Minotauro

Moeda com a representação do labirinto. Século V a.C. Museu Nacional Romano, Roma.

O herói que mata o monstro representa o eterno conflito do Bem contra o Mal. A luta do herói Teseu contra o terrível Minotauro, um ser parte homem parte touro, transcendeu o tempo e chegou à modernidade.

Texto: Amaranta Sbardella

Teseu avançava silenciosamente pelos meandros do labirinto. Numa das mãos, levava uma arma e na outra o fio que Ariadne lhe dera. Na escuridão, descortinou uma silhueta sinistra, um ser com cabeça de touro num corpo de homem: o Minotauro. Impávido, lançou-se sobre ele e matou-o. Depois, escapou do labirinto graças ao fio da sua amada Ariadne e partiu com ela de regresso à sua pátria, Atenas.

Uma das histórias mais célebres da mitologia grega é a da luta que confronta o herói ateniense Teseu e o Minotauro, um monstro escondido no labirinto que o rei de Creta mandara construir para o encarcerar. Poetas, romancistas, pintores e escultores de todas as épocas imortalizaram este episódio. Muitos renderam-se ao fascínio dessa criatura metade homem metade touro e ao feitiço do labirinto, a complexa construção de Dédalo. Mas quem era realmente o Minotauro? E o que se esconde por trás do confronto entre o monstro cretense e o herói de Atenas?

O nascimento do Minotauro

O mito conta que sua a origem se encontra numa ofensa que Minos infligiu a Posídon, o deus dos mares. Minos era o monarca da ilha de Creta, uma poderosa potência marítima que dominou o Mediterrâneo até ser conquistada por guerreiros micénicos provenientes da Grécia. O rei cretense reclamava origem divina: era filho de Zeus e da princesa fenícia Europa. Esta casou-se com Astério, soberano de Creta, que adoptou Minos e os outros filhos que a sua esposa gerara com Zeus. Quando Astério morreu, Minos reclamou o trono e, para provar a legitimidade da sua exigência, pediu a Posídon que lhe enviasse um touro, que seria sacrificado em sua honra. O deus dos mares acedeu ao pedido, enviando o famoso touro de Creta, que emergiu das águas. Quando chegou o momento de o sacrificar, Minos, fascinado com a beleza do animal, perdoou-lhe a vida. Posídon enfureceu-se com o acto e prometeu vingar-se.

Minotauro

A solidão do monstro. Neste óleo de George Frederic Watts, o Minotauro transforma-se num símbolo dos instintos bestiais da civilização moderna, segundo declarou o próprio pintor. 1885. Tate Modern, Londres. 

Para tal, forçou a esposa de Minos, Pasífae, a apaixonar-se perdidamente pelo touro. Ansiosa por consumar a sua paixão, Pasífae implorou o auxílio do arquitecto ateniense Dédalo, que construiu uma vaca de madeira na qual a rainha entraria para que o animal se unisse a ela. Como fruto destes amores, nasceu um terrível monstro. Segundo conta Apolodoro, um escritor do século II d.C.: “Assim que ela deu à luz Astério, este foi designado por Minotauro: tinha rosto de touro, mas tudo o resto era humano.”

Minotauro

Disfarce de vaca. Esta pintura romana da Casa dos Vetti, em Pompeia, mostra Dédalo a ensinar à rainha Pasífae o disfarce da vaca com o qual se poderá ligar ao belo touro branco, objecto do seu desejo.

Horrorizado, Minos decidiu esconder o seu enteado, fechando-o no labirinto que Dédalo construiu para esse fim. Porém, isto não impediu que recorresse à ameaça do Minotauro para subjugar o povo de Atenas.

De facto, os atenienses carregavam uma terrível culpa, pois tinham executado um dos filhos de Minos, Androgeu. Por isso, o rei cretense exigiu a Egeu, o soberano de Atenas, um terrível tributo: de nove em nove anos deveria enviar para Creta catorze jovens, sete raparigas e sete rapazes, para os entregar como alimento ao sanguinário monstro.

Minotauro

Segundo Apolodoro, o Minotauro “tinha rosto de touro, mas o resto era humano”. Rhyton de estatite com formato de cabeça de touro, usado para libações. Museu Arqueológico de Heraklion, em Creta.

A certo momento, estava prestes a vencer-se novo prazo e Egeu tinha de enviar outro grupo de jovens com destino a Creta. Foi nessa altura que Teseu, filho do rei (ou, segundo uma variante do mito, filho do próprio Posídon), se ofereceu como voluntário para os acompanhar. Ao chegar à ilha, a bela Ariadne, filha de Minos, apaixonou-se por ele e, antes de Teseu entrar no labirinto para combater o monstro, deu-lhe um novelo (a ideia fora de Dédalo) para que conseguisse encontrar o caminho de volta: ela permaneceu à porta, segurando uma das extremidades do fio, enquanto o herói caminhava à procura do Minotauro, segurando o novelo, que se desenrolava à medida que avançava. Quando encontrou o Minotauro, matou-o, libertou os outros treze jovens atenienses sacrificados e fugiu com eles. Para tal, só teve de seguir o fio que deixara para trás. Por fim livre, Teseu zarpou com destino a Atenas, acompanhado de Ariadne. No entanto, durante a viagem, Teseu abandonou-a na ilha de Naxos, provavelmente distraído, ou então obrigado pelos ventos adversos ou talvez apaixonado por Fedra, a irmã mais nova de Ariadne que, anos mais tarde, e já sua esposa, o atraiçoou com o seu enteado Hipólito.

Um mito com muitas versões

Este resumo não é a única versão da história de Teseu, Ariadne e do Minotauro. Já se sabe que os mitos gregos são só uma espécie de esquema, um argumento que muda segundo as leituras dos artistas ou as reelaborações dos povos. Assim, a uma estrutura original sobrepõem-se variantes e ramificações e, com o passar dos séculos, o mito transforma-se, tanto que por vezes é difícil reconstruir o seu núcleo primigénio.

Minotauro

Ariadne entrega ao seu amado Teseu o novelo que lhe permitirá encontrar a saída do labirinto. Pelágio Palagi. Século XIX. Galeria de Arte Moderna, Bolonha.

O que se sabe na realidade é que a lenda do Minotauro circulava no mundo grego desde épocas remotas. Uma ânfora proveniente de Tinos, nas ilhas Cíclades, datada de 670-660 a.C., mostra o testemunho mais antigo do confronto entre o monstro e Teseu, embora aqui o Minotauro seja um ser com corpo de touro e cabeça humana. E um fragmento da obra da poetisa Safo de Lesbos certifica que, no início do século VI a.C., se contava a história do tributo de sangue que Minos exigia aos atenienses.

A partir destes e de outros dados, os peritos deduziram que o mito já seria popular no século VII a.C. Porém, algumas personagens, como Ariadne e o Minotauro, remontam a épocas mais remotas. Em representações antiquíssimas, o monstro parece estar num labirinto com o joelho dobrado e uma estrela.

Minotauro

O Minotauro. Cópia de uma escultura de Míron que decorava a Acrópole. Museu Arqueológico Nacional, Atenas.

O seu nome era Astério e tinha natureza divina, ligada a Hélios, o Sol, já que Pasífae, a mãe do Minotauro, era filha deste deus. Também Ariadne, originalmente, deverá ter sido uma deusa. Isto sugere que ambas as figuras, o Minotauro e Ariadne, provinham da antiga cultura cretense.

Com o tempo, todos os protagonistas da lenda foram integrados num mito propriamente grego que exaltava a figura de Teseu. A vitória sobre o Minotauro transformou-se numa das muitas façanhas com que os atenienses honravam este herói e a sua própria cidade, na altura um pequeno povoado da Ática. Segundo relata o historiador Plutarco, que dedicou uma das suas biografias a Teseu, foi ele quem unificou a região num só Estado com Atenas como capital. A partir de meados do século VI a.C., Teseu adquiriu cada vez mais relevância, e a sua lenda foi enriquecida com outras proezas incríveis. Contudo, a luta contra o Minotauro – a vitória sobre o “malvado monstro”, como lhe chamou o poeta Catulo – continuará a ser o episódio fundamental da trajectória do herói, ao mesmo tempo que simbolizava a irrupção de Atenas, vencedora da poderosa Creta, como nova potência emergente no Mediterrâneo.

Viagem para a morte

Do labirinto cretense, nada foi encontrado. Já foi argumentado que talvez estivesse no palácio de Cnossos e até que era o próprio palácio, um vasto conjunto com múltiplas divisões. Não é de estranhar que o seu descobridor, o arqueólogo britânico Arthur Evans, desse o nome de “minóica” à cultura que o construiu. Na realidade, o que importa no labirinto é o seu papel simbólico: com os seus enrevesados meandros, representa tanto as vísceras da Terra como a morte, que Teseu, tal como todos os heróis, deve enfrentar na sua viagem iniciática. Essa iniciação inclui a luta contra um monstro poderoso e agressivo: o Minotauro.

Mosaico Minotauro

Este mosaico encontrado na villa romana de Loigersfelder, perto de Salzburgo (Áustria), recria o mito de Teseu e da sua luta contra o Minotauro no labirinto. Museu de História de Arte, Viena. A opulenta Casa dos Repuxos da cidade romana de Conímbriga continha também um mosaico do Minotauromosaico do Minotauro.

Alguns frescos e estatuetas encontrados em Cnossos, que datam de 1700 a 1400 a.C., representam algumas personagens saltando por cima de touros num ritual denominado de taurocatapsia, provavelmente praticado em cerimónias e sacrifícios. O touro, símbolo de fertilidade em muitas religiões, era o animal sagrado dos minóicos e era morto de forma ritual com o machado duplo ou labrys, instrumento que se encontra na origem de uma das possíveis etimologias do labirinto: o “palácio do duplo machado”. Por outro lado, Zeus transformara-se em touro para raptar Europa, a mãe de Minos. Não é de estranhar, assim, que o monstro adoptasse a forma deste animal.

Depois de superado o combate iniciático, o jovem Teseu conseguiu regressar finalmente a casa, mas, talvez por distracção, esqueceu-se de arriar as velas negras da sua embarcação – o sinal combinado com o pai Egeu para anunciar a sua morte; em caso de vitória, Teseu deveria substituí-las por umas velas brancas.

Minotauro

A derrota do monstro. Esta ânfora ática do século VI a.C. mostra o final do combate entre Teseu e o Minotauro. A besta surge vencida perante o herói, que é observado pelos jovens atenienses libertados. Museu Britânico, Londres.

O rei viu ao longe o negro velame e, pensando que o monstro devorara o seu filho, lançou-se ao mar, que desde esse momento passou a chamar-se Egeu em sua honra. Desta forma, Teseu tornou-se rei de Atenas. O mito de Teseu legitimava a história: ao matar o Minotauro e ao destruir Minos, Teseu derrubou a civilização minóica, que dominava os mares. Durante a época clássica, os políticos que transformaram Atenas numa grande potência homenagearam continuamente o vencedor do Minotauro. Assim o fez o tirano Pisístrato e, quando a tirania acabou e Atenas recuperou a democracia, a cidade não renunciou ao seu mito nem ao seu herói. Péricles, o promotor das grandes construções da Acrópole (entre as quais o Pártenon), levou a cabo uma agressiva política marítima, algo que idealmente o contrapunha ao cretense Minos; segundo Plutarco, o general e político Címon empreendeu a busca pelos restos mortais do herói ateniense.

As lições do mito

Teseu foi tratado como um rei sensato e democrático, inclusivamente no teatro. Nas obras de Sófocles e de Eurípides, também não falta a presença do Minotauro, embora tenha um papel pequeno: na tragédia Os cretenses, Eurípides leva à cena a “louca doença” de Pasífae pelo touro branco e as suas consequências.

Os ideais democráticos atenienses que marcarão a história ocidental encarnam nesse rei que derruba o bárbaro domínio de Creta contra todas as expectativas. Em As suplicantes, também de Eurípides, Teseu afirma: “Muitas vezes, mostrei aos gregos este meu hábito: constituir sempre a pena dos maus.”E que criatura seria então mais malvada do que um monstro taurino sedento de sangue?

Minotauro

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O Minotauro, uma epopeia medieval

Durante a Idade Média, o tema do labirinto cristianiza-se e, em catedrais como as de Chartres ou Amiens, representa-se este motivo: é um lugar ao qual o homem é testado para encontrar a salvação. O Minotauro é associado ao mal. O confronto entre Teseu e o Minotauro representou-se em inúmeras obras, tal como a que se mostra nesta imagem, pintada sobre uma arca.

1 O Minotauro, aqui representado com torso humano e corpo de touro, ataca e assassina os cretenses.

2 Com a ajuda de Posídon, um grupo de homens armados consegue capturar o Minotauro e fecha-o no labirinto.

3 Teseu chega a Creta para salvar os compatriotas. Na embarcação, sete escudos representam os Médici.

4 O herói ateniense encontra-se com Ariadne, que se apaixona por ele, e com a sua irmã mais nova Fedra.

5 Ariadne entrega a Teseu um novelo para que este consiga escapar do labirinto depois de matar o monstro.

6 Teseu, que enverga uma armadura medieval, dirige-se para o labirinto para combater o Minotauro.

7 O herói mata o Minotauro. Ariadne e Fedra esperam por ele. Vê-se uma ponta do novelo; a outra está com Teseu.

8 O triunfante Teseu dirige-se ao porto para embarcar para Atenas acompanhado das duas princesas cretenses.

9 O navio parte, mas Teseu esquece-se de arriar as velas negras que anunciam a sua morte.

A lenda cretense manteve-se viva no imaginário ocidental, embora a cada época correspondessem protagonistas distintos e se extraíssem morais bastante diversificadas, consoante a ideologica de cada época. Atenas clássica preferiu Teseu; em Roma, os poetas Ovídio e Catulo contaram a dor de Ariadne abandonada. Durante a Idade Média, o labirinto foi o símbolo do pecado e do erro cometido pela alma, o do próprio Inferno, enquanto o Minotauro adoptou a silhueta do diabo. Durante o Renascimento, Lourenço de Médici celebrou o amor de Ariadne por Baco (ou Dioniso), que ficou cativado com a jovem abandonada em Naxos, e pintores como Ticiano também abordaram o tema.

A partir do século XIX, em contrapartida, reabilitou-se o Minotauro, apresentado agora como emblema dos prazeres terrenos, como um monstro atormentado e ingénuo ou como o bode expiatório de dois ambiciosos e cruéis monarcas, Minos e Teseu. Mas esse já é outro mito.

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