Nascimento do Gótico. A primeira estrutura completamente gótica da Europa, a Basílica de Saint-Denis, junto a Paris, foi construída sob a direcção do Abade Suger em meados do século XII. Grandes janelas com vitrais, possibilitadas pelos avanços da engenharia, criam um jogo de luz colorida no interior. Fotografia de Alamy/ACI.
Em muitas cidades medievais, a vida girava em torno da construção de uma catedral, uma gigantesca tarefa que implicava um trabalho de gerações de todo o tipo de pessoas, desde artistas e arquitectos a prisioneiros de guerra.
Texto: Miguel Sobrino González
As catedrais góticas podem frequentemente tirar o fôlego a quem as vê. As pessoas ficam maravilhadas pelos deslumbrantes vitrais, os tectos altíssimos e as maravilhas da engenharia. Outros visitantes podem ficar tão comovidos que têm necessidade de o exprimir por palavras, como o cineasta americano Orson Welles, que descreveu, em tempos, a catedral francesa de Chartres, como “uma rica floresta de pedra, um canto épico, uma alegria, uma grandiosidade, um grito de afirmação em coro”.
Construídos entre os séculos XII e XVI, estes edifícios altos e sagrados encontram-se hoje entre as principais atracções turísticas da Europa, desde Notre-Dame de Paris, em França, à Catedral de Cantuária, em Inglaterra. Atraem pessoas vindas de todo o mundo para admirar as suas esculturas intricadas, arcos quebrados e o casamento entre a luz e o ar.
O gótico é, possivelmente, o estilo mais icónico da arquitectura cristã da Europa. Surgiu pela primeira vez em França no século XII e espalhou-se pelo continente. É por vezes, descrito como a derradeira expressão do espírito medieval, reflectindo uma sociedade tão fixada no céu que desenvolveu arcos quebrados e arcobotantes para recriar o Reino de Deus.






Embora seja, certamente verdade que foi um profundo fervor espiritual que inspirou estes projectos, as catedrais góticas também foram criadas por forças mundanas. Demorando séculos a completar, exigiam financiamento dedicado, apoio político e uma força de trabalho qualificada. A forma como as catedrais góticas foram construídas dá informação aos historiadores não apenas sobre a organização das sociedades medievais mas dizem-lhes também que estes edifícios foram moldados pelo carácter, pela economia e pelos recursos naturais disponíveis nos locais onde se ergueram até ao céu.
Poder e prestígio
O termo “catedral” evoluiu tornando-se numa espécie de descrição genérica para igrejas grandes e grandiosas. A sua definição técnica é uma igreja que guarda uma cathedra (“trono do bispo” em latim). Uma das primeiras catedrais da Europa é a Basílica di San Giovanni in Laterano, do século IV, em Roma, assento do papa na sua função de bispo de Roma.
Trabalho em Curso. As catedrais poderiam permanecer parcialmente inacabadas durante décadas, como se vê neste quadro do século XV de Dordrecht, nos Países Baixos. Imagem de Album.
As catedrais não eram usadas apenas para celebrar ritos cristãos. tornaram-se também centros de poder político durante a Idade Média. No interior do espaço sagrado ocorria uma boa quantidade de gestão do dia a dia. O capítulo (formado pelos cónegos ou padres da catedral) encontrava-se para discutir assuntos diocesanos no coro da catedral, um espaço dedicado à oração noutras ocasiões. Também administravam os fundos da catedral resultantes das rendas e impostos locais que cobravam. Parte deste dinheiro era igualmente canalizado para a comunidade sob a forma de melhorias como hospitais, estradas e pontes.
De certa forma, a catedral era o equivalente medieval a um fórum público. Os mercadores usavam as catedrais como locais para se encontrarem com clientes e fecharem negócios. Os membros das guildas negociavam aqui. Lojas e negócios surgiam colados às paredes exteriores e as primeiras universidades funcionavam dentro dos complexos catedralícios. Membros do conselho municipal reuniam-se na catedral e, por vezes, a justiça era administrada nas suas portas.
Este papel estabelecera-se muito antes da época gótica. As monumentais catedrais de pedra são anteriores ao gótico. Foram construídas num estilo conhecido como românico e emergiram no século XI graças às riquezas trazidas para as cidades europeias pelo nascimento de uma rede alargada de rotas de peregrinação.
Uma miniatura do século XV mostra as diferentes fases de construção de uma catedral. Imagem de Granger/Album.
O gótico emergiu do românico (que se distinguia pelos seus arcos de volta perfeita) e assentou num outro estilo visual, desenvolvido no mundo Islâmico: arcos quebrados, capazes de suportar mais tensão do que os redondos. Esta técnica permitia que as paredes se elevassem mais do que nunca. Apontando o olhar para o céu, o arco quebrado ajudava a enfatizar a altura das naves e o seu uso conduziu ao desenvolvimento de outra característica essencial do gótico: abóbadas nervuradas no tecto.
Os arcobotantes são, possivelmente, o avanço arquitectónico mais icónico do gótico. Estas estruturas são construídas no exterior da catedral e ajudam a distribuir o peso dos tectos e das estruturas superiores. Isto, por sua vez, faz com que as paredes da catedral possam ser mais finas e perfuradas por grandes janelas de vidro, permitindo a entrada de mais luz e ar no interior do edifício.
O edifício geralmente considerado a primeira estrutura verdadeiramente gótica é a Basílica de Saint-Denis, perto de Paris, partes da qual foram concluídas em meados de 1100. A partir daí, o estilo gótico espalhou-se por França, e em seguida, Espanha, Itália, Alemanha, Países Baixos e Inglaterra.
O mestre construtor dirige os pedreiros num azulejo decorativo em relevo do século XIV. Imagem de Ponte/ACI.
Foram necessários séculos para construir estas igrejas altíssimas. Um artesão podia começar a trabalhar no projecto e não viver para assistir à sua conclusão. A construção de Notre Dame de Paris, em França, demorou quase dois séculos, de 1163 a 1345. Na cidade alemã de Colónia, a construção da magnífica catedral gótica arrancou em 1248 e os seus icónicos pináculos gémeos só foram terminados no século XIX, mais de 600 anos depois.
A importância do local
As catedrais surgiram por diversas razões. Crê-se que Santiago de Compostela, no noroeste de Espanha, é o local de descanso de Santiago Maior, o santo patrono de Espanha. Outras estruturas góticas foram construídas para alojar tesouros sagrados, como a Sainte-Chapelle, em Paris, que foi encomendada pelo rei Luís IX para guardar relíquias sagradas da Paixão. Uma grandiosa catedral com fortes laços sagrados poderia atrair peregrinos a uma cidade, trazendo-lhe comércio e atenção. As catedrais eram frequentemente construídas sobre estruturas mais antigas. Por vezes, a intenção era enviar uma mensagem. Algumas catedrais de Espanha, como a catedral de Toledo, do século XIII, foram construídas no antigo local de mesquitas para transmitir o simbolismo de que Espanha era agora um país cristão.
Na ilustração vêem-se as gruas, uma inovação utilizada na construção de catedrais góticas. Imagem de Bridgeman/ACI.
As catedrais góticas substituíram frequentemente estruturas cristãs mais antigas. Na cidade francesa de Amiens, por exemplo, a catedral gótica do século XIII substituiu a estrutura românica anterior, que fora consumida pelo fogo. Quando um incêndio destruiu o coro da Catedral de Cantuária, em Inglaterra, em 1174, a parte danificada do edifício foi reconstruída em estilo gótico na década seguinte. Um exemplo invulgar de uma catedral que foi realojada para outra parte da cidade é a de Segóvia, em Espanha. No século XVI, depois de a catedral antiga ser destruída por uma revolta regional, uma grande estrutura do gótico tardio foi erigida no antigo bairro judeu, onde, devido à recente expulsão dos judeus, havia terrenos disponíveis e a preços acessíveis.
A aquisição e o transporte de materiais necessários à construção de uma catedral traria riqueza e importância estratégica às cidades. A catedral espanhola de Sevilha, cuja construção começou em 1401, é a maior estrutura gótica do mundo. As autoridades da igreja instalaram uma enorme grua no porto ribeirinho de Sevilha para descarregar os blocos que chegavam da pedreira situada a jusante, junto à costa. A grua tornou-se uma fonte de rendimento para a igreja (que a alugava a outros mercadores) e foi um estímulo que ajudou a transformar a cidade numa potência naval e comercial.
Os recursos locais também tinham impacto dramático na aparência exterior de uma catedral. A disponibilidade local de mármore em Itália determinou o aspecto de muitas catedrais italianas. A catedral gótica de Siena, por exemplo, está revestida a mármore colorido que lhe confere um acabamento dramático.
Artesãos de catedrais
Por detrás do fervor religioso que inspirou as catedrais góticas, havia realidades que tinham de ser geridas para erguer aqueles projectos enormes e, frequentemente, multisseculares. As autoridades tinham de recrutar e gerir engenheiros, artistas, artesãos e operários, bem como assegurar e transportar as matérias-primas até ao local. Tratar de tudo isto e manter o projecto a funcionar exigia muita vontade política e muito dinheiro.
Na pedreira. Trabalhadores extraem pedra numa ilustração do século XV da enciclopédia “Das Propriedades das Coisas”, de Bartholomaeus Anglicus. Imagem de AKG/Album.
A arquitectura românica, que precedeu a gótica, podia ser desenvolvida por grandes equipas de operários relativamente pouco qualificados. A construção gótica, por outro lado, exigia grupos mais pequenos de artesãos profissionais com bastante prática. Por vezes eram usados trabalhadores escravizados, geralmente prisioneiros de guerra. A maioria dos construtores de catedrais recebiam pagamento condigno e até gozavam de privilégios como isenção fiscal. Era-lhes frequentemente oferecido alojamento e conhecem-se exemplos de trabalhadores que organizaram greves e protestos contra salários baixos ou más condições de trabalho.
Cada grupo de trabalhadores era liderado por um mestre construtor que agia como primus inter pares — primeiro entre iguais. O mestre estava encarregue dos aspectos práticos do dia a dia: modelar os blocos de pedra em forma de cunha utilizados para construir um arco ou esculpir um relevo e também tinha de projectar, gerir, dirigir e coordenar a equipa. Um mestre construtor experiente poderia afastar-se do trabalho manual para dar instruções a partir dos andaimes – um hábito que poderia provocar ressentimento. Outra figura essencial, o capataz, trabalhava ao nível do mestre construtor, mantendo a qualidade, assegurando que o projecto não excedia o orçamento e que os prazos eram cumpridos.
Materiais de construção. Trabalhadores carregam uma carroça com pedra transportada para Paris pelo rio numa miniatura do século XV das Ordenações do Reitor dos Mercadores de Paris. Imagem de Kharbine Tapabor/Álbum.
Até um terço dos trabalhadores da catedral eram mulheres. Embora geralmente assumissem funções auxiliares, transportando materiais ou misturando argamassa, há algumas evidências de mulheres que foram mestres construtoras. Na cidade espanhola de Cuenca existem registos sobre uma mulher chamada Maria, que dirigia a oficina de vitrais. No século XIII, em Estrasburgo (então parte do Sacro Império Romano e hoje parte de França), crê-se a porta da catedral da cidade foi criada pela escultora Sabina von Steinbach, embora alguns historiadores afirmem que ela poderá ser uma figura lendária.
Depois de o local ser escolhido e desimpedido, o mestre construtor media e assinalava a planta no solo e eram escavadas as fundações. Embora os projectos de arquitectura fossem feitos com antecedência, o processo de construção tendia a ser dinâmico, com muitas catedrais a adaptarem e a improvisarem sobre os planos originais à medida que novas técnicas se tornavam disponíveis. Fontes mostram que, quando surgiam problemas técnicos durante a construção, o mestre construtor reunia-se com outros responsáveis para trocar ideias e decidir como deveria avançar o trabalho. Alguns destes conclaves estão bem documentados, como aqueles que aconteceram na cidade espanhola de Girona, onde a ideia audaciosa de tentar construir uma nave extraordinariamente grande foi proposta e veio a ser adoptada. Daqui resultou o edifício com a maior nave gótica do mundo.
Ferramentas do ofício. Numa miniatura do século XV, um artesão verifica o ângulo de um bloco com um esquadro. Na outra mão, segura um martelo de talhar pedra. Imagem de Granger/Aurimages.
Durante a construção da catedral de Milão, em Itália, houve várias reuniões nos séculos XIV e XV para encontrar soluções de engenharia para os trabalhos em curso. O próprio Leonardo da Vinci apresentou algumas propostas. Em Milão, bem como noutros locais, os projectos de arquitectura utilizados como guião não eram tão pormenorizados como os projectos de épocas mais recentes, deixando muitos aspectos abertos a discussão. O processo de desenho era essencialmente prático, baseando-se mais na utilização de compassos, esquadros e experiência daquilo que tinha funcionado no passado do que em cálculos abstractos.
Os trabalhadores precisavam de um conjunto de maquinaria e ferramentas manuais para executarem diferentes tarefas especializadas, desde esculpirem pormenores na pedra a transportar e içarem materiais pesados. Vários avanços tecnológicos surgiram na Europa pela primeira vez neste período, nomeadamente a grua rotativa, o carro com rodas de metal, diversas máquinas de corte e o humilde, mas importantíssimo, carrinho de mão. Os carpinteiros eram um apoio essencial, fazendo andaimes e cimbres (armação de madeira que sustentava arcos e abóbadas durante a construção).
Danos e atrasos
Como muitas catedrais procuravam inovar com formas e estruturas que nunca se tinham tentado construir anteriormente, os seus construtores tinham de correr riscos. Embora fossem usados modelos ou desenhos parciais em escala real, chamados “montagens”, por vezes não havia como saber se um edifício iria manter-se em pé quando os andaimes que sustentavam temporariamente os telhados fossem removidos. Algumas das estruturas mais ousadas desabaram ou, pelo menos, tiveram de ser reforçadas.
As cúpulas, sobretudo as encimadas por pesados zimbórios, eram particularmente precárias. As naves poderiam oscilar quando as dimensões excediam aquilo que era suportável pela física. Na cidade francesa de Beauvais, a abóboda por cima do coro, junto ao altar principal, desabou no final do século XIII, tendo sido necessário duplicar o número de pilares. Assim que o transepto foi concluído, o projecto foi interrompido e nunca chegou a ser terminado.
Catedral de Reims. A Catedral de Reims figura no caderno de desenho do arquitecto francês Villard de Honnecourt, numa secção sobre o século XIII. Imagem de BNF/Rmn-Grand Palais.
Catedral de Coutances. Planos para a estrutura do século XIII da Normandia, em França, mostram a sua altura ambiciosa. Imagem de Médiathèque de L'architecture et du Patrimoine/RMN-Grand.
Trabalhadores da catedral de Palma de Maiorca, em Espanha, que é quase tão alta como a de Beauvais, inventaram um sistema de contrapesos, instalado sob o telhado, que permitiu terminar com sucesso a enorme nave da catedral. Em Amiens, no norte de França, foi construído um anel de capelas laterais para reforçar a enorme secção central da catedral. No entanto, nem estes esforços eram suficientes. O mestre pedreiro do rei de França, Pierre Tarisel, foi chamado para acrescentar reforços. Por volta de 1500, concebeu uma solução que suporta a igreja até à data: uma corrente em ferro forjado que contorna grande parte da catedral.
Os planos ambiciosos eram frequentemente prejudicados por falta de fundos. Era comum o trabalho de construção de uma catedral ser interrompido antes de ser concluído devido a problemas de orçamento e não de construção. No sudoeste de França, a catedral gótica de Narbonne foi deixada a meio depois de a cidade ter entrado num período de agitação económica e política. Algumas catedrais semiacabadas podem transmitir a imagem chocante de uma pequena igreja mais antiga a ser engolida pelas mandíbulas de uma igreja muito maior, mais nova e inacabada, como a catedral de Beauvais. Na cidade italiana de Siena, uma grande ampliação planeada para a nave da catedral nunca foi concluída e as paredes e arcos inacabados ainda fazem parte do horizonte urbano.
Ascensão do Gótico.
Construir uma catedral gótica criava uma paisagem complexa, sobretudo se fosse construída para substituir uma igreja românica mais antiga, que era demolida. Os pedreiros trabalham numa estrutura temporária na base do edifício. Utilizam uma forja para fabricar e reparar as ferramentas. A catedral situa-se perto da muralha da cidade e de uma praça onde há mercadores e lojas. Está ligada ao palácio do bispo por uma ponte suspensa. Os trabalhadores escavam valas para as fundações enquanto os escultores esculpem estátuas em volta da base do edifício ou talham pormenores na pedra. Ali perto, uma grua iça materiais de construção e os andaimes fornecem apoio aos trabalhos em curso na catedral em construção.
Ilustração de Miguel Sobrino González.
Espírito clássico
O gótico não teve em Itália tanto a mesma influência que em outras partes da Europa ocidental. O advento do Renascimento em Itália, no século XV, deu origem a um novo estilo de construção de catedrais que rapidamente faria com que o gótico parecesse antiquado e não inovador. Reflectindo o teor humanista da época, a nova arquitectura colocava muito mais ênfase no classicismo. Adoptando como referência a arquitectura clássica de Grécia e Roma, os pilares e as cúpulas tornaram-se as características definidoras de um novo estilo de Renascimento. Igrejas, catedrais e outros edifícios cívicos afastaram-se das enormes dimensões do gótico, exaltando estruturas com proporções mais modestas.
Os tempos e os estilos mudaram, mas as velhas estruturas góticas perduravam, mantendo-se altas e fortes, e um grande número delas ainda domina as paisagens urbanas da Europa. As façanhas arquitectónicas que desafiam a gravidade daquela época são, de certa forma, semelhantes à corrida espacial dos tempos modernos. A construção de catedrais, repleta de riscos e exigindo grandes investimentos, permitiu à sociedade europeia explorar os seus limites, testar as suas capacidades e tentar suplantar os seus rivais.