Termas de chaves

No complexo termal de Chaves, a Piscina A marca o início do tratamento. Era por aqui que os aquistas deveriam começar a sua saga. Fotografia de José Alfredo.

Em 2004, foram descobertas as famosas termas de Chaves. Viajamos pelas termas medicinais romanas de aquae flaviae.

Texto: Pedro Sobral de Carvalho
Ilustrações: Anyforms Design

Já passaram quase dois mil anos desde que Valério Servato chegou a Aquae Flaviae, uma das mais importantes cidades do Noroeste da Hispânia. Não sabemos se vinha doente ou ferido, mas a verdade é que dedicou um altar às ninfas e colocou-o no templo situado no exterior do edifício das termas da cidade.

Aquae Flaviae, actual cidade de Chaves, nasceu junto do rio Tâmega e da importante via que ligava Bracara Augusta (Braga) a Asturica Augusta (Astorga), ambas importantes capitais de província. Começou por ser apenas uma simples mansio (pousada) denominada Ad Aquae devido à proximidade de águas termais. A sua privilegiada localização, junto de terrenos muito férteis, das minas de ouro de Jales e de Tresminas (Vila Pouca de Aguiar) e, sobretudo, a existência de águas termais, foram os principais ingredientes para depressa se transformar numa importante urbe. Foi a essa cidade que Valério Servato chegou no século II. Tudo ali lhe lembrava Roma: o forum, imponente, dominava a cidade a partir do topo. As ruas, bem delineadas e com o típico traçado ortogonal, conduziam centenas de pessoas pelas tabernae (lojas), insulae (prédios) e domus (casas abastadas). Na base da encosta, junto da ponte recentemente concluída e hoje conhecida por Ponte de Trajano, encontrava-se o destino de Valério: as termas.

Em 2004, a intenção da autarquia de fazer um parque de estacionamento subterrâneo no Largo do Arrabalde obrigou a um diagnóstico arqueológico. Esses trabalhos, liderados por Armando Coelho Ferreira da Silva, abriram as primeiras janelas para uma das mais extraordinárias descobertas arqueológicas do passado recente em Portugal: as termas medicinais romanas de Aquae Flaviae. A sua importância levou a Câmara Municipal de Chaves a abandonar o projecto inicial e a investir, desde 2006, no seu estudo e valorização, transformando estas ruínas num dos locais de visita obrigatória para todos aqueles que gostam de viajar no tempo. Pouco a pouco, Sérgio Carneiro, o arqueólogo responsável pelos estudos, colocou a descoberto o mais bem preservado complexo termal romano da Península Ibérica.

Termas de Chaves

Em poucos locais do mundo existem pirgos como o que apareceu em Chaves (em cima e representado junto da criança, à esquerda), talvez justificado pelas circunstâncias abruptas com que o espaço chegou ao fim. Era um instrumento de jogo muito popular no Império Romano. Fotografia de Pedro Maia.

Termas de Chaves

Edificadas no século I d.C., as termas sofreram extensas obras de remodelação no início do século III. Na última década do século IV, um violento terramoto destruiu o edifício principal. Este episódio traumático para a cidade acabou por proporcionar condições excepcionais para a preservação dos vestígios arqueológicos. Após a derrocada da abóbada com dez metros de altura, as condutas de escoamento de águas ficaram entupidas, provocando a acumulação de uma lama negra, criando um ambiente húmido, estável e anaeróbico, que evitou a degradação da matéria orgânica e a oxidação dos metais, preservando um conjunto invulgar de peças de madeira e de metal.

Mais do que em qualquer outro lugar, os romanos puseram aqui à prova os seus vastos conhecimentos de engenharia. Todo o processo de construção das termas merece ser estudado. Após terem escolhido criteriosamente o local, retiraram as terras que o cobriam e impermeabilizaram-no com a colocação de camadas de opus caementicium (betão romano), deixando apenas três pontos de captação de água no solo.

Todos os materiais usados têm um sítio e uma funcionalidade específica: os tijolos nos tramos das cloacas que se localizam no exterior, a alvenaria de pedra ou opus quadratum sob a parede exterior dos edifícios, vários tipos de tijolos nas abóbadas e nos pavimentos, o mármore nas placas decoradas que revestiam as paredes e na estatuária, as tegulae (telhas romanas) nos telhados.

cabeça de mármore

Cabeça de mármore de uma jovem, cerca de 220-235 d.C. Fotografia de Pedro Maia.

As piscinas maiores são feitas de opus caementicium com pilares de reforço em opus quadratum (pedra) e revestidas por opus signinum (revestimento impermeável). Verdadeiramente admirável é o complexo e intrincado sistema hidráulico de escoamento e de abastecimento das águas que ligam os pontos de captação, a três metros de profundidade, às piscinas.

Junto da Piscina A, encontra-se uma singular obra da engenharia hidráulica: o castellum aquae. Trata-se de um reservatório a partir de onde se distribuía a água pelas piscinas A e C que era captada de um poço localizado a sul do edifício. Depois de ser filtrada por uma camada de areia no fundo, a água era então conduzida às piscinas. Havia igualmente um sistema de esvaziamento das piscinas B e C quando estas tinham de ser limpas ou reparadas.

O espaço recentemente musealizado privilegia o aspecto das termas no século III. Este é marcado por duas enormes piscinas, a piscina A com 13,22 metros de comprimento e a Piscina B com 13,98 metros. Estas dimensões invulgares prendem-se com o facto de se pretender arrefecer a água que brota do solo a quase 70°C de temperatura. A temperatura deveria ser mais quente na Piscina B, sob a qual existe uma das nascentes. E de tal forma seria quente que foi necessário colocar um estrado de madeira assente em pilares de granito para evitar que os aquistas queimassem os pés.

termas de chaves

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Chegado à entrada do edifício, Valério Servato desceu a escadaria que dava acesso a um grande pátio (palaestra) onde descansavam alguns utentes, muitos dos quais sentados no longo banco encostado a uma das paredes. Daqui, virou à esquerda, ultrapassou um corredor com colunas toscanas e entrou, finalmente, numa sala que dava acesso às várias piscinas. Aqui, despiu-se e dirigiu-se, primeiro, à Piscina A. Poisou a toalha num dos bancos dispostos à entrada, talvez tenha desviado momentaneamente o olhar para a grande abóbada que cobria a sala e, descendo alguns degraus, entrou na água.

O resto da tarde de Valério foi passado entre as várias piscinas do complexo e no convívio com outros aquistas com quem talvez partilhasse as maleitas de que padecia. No final do dia, ao sair, dirigiu-se ao pequeno templo (ninfeu) que existia no exterior e aí colocou um altar dedicado às ninfas como prece pela cura.

Um dos mais extraordinários resultados dos trabalhos arqueológicos é o conjunto de peças aqui recolhidas e invulgarmente bem conservadas, com destaque particular para as peças que se encontravam nos lodos selados pelos escombros da ruína da abóbada e nas condutas de escoamento de águas.

De facto, tal como aconteceu em Pompeia na sequência da erupção do Vesúvio, o sismo que aqui aconteceu no século IV soterrou uma mulher e um jovem com 12 anos que se encontravam junto da Piscina A. Nessas lamas, foram preservadas peças de madeira, vime, osso e metal, muitíssimo bem conservadas.

termas de chaves

Apesar de as termas serem um local destinado ao lazer e ao tratamento de saúde, tinham também uma compo- nente religiosa. O ninfeu era o templo consagrado às ninfas e onde muitos aquistas deixavam altares e outras mensagens agradecendo a intervenção divina no seu tratamento. Em cima, pormenor da cabeceira. Fotografia de José Alfredo.

Destacam-se os pentes de madeira de buxo, taças de madeira, uma ampulla (cantil), uma garrafa de vidro com revestimento de cestaria e isolamento de cortiça, rolhas, cossoiros, alfinetes de osso para cabelo, pulseiras de bronze, contas de colar de cornalina e azeviche, pinças, espátulas e lígulas para higiene pessoal, instrumentos relacionados com a escrita, como estiletes de bronze, facas de afiar cálamos e uma caixa de selo, usada para fechar a correspondência.

Os estudos arqueobotânicos desenvolvidos em laboratório pelo grupo Envarch – Environmental Archaeology, ligado ao Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, foram ainda mais longe. Determinaram 138 sementes ou frutos como nozes, pêssegos, castanhas, caroços de cereja, ameixas, abrunhos, azeitonas, pinhas de pinheiro-bravo e pinheiro-manso. A maioria destes frutos foi introduzida pelos romanos e era, assim, consumida no balneário. De referir, igualmente, a presença de um gálbulo de cipreste-italiano, a primeira evidência desta espécie no Ocidente peninsular.

As análises aos galhos, caibros e estacas de madeira utilizados na construção do edifício, comprovaram um dado inédito: são prova inequívoca de que os romanos tinham práticas de poda e de gestão florestal no sentido de tornar as árvores mais altas e rectas, mais adequadas à sua utilização para a construção.

De todas as peças encontradas, uma merece referência especial: o pirgo ou turrícula. Trata-se de uma pequena torre de bronze com degraus no interior que servia para lançar os dados de maneira a que o resultado fosse o mais aleatório possível, ou seja, para evitar que os jogadores fizessem batota. Por cima do arco por onde saíam os dados, podemos ler uma inscrição recortada na chapa de bronze que diz: Bem como correndo das barreiras por vezes a quadriga rola, assim também o dado lançado cai pelas escadas do pirgo. Feito na oficina de Sorico. Usai com sorte.

O terramoto, de que aliás ficou notícia na crónica do bispo Idácio, pôs um fim abrupto a este espaço. Mais tarde, a proclamação do cristianismo como religião única do Império Romano antecipou o ecerramento dos templos pagãos e, claro, a perseguição de todas as heresias associadas. As termas de Aquae Flaviae estariam certamente ainda à vista, mas foram destruídas ou reaproveitadas. O que antes fora sagrado era agora mero material de construção de edifícios ou pavimentos. E um manto de neblina começou a cobrir esta rica história da Antiguidade.

No século XIV, o sítio foi usado durante o cerco da vila e há até um relato que descreve a colocação de uma catapulta no local. Após o processo de restauração da independência, as fortificações flavienses foram reforçadas e foi construído um meio-baluarte, voltando a usar materiais de construção deste espaço. A terraplenagem do terreno no século XIX apagou por fim a memória... até 2004.

Estas e muitas outras narrativas podem ser descobertas na visita ao Museu das Termas Romanas no centro de Chaves, recentemente inaugurado. É um espaço onde as ruínas têm sentido e onde nos apercebemos do engenho e capacidade dos romanos. É, sem dúvida, um dos mais emblemáticos monumentos da época romana existente em Portugal com visita obrigatória.

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