros) por mês.

À semelhança do seu colega Al Salwi em Marib, há mais de 35 anos que Khyran al-Zubaidi é arqueólogo no Iémen, desempenhando as funções de director das antiguidades de Shabwah desde 1986. A sua paixão pela história revela-se contagiosa, enquanto nos mostra o museu de Ataq.

Ahmed, filho do arqueólogo, com 32 anos, observa que a preocupação com o património cultural do Iémen ocupa um lugar muito baixo na lista de prioridades das autoridades. A falta de electricidade e de água, bem como as preocupações com segurança, são problemas maiores. “Mas isto está no seu coração”, diz Ahmed, referindo-se à dedicação do pai ao património do Iémen e pondo a mão sobre o peito. Uma coisa é certa: o arqueólogo não faz este trabalho pelo dinheiro. Mesmo com largas décadas de experiência, Al-Zubaidi recebe aproximadamente 95 euros mensais do governo iemenita, valor ligeiramente superior ao salário de um soldado.

Mais de 70% dos iemenitas necessitam de ajuda humanitária, num país que, antes da guerra, chegava a importar 90% dos seus alimentos (pagando em dólares). A fome está a ser utilizada como arma de guerra e a ONU tem repetidamente chamado a atenção para as crises de fome existentes no Iémen, embora os géneros alimentares abundem nos mercados. Um bloqueio efectivo imposto pela coligação anti-Houthi produziu o colapso das importações, bem como da divisa do país. Entretanto, os Houthis têm sido acusados de sabotarem a distribuição da ajuda internacional e de aumentarem vertiginosamente os impostos para financiarem o seu esforço de guerra. O preço de bens essenciais como o trigo, a farinha e o arroz aumentou 250%, enquanto o valor do riyal iemenita caiu quase 80% face ao dólar durante a guerra. Para agravar a situação, quase metade do trigo do país vem da Ucrânia e da Rússia. “As pessoas vendem qualquer coisa para encher a barriga e alimentar os filhos. É uma questão de vida ou morte”, diz Al-Zubaidi, referindo-se ao crescente problema do roubo de artefactos.

Nos seus próprios esforços para salvar objectos, ele tem deambulado pelos mercados locais, negociando para tentar resgatar para o museu o máximo de peças antigas que conseguir. No ano passado, usou o dinheiro do salário que o Estado lhe paga para oferecer aproximadamente 425 euros de recompensa por cerca de vinte peças que calcula datarem de 700 a.C., incluindo vários recipientes completos e figurinhas de alabastro. Ainda está à espera que o Estado lhe reembolse o valor pago pelos artefactos, actualmente expostos no museu. As pessoas que vendem estes objectos não conhecem o seu valor, observa o historiador. Mas que valor podemos nós atribuir à história, de modo a preservá-la para as gerações futuras, se as crianças do presente estão a morrer de fome? A sua pergunta fica por responder.

O achado mais importante de Al-Zubaidi, durante os seus anos de trabalho, ocorreu em Shabwath, capital do reino de Hadramawt. Foi um centro de distribuição do incenso ali produzido, famoso no seu apogeu. O xeque local, Hassan Rakna, conduz-nos, a mim e a Ammar, pelo meio das ruínas de Shabwath, fazendo uma pausa para descansar no topo de uma escadaria com dez metros de largura. Descreve então a descoberta de um assombroso leão alado com chifres de boi e cauda de serpente que foi encontrado no sítio. Juntamente com muitos dos mais preciosos artefactos de Shabwath, a peça foi armazenada num cofre do Banco Nacional de Adém, a 370 quilómetros para sudoeste.

A oito dias de viagem de camelo para sul de Shabwath, ao longo da antiga rota das caravanas, o pico aplanado de um vulcão extinto eleva-se centenas de metros acima das areias brancas, no ponto onde a península Arábica se encontra com o golfo de Adém. Subindo ao cume, podemos imaginar como seria este lugar há dois milénios: mercadores, carregadores e guardas aduaneiros no buliçoso porto real de Qana; navios com destino ao Egipto e à Índia, cheios de cargas preciosas anteriormente descarregadas das caravanas de camelos para os armazéns de rocha negra, cujos vestígios ainda pontilham a encosta da falésia.

No entanto, pode ser fugaz sonhar acordado sobre reinos desaparecidos neste lugar, uma vez que caravanas de carros blindados e carrinhas com metralhadoras e combatentes ainda deslizam a toda a velocidade pelas estradas asfaltadas, construídas sobre os trilhos das caravanas de Sabá.

Percorrendo a longa estrada que liga Shabwah a Adém, eu e Ammar vamos ao encontro de outra tempestade de areia e o som solitário de um oud faz-se ouvir através do rádio do carro. A melodia entrelaça-se com os versos do mais famoso poeta contemporâneo do Iémen, o falecido Abdallah al-Baraduni, cujas palavras mantêm relevância. “Nas cavernas da sua morte, o meu país nem morre nem recupera. Esgravata nas sepulturas silenciadas, em busca das suas origens puras”, lamentou Al-Baraduni. “Da sua promessa de Primavera que adormeceu atrás dos seus olhos. Do sonho que virá, em busca do fantasma que se escondeu.”

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