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No estreito de Smith, a norte de Baffin Bay, o Polaris soltou-se abruptamente do gelo, deixando 19 membros do grupo encalhados numa banquisa. Andaram à deriva em condições extremas durante seis meses, percorrendo 2.900 quilómetros antes de serem resgatados junto a Labrador. Bertrand Rieger/GTRES

Falta de sorte ou inimizade podem ter causado a morte de Charles Francis Hall nesta desastrosa viagem ao Pólo Norte – mas o júri ainda não se pronunciou.

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À semelhança de grande parte do público americano e britânico de meados do século XIX, Francis Hall ficou fascinado pelos relatos da trágica expedição de Sir John Franklin de 1845 em busca da Passagem Noroeste, a mítica rota marinha árctica entre os oceanos Atlântico e Pacífico. A escala da perda - dois navios e 129 homens – e o mistério que envolve os destinos de Franklin e de sua tripulação levaram muitas expedições a partir em busca do desfecho da sua história.

“Hall era um homem profundamente excêntrico, talvez o tipo menos provável de se tornar um explorador do Árctico”, disse Russel A. Potter, professor na Rhode Island College. Hall tinha poucos anos de formação académica e vivia uma vida sossegada enquanto homem de família. Era um entalhador e editor modestamente bem-sucedido de Cincinnati, no Ohio, mas o seu interesse na demanda fatídica de Franklin transformou-se numa obsessão com o Ártcico e numa missão pessoal para encontrar sobreviventes.

Em finais da década de 1850, várias expedições tinham encontrado corpos e relíquias da tripulação de Franklin, diluindo as esperanças de encontrar alguém vivo. Apesar disso, em 1860, Hall, então com 39 anos, partiu do Ohio rumo ao Árctico em busca de eventuais vidas que ainda pudesse salvar.

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O Polaris ficou preso no gelo no regresso da sua exposição polar, aqui representada numa pintura a óleo de William Bradford, de 1875. Taubman Museum of Art, Roanoke, Virginia

Vítima Charles Francis hall

Hall empreendeu duas viagens até ao Árctico durante a década de 1860. Não encontrou sobreviventes do grupo de Franklin, mas viveu entre o povo Inuit durante quase oito anos e documentou a sua cultura mais do que qualquer outra pessoa fizera antes.

Quando regressou a Washington D.C. em 1869, Hall tinha os olhos postos em alcançar o Pólo Norte, missão que substituíra a Passagem Noroeste como principal objectivo dos exploradores do Árctico. Para além dos custos associados a encontrar a passagem, muitos acreditavam que nunca viria a ser uma via de navegação comercial viável. Hall exerceu influências para levar a efeito a sua expedição, conquistando o apoio do presidente Ulysses S. Grant.

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Nesta ilustração, Hall posa com duas pessoas Inuit na sua primeira viagem ao Ártico, entre 1860 e 1862. British Library/Album

O Congresso autorizou a atribuição de 50.000 dólares à viagem, que assim se tornou a primeira exploração árctica inteiramente financiada pelo governo federal. Um navio a vapor impulsionado por hélices usado pela União na guerra civil foi adaptado para o gelo árctico. O casco foi reforçado com carvalho e a proa foi revestida a ferro. Rebaptizado USS Pollaris, o navio zarpou de Nova Iorque no dia 29 de Junho de 1871, com uma tripulação de 25 elementos, entre os quais se encontravam os guias Inuit Ipirvik a sua mulher Taqulittuq, bem como o seu filho pequeno. Na Gronelândia, o guia Inuk e caçador Hans Hendrick e a sua família juntaram-se à tripulação.

Lutas de poder do Polaris

Hall sabia como sobreviver no Ártico, mas não como gerir uma expedição a sério. Era um comandante sem patente militar ou naval e um capitão sem qualquer experiência de navegação. Por fim, Sidney O. Budington assumiu o papel de navegador, com George E. Tyson como seu adjunto. O comando do navio foi dividido entre os três.

Outra fonte de conflito surgiu pouco depois sob a forma de uma equipa científica alemã que viajava igualmente a bordo, liderada pelo cientista e cirurgião Emil Bessels, de 24 anos, licenciado na faculdade de medicina da universidade de Heidelberg. Bessels e os alemães tinham pouco respeito por Hall devido à sua escassa formação académica.

Após um mês de navegação, a tensão e os conflitos aumentavam. Como Tyson escreveu mais tarde, “alguns membros do grupo parecem determinados a ser do contra e, se Hall quiser que uma coisa seja feita, é exactamente isso que eles não fazem. Neste momento já existem dois ou mesmo três grupos a bordo”.

Morte súbita

Entretanto, o Polaris avançou, alcançando a latitude de 82° 29’ N e tornando-se o primeiro navio da história a navegar até um ponto tão a norte. Contudo, não avançaria mais do que isso. Obrigado a voltar para trás pelo gelo do mar de Lincoln, o Polaris passou o Inverno no noroeste da Gronelândia, num local a Hall chamou “Thank God Harbor”, cerca de 800 quilómetros a sul do Pólo.

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Caso arquivado? O caixão de Hall aparece embrulhado numa bandeira dos E.U.A. nesta gravura de 1880, que mostra o cortejo funerário caminhando sobre o gelo. DEA/Scala, Florença

No dia 24 de Outubro de 1871, Hall regressou de uma viagem de trenó de duas semanas que empreendera rumo a norte. Bebeu uma chávena de café e ficou gravemente doente com sintomas que incluíam delírio e paralisia parcial. Bessels diagnosticou a sua condição como apoplexia (um AVC).

Entretanto, Hall insistia que Bessels estava a tentar envenená-lo. Chegou a proibir o médico de se aproximar da sua cama entre 29 de Outubro e 4 de Novembro e a sua saúde piorou durante esse período. Então, Hall permitiu-lhe que retomasse os tratamentos. Parecia melhor, tendo chegado a dar um passeio no convés, quando teve uma recaída e morreu no dia 8 de Novembro de 1871. O seu corpo foi enterrado nas proximidades.

Náufragos árticos

Budington, agora líder do navio, não tinha qualquer interesse em alcançar o Pólo Norte, referindo-se ao esforço como “raio de ideia de loucos”. Quando o gelo derreteu, permitindo a navegação, o navio dirigiu-se para sul, a 12 de Agosto de 1871. Dois meses mais tarde, quando o Polaris bateu num iceberg submerso, Budington ordenou que a carga fosse atirada borda fora, para o gelo, de modo que o navio conseguisse flutuar.

Nessa noite, 19 membros da expedição, incluindo Tyson e todos os Inuit, encontravam-se na plataforma de gelo ali perto quando esta se partiu subitamente. Na escuridão da noite, o navio libertou-se, deixando os encalhados sobre a banquisa. Pouco depois, o navio com 14 elementos da tripulação (incluindo Budington) perdeu o contacto com o grupo que ficara na banquisa. À deriva durante mais de seis meses, o grupo foi resgatado por um navio baleeiro ao largo da costa de Labrador. Se não fossem os Inuit que estavam com entre eles e caçaram na borda da plataforma, não teriam sobrevivido.

Entretanto, os 14 sobreviventes do Polaris experienciaram a sua própria odisseia. Com as provisões de carvão a aproximarem-se do fim, Budington decidiu atracar o navio junto a Etah, na Gronelândia. A tripulação construiu uma cabana no local e os Inuit locais ajudaram-nos a sobreviver ao Inverno. Depois, a tripulação construiu dois barcos de madeira retirada do Polaris e navegou rumo a sul. Foram resgatados no dia 23 de Junho de 1873 por um navio baleeiro ao largo de Cape York.

Motivos para homicídio

A Marinha abriu um inquérito sobre a morte de Charles Francis Hall, mas devido aos testemunhos contraditórios e na ausência de um corpo para submeter a uma autópsia, não houve quaisquer acusações. Havia claramente poucos incentivos para acrescentar um escândalo a um desfecho já de si desastroso.

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A terrível odisseia de 6 meses da tripulação da Polaris, encalhada na banquisa de gelo, é retratada nesta ilustração de 1876. Sem a ajuda dos Inuit, que construíram abrigos e caçaram alimento, todos teriam morrido. Biblioteca Ambrosiana/DEA/Getty Images

Quase um século após a morte de Hall, o historiador do Árctico Chauncey C. Loom decidiu investigar o mistério, publicando o livro Weird and Tragic Shores: The Story of Charles Francis Hall. Em 1968, Loomis mandou exumar o corpo de Hall. Análises revelaram que ele ingerira grandes doses de arsénico nas 2 semanas anteriores à sua morte. O arsénico era comum entre os conjuntos de cuidados médicos da altura, mas nunca era administrado em tais quantidades. Loomis considerou Budington, que temia a viagem para o norte, como suspeito do crime. Contudo, o arsénico fora administrado para simular uma apoplexia, algo que Budington não saberia como fazer.

Loomis concluiu que Bessels era o único com o conhecimento necessário para assassinar Hall, mas faltava-lhe um motivo concreto. Bessels desgostava abertamente de Hall, que retribui-a o favor chamando-lhe “o pequeno mestre de dança alemão”. No entanto, para Loomis, essa antipatia não era motivo suficiente para um homicídio.

Outra prova surgiu em 2015, quando Russell Potter, o professor de Rhode Island College, encontrou um envelope datado de 23 de outubro de 1871, endereçado por Hall a Miss Vinnie Ream, de 24 anos, uma artista talentosa a quem fora encomendada uma estátua de Abraham Lincoln quando tinha 18 anos. Antes de partirem a bordo do Polaris, Hall e Bessels socializaram com Miss Ream em Nova Iorque.

Potter sabia que houvera correspondência trocada entre Ream e Bessels que sugeria uma ligação amorosa. Miss Ream também enviou um busto de Lincoln a Hall, que este colocou na sua cabine a bordo do Polaris. Potter teoriza que um triângulo amoroso poderá ter estado na origem da morte de Hall. “O motivo adicional para Bessels dá força ao caso”, diz Porter, “mas sem uma máquina do tempo, acho que nunca será 100 por cento resolvido”.

Antecessores do Polaris

Antes da viagem do Polaris, outros tinham explorado possíveis rotas para o Pólo Norte passando pelo noroeste da Gronelândia e a Baía de Baffin. Em 1852, o britânico Edward Inglefield descobriu que o estreito de Smith era navegável. Em 1853, o americano Elisha Kent Kane liderou uma expedição para descobrir sobreviventes do grupo de Franklin. Descobriu o canal Kennedy entre Ellesmere Island e a Gronelândia, que foi mais tarde navegado por outros em busca do Pólo Norte. Em 1860, o americano Isaac Israel Hayes tentou alcançar o Pólo Norte, mas também nunca regressou.

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